ANPP indeferido por demora no exame deve ser reanalisado, decide STF
Para a turma, o condenado apresentou o pedido dentro do prazo estabelecido no CPP, mas não teve o direito efetivado em razão da demora na análise do pedido.
A 2ª turma do STF anulou a condenação de um homem pelo crime de falso testemunho após o arquivamento de seu pedido de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) pela Justiça Federal de primeiro grau. A decisão foi tomada nesta terça-feira, 22, no julgamento do HC 199.180.
Acordo
No caso em análise, um homem foi condenado à pena de um ano e dois meses de reclusão, em regime inicial aberto. Após a sentença, ele requereu designação de audiência de proposta de acordo de não persecução penal, dentro do prazo estabelecido no artigo 28-A do Código de Processo Penal. O pedido foi deferido pela Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que condicionou a realização do acordo à ausência de trânsito em julgado da condenação. Durante o andamento, contudo, a sentença transitou em julgado, e a magistrada de origem, ao constatar o ocorrido, determinou o arquivamento do pedido.
A defesa recorreu ao TRF da 4ª região e, após ter o pedido negado, acionou o STJ, que também negou o recurso. No STF, o relator, ministro Gilmar Mendes, concedeu a liminar para suspender o trânsito em julgado da condenação.
Dentro do prazo
O colegiado seguiu entendimento do relator de que o condenado apresentou o pedido de acordo dentro do prazo estabelecido no Código de Processo Penal e teve o direito reconhecido, mas a medida só não foi efetivada em razão da demora na prestação jurisdicional.
"A demora no transcorrer procedimental foi inerente ao próprio desenrolar do mecanismo de revisão decorrente dos atos estatais", observou Mendes.
Ainda segundo o relator, se o procurador tivesse oferecido o acordo quando solicitado pela defesa, não haveria ocorrido o trânsito em julgado da condenação.
"O trânsito em julgado não pode obstar a efetividade do direito do réu reconhecida pelo órgão revisional ministerial."
A turma foi unânime em anular o trânsito em julgado da condenação, suspender eventual execução da pena e determinar o retorno dos autos ao Ministério Público para consideração do entendimento firmado pela Câmara de Coordenação e Revisão e a análise dos demais requisitos exigidos para a celebração do acordo.
Processo: HC 199.180
fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/360300/anpp-indeferido-por-demora-no-exame-deve-ser-reanalisado-decide-stf
DA NECESSÁRIA POSSIBILIDADE DA INTIMAÇÃO JUDICIAL DAS TESTEMUNHAS DEFENSIVAS
Por: Nicole Trauczynski[1] eWanessa Assunção Ramos[2]
A partir da Constituição da República de 1988, o processo penal, cujo diploma principal é datado de 1941, deveria ter passado por uma reformulação ou ao menos por uma interpretação sistemática que fizesse efetivas as previsões ali previstas. Contudo, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, a jurisprudência ainda apresenta dificuldades em integrar às persecuções penais as garantias que asseguram ao acusado um Processo Penal Constitucional.
Dentre diversos problemas que a doutrina tem se debruçado a tentar apresentar soluções, encontra-se a negativa de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa em sede de resposta à acusação, a partir de interpretação equivocada do artigo 396-A do Código de Processo Penal. É nesse sentido que o presente artigo visa explicitar as previsões em tratados internacionais, os princípios constitucionais e demais motivos que evidenciam diferentes violações a partir da referida aplicação legal.
- O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
O direito de ouvir testemunhas é pautado em tratados internacionais e em previsões constitucionais. É nesse exato sentido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI[3]), Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (art. 6, 3, ‘b’ e ‘d’[4]) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, ‘c’ e ‘f’[5]) dispõem. Ademais, a Constituição da República, especialmente em seu artigo 5º, caput e incisos LIV e LV[6], por meio dos princípios da igualdade, devido processo legal e contraditório e ampla defesa, também integram as previsões que tratam sobre a matéria.
Da mesma sorte, a doutrina é bastante enfática e clara ao afirmar que a o direito integral de defesa do acusado é parte indissolúvel do Processo Penal Constitucional. BADARÓ[7] leciona acerca da necessidade de um contraditório efetivo e pleno, com a real participação das partes (acusado e órgão acusador), concluindo que “é o que se denominou contraditório efetivo e equilibrado”. De igual forma, leciona MALAN, ensinando:
Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de inadmissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença[8].
Nesta toada, qualquer interpretação acerca do Código de Processo Penal, especialmente acerca do artigo 396-A do Código de Processo Penal, deve considerar as previsões amealhadas em tratados internacionais e na Constituição da República. Contudo, não é nesse sentido que a jurisprudência do Tribunal Federal Regional da 4ª Região encontra-se decidindo, conforme se pode depreender do recorte metodológico de pesquisa adotado neste estudo.
- A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 396-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO
O artigo 396-A do Código de Processo Penal prevê o conteúdo da resposta à acusação e dispõe sobre o depoimento testemunhal que nessa etapa é possível “arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.
Da leitura básica do artigo, evidencia-se que é necessário arrolar as testemunhas, isto é, indicar a necessidade de ouvi-las sobre aqueles fatos, qualifica-las, ou seja, apresentar os dados que são necessários para expedição do mandado de intimação[9], e requerer a intimação quando for necessário. Também é possível constatar que não é obrigatório apresentar nenhuma justificativa (eis que não há obrigação legal da defesa técnica de justificar a necessidade de uma prova que requereu tempestivamente) para requerer a intimação, basta realizar o pedido de maneira expressa na peça de resposta à acusação. O Código de Processo Penal faculta (não impõe um ônus) à defesa em requerer ou não a intimação das testemunhas arroladas. É nesse sentido que leciona LOPES JR.: “testemunha arrolada por qualquer das partes deverá ser intimada, exceto se expressamente for dispensada a intimação”[10]. Ora, não cabe ao d. juízo, nesta etapa, valorar o referido pedido, devendo apenas operacionaliza-lo.
Importante ainda rememorar que o dispositivo analisado entrou em vigor no ano de 2008, quando ainda estava vigente o Código de Processo Civil de 1973, que previa a intimação judicial das testemunhas, independente de frustração da convocação do advogado da parte. Desta forma, os princípios constitucionais que pautam o Processo Penal Democrático estariam preservados.
Contudo, em que pese toda a argumentação acima dispendida, não são nestes moldes que está ocorrendo a interpretação do dispositivo legal pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, o qual, reiteradamente, tem se manifestado que as testemunhas arroladas pela defesa devem comparecer à audiência independentemente de intimação, observando-se o princípio da celeridade processual, ou que a necessidade de intimação deve ser justificada e analisada a critério do juízo competente[11].
As violações dos tratados internacionais, dispositivos constitucionais e previsão infraconstitucionais são mais latentes quando mesmo após a justificativa da necessidade de intimação o juízo competente não considera crível e indefere a intimação judicial.
É de se considerar que os princípios da ampla defesa e contraditório podem ser violados em caso de não comparecimento das testemunhas (isto porque a defesa não teria outra oportunidade de inquiri-la), tendo em vista que a prova testemunhal advinda de seus depoimentos pode ser imprescindível. Ademais, não há como sobrepor economicidade, celeridade e eficiência da administração da Justiça aos princípios constitucionais que asseguram a defesa do acusado, violando-se o princípio constitucional do devido processo legal. Ainda, os particulares não possuem meios coercitivos eficazes que obrigam as testemunhas a comparecerem perante o juízo. Destaca-se, também, o princípio da paridade de armas, que deve ser preconizado, considerando que o órgão acusador pode se utilizar a intimação judicial das testemunhas.
Por fim, destaca-se que não é possível a utilização de dispositivos do Código de Processo Civil para fundamentação da decisão que indefere o pedido de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa, eis que o diploma processual civil somente pode ser aplicado subsidiariamente ao Código de Processo Penal e estas devem, ainda, serem analisadas sob o prisma constitucional, não podendo limitar o direito de defesa.
- CONCLUSÕES
O ato de arrolar testemunhas é visto como um direito do acusado[12], especialmente porque visa combater os supostos indícios de conduta delitiva que foram apontados pelo órgão acusador. Neste sentido, qualquer tentativa de supressão deste direito viola tratados internacionais, princípios constitucionais e previsões infraconstitucionais, não podendo o entendimento jurisprudencial, por mais sábio que seja e o é, limitar um direito legal amparado por outras normas de maior hierarquia, tampouco criar ônus ao exercício da ampla defesa e do contraditório representados pela advocacia criminal.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 29 ago 2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm, acesso em 29 ago 2021.
LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
BRASIL. Decreto nº 678. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm, acesso em 29 ago 2021.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos, acesso em 29 ago 2021.
OAS. Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4, acesso em 29 ago 2021.
PORTO ALEGRE. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 5051844-85.2019.4.04.0000.
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 419.394/CE.
[1] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de pós-graduação em diversas universidades. Coordenadora Regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM/PR) e do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do mesmo instituto. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Organizadora da atualização da obra "Crimes contra o sistema financeiro nacional", de Manoel Pedro Pimentel. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: nicole@tkiadvogados.com.br
[2] Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Vencedora do Prêmio Marcelino Champagnat por melhor desempenho acadêmico no curso de Direito em 2018. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Crimes, Gênero e Diversidade do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. E-mail: wanessa@tkiadvogados.com.br
[3] Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
[4] 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
- b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
- d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório as
testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
[5] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
- concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
- direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
[8] MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309
[9] Como por exemplo, nome completo e endereço completo. Vide-se que não é necessário, pela previsão legal, indicar telefone ou e-mail, costume que foi adotado a partir da pandemia do coronavírus considerando a adoção da intimação por meio aplicativos de mensagens instantâneas e e-mail.
[10] LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
[11] Como exemplo, TRF4 5051844-85.2019.4.04.0000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 18/02/2020
[12] Nesse sentido, vide-se habeas corpus nº 419.394/CE julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
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Overcharging em crimes tributários e a burla à súmula vinculante 24 do STF
Por: Guilherme Brenner Lucchesi e Maria Victoria Costa Nogari
A edição da súmula vinculante 24 pelo STF1 constituiu um marco importante no campo do direito penal econômico, especificamente dos delitos tributários. A partir dela, passou a ser pressuposto para a tipificação dos crimes materiais contra a ordem tributária (incisos I a IV do art. 1 da lei 8.137/90) a constituição definitiva do crédito tributário.
Até a edição da súmula vinculante, o exaurimento da esfera administrativa, culminada no lançamento definitivo do tributo, era tido por necessário para o oferecimento de denúncia ou mesmo a instauração de inquérito, discutindo-se a possibilidade de suspensão do prazo prescricional até o seu termo. Não havia entendimento consolidado a respeito de sua natureza jurídica, se condição de procedibilidade, condição objetiva de punibilidade ou hipótese sui generis de impedimento do lapso prescricional.2
A partir da aprovação da SV 24, a tipicidade dos crimes materiais contra a ordem tributária passou a depender do lançamento definitivo do tributo, de modo que qualquer conduta do agente até este momento é penalmente irrelevante. Deste modo, antes da constituição definitiva do crédito tributário é ilegal a autorização de buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilos e medidas cautelares pessoais ou patrimoniais.
A inviabilidade da prática de qualquer ato da persecução penal antes do término do processo administrativo fiscal levou a Procuradoria-Geral da República a requerer a revisão da redação do preceito sumular no bojo da Reclamação 16.087/SP3. Nesta ação, o reclamante sustentava a ilegalidade da abertura de inquérito para apuração do crime de sonegação fiscal ante a ausência de lançamento definitivo do tributo. O relator, ministro Celso de Mello, não propôs a revisão da SV 24, mas deixou de aplicá-la no caso, invocando entendimento da Corte quanto à legalidade de atos de investigação praticados antes da constituição definitiva do tributo quando há a apuração de prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Antes do julgamento da Reclamação 16.087, a incidência da SV 24 também foi relativizada no HC 96.324/SP4, em que a Corte decidiu pela não concessão da ordem, tendo em vista que se apurava, além de crimes tributários, a prática de crimes de integrar organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Do mesmo modo, no Agravo Regimental na Reclamação 32.656/AM5, o STF decidiu pela possibilidade de instauração de persecução penal de crime contra a ordem tributária nos casos em que houver conexão com outros delitos de natureza diversa. Destacou o relator, ministro Celso de Mello, que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende não incidir o enunciado constante da súmula vinculante 24/STF naqueles casos em que, iniciada a investigação penal de eventuais delitos contra a ordem tributária, registrar-se a possibilidade de apuração de outros ilícitos criminais".
Há vários outros precedentes em que o STF mitiga a aplicação da própria orientação sumulada6. Assim, embora a SV 24 não faça qualquer ressalva quanto à sua aplicabilidade, estabelecendo apenas a atipicidade do crime material contra a ordem tributária antes da constituição definitiva do crédito, o STF (e outras Cortes do país7) vem possibilitando a persecução penal antes mesmo do lançamento definitivo do tributo quando supostamente há a prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.
Diante de tais precedentes -e enquanto não houver a revisão da SV 24, pretensão manifestada pela PGR na Rcl 16.087 -, a experiência cotidiana revela expediente criativo para superar a pendência de procedimento administrativo fiscal para iniciar a persecução penal: a imputação de outros crimes, não tributários, provocando concurso aparente de normas.
Explica-se: não raras vezes, a denúncia por crime tributário vem acompanhada da imputação de crimes de falsidade (ideológica e/ou material). De modo geral, o contexto fático narrado pela acusação é a apresentação de documento falso perante a autoridade fazendária para fins de redução da base de cálculo de tributo. É evidente que, em tais casos, a conduta não poderia ser sancionada cumulativamente como delito de sonegação e de falsidade.
Trata-se de clara hipótese de aplicação do critério da consunção, uma vez que a potencialidade lesiva do falso (crime-meio) se exaure no crime de reduzir ou suprimir tributo devido (crime-fim). De tal modo, a imposição de ambas as sanções culminaria na valoração repetida de um mesmo fato e consequente violação à garantia ne bis in idem. Este entendimento, aliás, é pacífico nos Tribunais Superiores8, que reiteradas vezes aplicaram o princípio da consunção entre crimes de falsidade e contra a ordem tributária, a despeito de protegerem bens jurídicos diversos - fé pública e ordem tributária, respectivamente.
Assim sendo, não há dúvida que se está diante de um desvio acusatório9 na hipótese em que se inicia a apuração da suposta prática de crimes contra a ordem tributária antes do fim do procedimento fiscal e - conferindo "verniz de legitimidade" à diametral violação da SV 24 - oferece denúncia imputando a prática de delitos de falsidade material/ideológica e de uso de documento falso, em concurso material, enquanto se aguarda o lançamento definitivo para posteriormente incluir o crime tributário.
A utilização de acusações infladas como estratégia persecutória há tempos desperta preocupação no ordenamento jurídico anglo-americano10. Esse fenômeno, denominado overcharging, consiste na prática de exasperar os fatos passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma imputação com indevida pluralidade de condutas penais (horizontal overcharging), seja por meio da imputação de penas mais graves do que as que seriam cabíveis no caso (vertical overcharging)11.
Além da imputação dos delitos de falsidade e de sonegação em evidente concurso aparente de normas, nota-se que, nas hipóteses em que a persecução penal de crimes contra a ordem tributária se inicia antes do término do procedimento fiscal, comumente há também a imputação cumulativa de crimes de organização criminosa e de lavagem de dinheiro, incorrendo também em horizontal overcharging.
Em tais casos, a suspeita da prática de crimes tributários pelos sócios-administradores de determinada pessoa jurídica é tomada como indício suficiente para a imputação do crime de organização criminosa. Contudo, não se pode confundir criminalidade de empresa com empresa ilícita. Na primeira, há reunião de pessoas com finalidade lícita (exercício de atividade econômica), malgrado eventual crime seja praticado no âmbito do ente corporativo; ao passo que, na segunda, a associação de pessoas é constituída justamente para auferir lucro pela prática de infrações penais12.
Por sua vez, em relação à imputação cumulativa de crimes contra a ordem tributária e lavagem de dinheiro, tem-se que este, por si só, não autorizaria a persecução criminal antes do fim do procedimento administrativo fiscal. Isso porque, antes do lançamento definitivo do tributo, o comportamento do agente será penalmente irrelevante em razão da atipicidade do delito antecedente sem o qual o crime de lavagem de dinheiro não se consuma.
À vista do exposto, no âmbito dos delitos tributários, tem-se observado excesso no poder de acusar (overcharging). Imputa-se cumulativamente delitos que claramente não subsistiriam face à aplicação do princípio da consunção ou quanto aos quais muitas vezes não se dispõe de elementos suficientes para fundamentar a própria imputação. Isso ocorre para que o respectivo caso se enquadre na mitigação da SV 24 admitida pelo STF - i.e. quando há a apuração concomitante de crimes de natureza não tributária -, assim legitimando início da persecução penal antes do lançamento definitivo do tributo.
É certo que a mitigação do referido preceito sumular pelo próprio STF é sintomático de seus graves defeitos, dadas importantes questões dogmáticas e práticas que não foram levadas em conta no momento de sua edição13. Por isso, a aplicação da súmula acaba por ser alvo de casuísmo, gerando insegurança jurídica. Nesse sentido, a revisão da SV 24 permitiria que sua aplicação fosse mais uniforme, racional e adequada. Ao tratar adequadamente dos efeitos do encerramento do procedimento administrativo fiscal sobre a persecução dos crimes contra a ordem tributária, o STF deixaria de desrespeitar sua própria súmula casuisticamente.
Contudo, enquanto tal revisão não é feita em procedimento próprio previsto para tanto14, ao MP cabe exercer o seu poder-dever de acusar em observância à legalidade, sem desvios de finalidade e excessos que atentem diretamente contra a garantia do acusado de que a imputação contra si formulada seja minimamente adequada aos preceitos legais (e também aos sumulados).
_____
1 "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".
2 Ver PSV 29 e os precedentes constitutivos da SV 24: HC 85.185, HC 85.463, HC 83.353, HC 86.120, HC 85.428 e HC 81.611.
3 STF, Rcl 16.087/SP, relator min. Celso de Mello, julg. 30 abr. 2019.
4 STF, 1.ª T., HC 96324/SP, relator min. Marco Aurélio, julg. 14 jun. 2011.
5 STF, 2.ª T., Rcl 32656/AM AgR, relator min. Celso de Mello, julg. 4 mai. 2020.
6 Cita-se: STF, 2ª T., HC 95.443, relatora min. Ellen Gracie, julg. 2 fev. 2010; STF, 1ª T., HC 108.037, Relator min. Marco Aurelio, julg. 29 nov. 2011; STF, 1.ª T., ARE 936.653, Relator min. Roberto Barroso, julg. 24 mai, 2016; e STF, 2.ª T., HC 203.760 AgR, Relator min. Nunes Marques, julg. 23 nov. 2021.
7 Em estudo empírico publicado em 2018 sobre a eficiência da súmula vinculante 24 no sistema judicial brasileiro, Tiago Bottino concluiu que em mais da metade dos casos analisados (56%) as instâncias inferiores do país (Tribunais de Justiça e TRFs) deixaram de aplicar a orientação sumulada, identificando o Supremo Tribunal Federal como responsável por esse déficit de eficiência, na medida em que não respeita a própria Súmula Vinculante que editou, criando hipóteses de mitigação. BOTTINO, Tiago. A súmula vinculante vincula? Um estudo da eficiência da Súmula Vinculante 24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 143, p. 177-219, mai. 2018.
8 A título exemplificativo: STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1.347.646/MG, Relator min. Jorge Mussi, julg. 5 fev. 2013; STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1363618/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julg. 15 mai. 2018; STJ, 3.ª Seção, AgRg nos EAREsp 386.863/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, julg. 22 mar. 2017; STF, 1.ª T., HC nº 84.453/PB, Relator min. Sepúlveda Pertence, julg. 17 mai. 2005; STF, Inq. 3.102/MG, Plenário, Relator min. Gilmar Mendes, julg. 25 abr. 2013.
9 A expressão é de Fauzi Hassan Choukr (Iniciação ao processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 331-33).
10 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015, p. 25.
11 ALSCHULER, Albert. The Prosecutor's Role in Plea Bargaining. University of Chicago Law Review, vol. 36, n. 1, p. 50-112, 1968. p. 85-86. Disponível aqui.
12 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015. p. 26.
13 TAFFARELLO, Rogério Fernando. Impropriedades da súmula vinculante 24 do STF e a insegurança jurídica em matéria de crimes tributários. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael de Souza. Direito Penal Econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 323-325; FISCHER, Douglas. Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Sumula Vinculante nº 24 do STF. GenJurídico, 22 jan. 2021. Disponível aqui.
14 Sobre o procedimento de revisão das Súmulas Vinculantes, explicam José Carlos Buzanello e Graziele Mariete Buzanello: "Atualmente, a técnica de revisão dos atuais preceitos sumulados de força persuasiva está prevista no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), desde a época da criação das súmulas (artigos 102 e 103). O quórum exigido é maior do que aquele exigido para aprovação de emendas constitucionais (três quintos), o que demonstra a dificuldade para criação, revisão e cancelamento da súmula de efeitos vinculantes, com o propósito de estabilizar os julgados no tempo. Na atualidade, a revisão e o cancelamento do enunciado de súmula com efeito vinculante estão disciplinados pela Lei no 11.417/06, com aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal." BUZANELLO, José Carlos; BUZANELLO, Graziele Mariete. Exeqüibilidade da súmula vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 174, p. 25-33, abr./jun., 2007. p. 29.
Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
Maria Victoria Costa Nogari é acadêmica de Direito da UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Estagiária da Lucchesi Advocacia.
Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/informacao-privilegiada/357732/overcharging-em-crimes-tributarios-e-a-burla-a-sv-24-do-stf
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A teoria da cegueira deliberada e sua (in)utilidade prática no Direito Penal brasileiro
Por Milena Holz Gorges
Recentemente, muito se ouviu falar acerca da teoria da cegueira deliberada no Brasil. Essa temática ganhou relevância no âmbito do Direito Penal Econômico a partir de seu uso frequente nos julgamentos da Operação “Lava Jato”, em que foi reiteradamente aplicada em substituição ou mesmo complemento ao dolo eventual. Sob essa justificativa, ela tem sido adotada para reconhecer a existência de dolo mesmo nos casos em que ausentes os fundamentos necessários à sua configuração.
A teoria da cegueira deliberada, ou willful blindess doctrine, desenvolveu-se na doutrina e jurisprudência norte-americanas a partir da premissa de que não se poderia permitir a ignorância propositada como defesa à imputação de um crime, motivo pelo qual a auto colocação em situação de ignorância deveria ter as mesmas consequências dos casos de conhecimento efetivo acerca das circunstâncias do tipo.
Segundo Ragués i Vallés, encontra-se em estado de ignorância deliberada “todo aquele que podendo e devendo conhecer determinadas circunstâncias penalmente relevantes de sua conduta, toma deliberada ou conscientemente a decisão de manter-se na ignorância com relação a elas”[1]. Para Spencer Sydow, a teoria é uma “forma de imputação objetiva criada pelo Direito anglo-saxão para preencher lacuna jurídica da interpretação restritiva do dolo nas situações em que o sujeito de um delito alega desconhecimento de fatos por desídia em investigá-los ou por criação de estratégia de nunca adquirir consciência deles”[2].
Sem entrar no mérito da dificuldade (ou impossibilidade) de transplante dessa teoria para o Direito brasileiro, tendo em vista a incompatibilidade entre os sistemas jurídico-penais americano e pátrio, uma análise mais detida acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada permite chegar à conclusão de que além de incompatível, ela é também desnecessária.
Isso porque muitos dos casos em que a cegueira deliberada foi aplicada para condenar os acusados poderiam ser resolvidos a partir da teoria do dolo.
O legislador brasileiro estabeleceu, nos artigos 18 e 20 do Código Penal, algumas balizas quanto à forma de imputação subjetiva e definiu mais ou menos os conceitos de dolo e culpa. A partir da descrição genérica feita pelo legislador, costuma-se afirmar que o dolo é composto por dois elementos: o conhecimento e a vontade. Porém, essa assertiva ainda se mostra insuficiente, sendo necessária a elaboração de teorias por parte da doutrina para complementar o conceito e orientar a aplicação da lei penal.
As teorias do dolo são comumente classificadas em teorias volitivas e teorias cognitivas, a depender da ênfase dada a cada um dos elementos do dolo. Seja qual for a teoria adotada, é evidente que o conhecimento é elemento central do dolo no Direito Penal brasileiro. É justamente a partir dessa premissa que surgem alguns questionamentos importantes, como, por exemplo: de que forma poderíamos enfrentar os casos de ignorância deliberada em um Direito Penal que considera o conhecimento como um elemento básico da responsabilidade? Seria aceitável que um sujeito que busca permanecer em desconhecimento se beneficie penalmente dessa circunstância?[3]
Para responder a estas perguntas é preciso, primeiramente, estabelecer que o dolo não deve ser definido como um processo mental que ocorre dentro do intelecto do sujeito. Ainda que nenhuma teoria normativo-atributiva tenha obtido êxito em fornecer categorias seguras para a imputação de conhecimento ou vontade, entende-se que os conceitos jurídicos devem ser avaliados a partir de padrões normativos, conforme ensina Claus Roxin[4]. As construções teóricas mais contemporâneas não podem ser ignoradas, tendo em vista a impossibilidade de constatação segura do conhecimento e da vontade em um sentido psicológico-descritivo[5].
Assim, sob um ponto de vista normativo-atributivo, o conhecimento não precisaria ser efetivo ou pleno, como pretende Zaffaroni[6], mas é necessário apenas que se demonstre que o agente possui um conhecimento da situação que lhe garanta domínio ou controle da execução da ação. Ainda, o conhecimento não precisa ser completo ou verificável empiricamente, mas é atribuído a partir das circunstâncias do caso concreto.
Diante desse conceito mais amplo, tem-se que aquele que tem consciência da elevada probabilidade de ilicitude de sua conduta e, mesmo diante dessa suspeita, não aprofunda seu conhecimento, de certo modo, já sabe o que espera encontrar. Ou seja, a representação de uma situação de ilicitude pelo autor já preenche o elemento cognitivo do dolo, ainda que o conhecimento não seja pleno.
A equiparação entre os casos em que o agente tem efetiva ciência dos elementos do tipo e aqueles em que há um desconhecimento deliberado tem base na culpabilidade, segundo a ideia de que esta não pode ser menor para aquele que, podendo e devendo tomar conhecimento de determinadas circunstâncias, opta pela ignorância[7].
Assim, nos casos de lavagem de dinheiro, em que o agente representa como altamente provável a ilicitude da origem dos bens, mas renuncia à tomada de conhecimento pleno, pode-se afirmar que há uma postura de conformação do sujeito com a produção do resultado.
Vale ressaltar que o desconhecimento deliberado de determinadas circunstâncias do comportamento do agente apenas pode conduzir à modalidade dolo eventual, e apenas nas situações em que o sujeito possui um conhecimento básico que seja o suficiente para permitir a imputação por dolo.
Nesse ponto, é importante destacar que há uma distinção entre os casos em que o sujeito não quer conhecer a origem delitiva dos bens, mas a representa como provável em função das circunstâncias objetivas, e os casos em que o sujeito não quer saber nada acerca dos bens, mas tampouco representa sua origem delitiva. Esse segundo caso, segundo Blanco Cordero[8], não pode estar abarcado pelo dolo, enquanto que o primeiro é um caso de dolo eventual.
A partir de relevante análise jurisprudencial realizada por Guilherme Lucchesi[9], pode-se chegar à conclusão de que há a aplicação da teoria da cegueira deliberada pelos tribunais brasileiros em, basicamente, três grupos de casos: (i) casos em que houve condenação por dolo eventual; (ii) casos em que a cegueira deliberada foi usada apenas como complemento da decisão; e (iii) casos em que houve condenação sem que estivessem presentes os requisitos para a condenação na modalidade dolosa.
Nos casos em que houve condenação por dolo eventual, aplicando-se a cegueira deliberada, verifica-se a absoluta dispensabilidade da teoria, diante da inexistência de lacunas de punibilidade a serem preenchidas. Se já estão presentes os requisitos para a imputação do crime por dolo eventual, não há necessidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada, posto que suficientes e adequados os critérios do dolo já existentes no Direito Penal brasileiro.
Sob esse mesmo fundamento se mostra igualmente desnecessária a aplicação da teoria da cegueira deliberada apenas como reforço argumentativo.
Já o terceiro grupo de casos é o que aparenta ser mais problemático, pois cria uma nova categoria de imputação subjetiva, nunca prevista pelo legislador, que foge completamente aos parâmetros estabelecidos pelos artigos 18 e 20 do Código Penal. Pior ainda, em alguns casos, os tribunais chegaram a criar um dever de conhecimento para o autor em situações nas quais as circunstâncias não revelavam alta probabilidade de ilicitude, em absoluta distorção da teoria originária da willful blindness.
Esse uso inadequado da cegueira deliberada tem como resultado inúmeras condenações indevidas em casos de inexistência de provas suficientes a demonstrar o conhecimento mínimo exigido pela lei penal para a imputação na modalidade dolosa.
Em face da análise apresentada, pode-se perceber que o dolo tem amplo alcance como modalidade de imputação subjetiva, abrangendo desde casos de autêntica intenção, até aqueles em que o sujeito representa o risco de realização típica e se conforma com a produção do resultado. O alcance mais amplo da imputação dolosa na construção jurídico-penal brasileira permite a punibilidade de muitos dos casos que, no Direito Penal norte-americano, precisam da cegueira deliberada para que não fiquem impunes.
Portanto, em última análise, no Direito Penal brasileiro, a teoria da cegueira deliberada não parece ter nenhuma utilidade legítima, acabando por servir apenas para a punição de condutas culposas como se dolosas fossem.
Milena Holz Gorges
Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do IBCCrim/PR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
E-mail: milenaholzgorges@hotmail.com
[1] RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier Libros Juridicos, 2007, p. 25.
[2] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 19
[3] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Mejor no saber: sobre la doctrina de la ignorância deliberada en Derecho penal. In Revista Discusiones, v. 13, n° 2 (2013): Ignorancia deliberada y Derecho Penal, p. 12.
[4] ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil. Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre. – 3. Aufl. – München: Beck, 1997, p. 376-377.
[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 144-145.
[6] Para Zaffaroni, “O dolo requer sempre conhecimento efetivo; a mera possibilidade de conhecimento (chamada “conhecimento potencial”) não pertence ao dolo. O “querer matar um homem” (dolo do tipo de homicídio do art. 121 do CP) não se confunde com a “possibilidade de conhecer que se causa a morte de um homem”, e sim com o efetivo conhecimento de que se causa a morte de um homem”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1. Parte geral. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 420).
[7] CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017, p. 120.
[8] BLANCO CORDERO, Isidoro. El Delito de Blanqueo de Capitales. Pamplona: Arazandi, 1997, p. 383.
[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 174-187.
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Responsabilidade das pessoas jurídicas e a necessária implementação do sistema de compliance
Por: Gabriela Kreusch Serena[1]
Com a globalização, o advento das grandes crises econômicas e os mega escândalos financeiros, surgiu a necessidade de o Estado assumir uma função .[2] Essa nova realidade trouxe à tona o tema dos “crimes de colarinho branco”[3] ou “cifra dourada da criminalidade”[4], que agora colocam em evidência a criminalidade empresarial e corporativa enquanto núcleo do Direito Penal Econômico.
Em vista dos efeitos estrondosos que grandes escândalos financeiros causam, há um verdadeiro efeito dominó em todos os setores sociais, notadamente em decorrência da perda de credibilidade das empresas em razão da prática de crimes e a consequente perda de investimento. Os impactos que os ilícitos cometidos por empresas geraram na economia mundial impulsionaram a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em que vigora uma pluralidade de posições acerca do tema.
Parte da doutrina, invocando o brocardo societas delinquere non potest, entende ser inadmissível a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.[5] Por outro lado, há autores que defendem que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é possível e necessária[6], principalmente na proteção dos bens jurídicos difusos e supraindividuais[7]. Nesta concepção, entende-se que as condutas ilícitas praticadas pelas empresas geram uma espécie de cadeia de vitimização, em que diversos bens jurídicos são atingidos de diferentes maneiras.
No Brasil, é fundamental a análise da responsabilidade penal das pessoas jurídicas à luz da Constituição Federal de 1988, que primeiro dispôs sobre o tema. O art. 225 §3º[8] prevê a possibilidade da imposição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas que praticarem condutas atentatórias ou lesivas aos bens jurídicos de ordem ambiental.
O art. 173, §5º, da CF, acabou por deixar uma interpretação aberta acerca dos crimes econômicos e a possibilidade de regulamentação por uma lei estrita, que até o momento não há. Segundo Salvador Netto e Souza, o sistema jurídico brasileiro possibilita a responsabilização penal das pessoas jurídicas não só pela prática de crimes ambientais, mas também pelos “atos tipificados como atentatórios à ordem econômico-financeira e nas relações de consumo”[9].
No âmbito dos crimes ambientais, a Lei n.° 9.605/98 dispõe sobre a responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas, quando as infrações forem cometidas por seus representantes, não excluindo a possibilidade da responsabilização das pessoas físicas enquanto coautores[10]. Em 2013, no julgamento do RE 548.181, a primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de se processar penalmente a pessoa jurídica independentemente da pessoa física. Na decisão, a Relatora Ministra Rosa Weber manifestou-se no sentido de que, para a responsabilização da pessoa jurídica, “não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”[11].
A Lei n.º 12.846/2013 (Lei “Anticorrupção”) regulamenta a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Apesar da ausência de responsabilização criminal, as sanções possuem caráter especialmente aflitivo[12], pouco se distinguindo de penas[13]. Dentre as severas punições estabelecidas pela Lei, cita-se a multa, a inscrição nos Cadastros Nacionais de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e nos Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) e a suspensão da participação de processos licitatórios.
Tais sanções administrativas podem trazer consequências nefastas às pessoas jurídicas, em razão da dificuldade na obtenção de linhas de crédito e parcelamentos tributários, além da perda de credibilidade internacional que pode incidir diretamente na queda do valor das ações da empresa (como ocorreu com a Petrobrás). Portanto, as sanções administrativas podem gerar resultados muito mais gravosos que determinadas sanções penais. Além disso, o Direito Administrativo não é regido pelas mesmas garantias que o Direito Penal e o Direito Processual Penal, o que acarreta evidente desequilíbrio na balança da equidade e justiça.
Ante as graves sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, a Lei n.º 12.846 reafirmou a necessidade da implementação de um sistema de controle e de promoção das boas práticas empresariais. Nessa toada, ganhou destaque o compliance, concebido como “o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e o risco legal/regulatório”[14].
A implementação do programa de compliance inclui oito pilares: (i) compromisso da alta administração; (ii) gerenciamento de risco; (iii) definição de políticas e procedimentos; (iv) treinamento e comunicação; (v) canal de denúncia; (vi) investigação; (vii) due diligence e (viii) monitoramento e auditoria. No Brasil, o “canal de denúncia” é obrigatório nas sociedades de capital aberto, as quais devem possuir meios para o recebimento de denúncias sobre questões internas ou externas. Ademais, as investigações corporativas, bem como as auditorias periódicas são mecanismos de suma relevância no exercício de averiguação dos fatos delituosos e na proteção dos interesses da companhia.
Desse modo, o compliance surge como pilar garantidor da governança corporativa para proteger a pessoa jurídica e seus acionistas contra possíveis ações lesivas perpetradas pelos executivos contratados. Além de se relacionar à criação, à implementação e à fiscalização de normas e condutas, o compliance age como uma forma de conscientização dos gestores e colaboradores a respeito dos seus deveres e obrigações legais, prevenindo riscos (o chamado compliance risk) e atribuindo a responsabilidade de vigilância a todos os integrantes das atividades empresariais.
Desse modo, a prática do compliance consiste em uma estratégia para incentivar a adoção de medidas internas nas empresas a fim de preservar a integridade tanto das pessoas jurídicas[15] quando das pessoas físicas – enquanto possíveis coautoras[16]. Ademais, vale comentar que o sistema brasileiro estabelece uma série de benefícios às pessoas jurídicas que implementam o programa de compliance, não só na disputa em procedimentos licitatórios, como por meio da isenção completa de imputação de responsabilidade em determinados casos[17].
Diante do exposto, tendo-se em conta que a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas é cada vez mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência de diversos países – especialmente pela pressão dos órgãos internacionais (v.g., OCDE) – ganha especial relevância a adoção do sistema de compliance nas empresas.
O sistema vem como uma forma de hibridização entre poder público e privado em função das normas internas de empresas,[18] as quais devem seguir os ditames da legislação pátria para prevenir, não apenas os riscos às pessoas físicas, como também à própria pessoa jurídica. Assim, as formas de autorregulação por meio do compliance têm como cerne a prevenção de riscos que podem culminar na responsabilidade da pessoa jurídica, o que consequentemente garante a sua proteção no âmbito penal, cível e administrativo.
[1] Acadêmica de direito pela UFPR. Estagiária do escritório Antonietto & Guedes de Castro e Pesquisadora acadêmica do IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico)
[2] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Derecho Penal Económico. Consideraciones jurídicas y económicas. Lima: Idemsa, 1997. 31-47.
[3] SUTHERLAND, Edwin H. White collar crime: the uncut version. New Haven, Londres: Yale University, 1983. p. 246.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 10.
[5] MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Informe sobre el proyecto de lei que establece la responsabilidad legal de las personas jurídicas em los delitos de lavado de activos, financiamiento del terrorismo y delitos de cohecho que indica, mensaje nº 018-357/. Revista Ius et Praxis, ano 15, nº 2, pp. 285-316.
[6] TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1995. p. 21.
[7] BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos: repercusiones de la labor legislativa de Jimenez de Asúa em el Código Penal de 1932. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, n.º 11, jun. 1986. p. 153-154.
[8] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
[9] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários à Lei de Crimes Ambientais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 90-92.
[10] Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
[11] STF, 1.ª T., RE 548181, Relatora Min. Rosa Weber, j. 6 ago. 2013.
[12] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 87.
[13] Idem.
[14] COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2.
[15] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 132.
[16] NÍETO MARTÍN, Adán. El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 10.
[17] GALÁN MUÑOZ, Alfonso. Fundamentos y límites de la responsabilidad penal de las personas jurídicas tras la reforma de la lo 1/2015. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 119.
[18] NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 13-14
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