O confisco alargado e a inexistência de um “catálogo de crimes” na Lei n. 13.964/2019

Por Ana Beatriz da Luz

Passados mais de dois anos desde o início da vigência da Lei n. 13.964/2019, muitas das alterações instituídas pelo chamado “Pacote Anticrime” ainda permanecem nebulosas e são alvos de pertinentes questionamentos. Dentre as significativas mudanças trazidas pelo diploma legal, tem-se o acréscimo, ao Código Penal, do artigo 91-A, que instituiu novo efeito da condenação criminal, passando a autorizar, caso haja condenação por crime cuja pena máxima seja superior a 06 (seis) anos, “a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito”.[1]

Embora instituído apenas recentemente no ordenamento jurídico, não é de hoje que se tem defendido a necessidade de recrudescimento da intervenção penal no que se refere às medidas de combate à corrupção, direcionadas especialmente ao agravamento das consequências patrimoniais da prática delitiva, a fim de fazer frente aos “crimes do colarinho branco”. Foi justamente no contexto da Operação Lava Jato, a maior operação da história recente do país, que o Ministério Público Federal, no ano de 2016, apresentou as “10 medidas contra a corrupção”, sintetizadas no PL 4850/2016[2], apresentado na Câmara dos Deputados após grande adesão popular, com o recolhimento de duas milhões de assinaturas. À época, a introdução de uma “perda alargada” no ordenamento jurídico brasileiro foi uma das alterações propostas como mecanismo de combate à criminalidade econômica.[3]

Desde então, outras iniciativas surgiram com o mesmo propósito.  Assim, a Lei n. 13.964/19, comumente chamada de Lei Anticrime, é resultado do Projeto de Lei n. 10.372/2018[4], que reuniu propostas da comissão coordenada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no ano de 2018, bem como do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2019, chefiado, à época, pelo então Ministro Sergio Moro. O Ministro inclusive encaminhou à Câmara suas propostas legislativas, por meio do PL 882/2019[5], às quais foi atribuído o nome bastante difundido (e questionável) de “Pacote Anticrime”.[6]

Da leitura do recém criado artigo 91-A do Código Penal, chama atenção o critério quantitativo fixado pelo legislador para limitar a incidência da medida a determinadas figuras delitivas: fora estabelecido, como dito, o requisito de prévia condenação “por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão”. Aqui reside o ponto nevrálgico e tema do presente estudo, tendo em vista a questionável redação legal e consequente ausência de correlação entre as finalidades da alteração legislativa e o texto efetivamente sancionado.

Inicialmente, nota-se que não há, na exposição de motivos do PL 882/2019[7] (que propôs referida delimitação), qualquer justificativa para a adoção do mencionado critério. Pode-se dizer, a priori, que a finalidade foi a de restringir o confisco alargado às figuras delitivas mais graves, estabelecendo, por isso, o parâmetro objetivo relacionado à pena cominada. Ainda assim, causa estranhamento o fato de que o confisco alargado não tenha sido condicionado à gravidade concretamente considerada, e não à previsão abstrata de aplicação de pena em referido patamar.

Outrossim, muito pertinentes são as observações existentes a respeito da desproporcionalidade da resposta sancionatória em relação à pena prevista para alguns delitos, tendo em vista a “incisiva distância entre o mínimo e o máximo estabelecidos”[8], como é o caso, ilustrativamente, da corrupção passiva, punida com reclusão de dois a doze anos. Referida circunstância evidencia de forma ainda mais clara a incongruência da medida. A fim de facilitar a compreensão, pode-se comparar, exemplificativamente, o delito de corrupção passiva com outro, bastante distinto, mas que igualmente gera proveito econômico ao agente: o delito de rufianismo. O artigo 230 do Código Penal tipifica a conduta daquele que tira “proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.” O parágrafo primeiro, por sua vez, institui a figura qualificada, quando a vítima é menor de dezoito e maior de quatorze anos, prevendo, como sanção, a reclusão de três a seis anos. Assim, pela sistemática adotada na Lei n. 13.964/21, ainda que o agente seja condenado à pena máxima prevista ao gravíssimo crime de rufianismo qualificado, não será cabível o confisco alargado, mesmo que haja patrimônio incompatível com sua renda lícita. Por outro lado, a medida pode ser adotada em desfavor de condenado pelo crime de corrupção passiva, ainda que à pena mínima de 02 (dois) anos, uma vez que a sanção abstratamente cominada ultrapassa os 06 (seis) anos exigidos pelo novo artigo 91-A. E não é só: ainda tomando-se como base o crime de rufianismo, caso o delito seja praticado com violência ou grave ameaça, a figura qualificada prevista no parágrafo primeiro do artigo 215 comina pena máxima de oito anos, de forma que, aí sim, poder-se-ia aplicar o confisco alargado, embora a circunstância que qualifica o delito não tenha qualquer relação com aspectos patrimoniais. Não é possível identificar, portanto, qualquer racionalidade por trás do critério fixado no novo texto legal.

Além disso, analisando-se as justificativas apresentadas nos projetos de lei que originaram a Lei Anticrime, observa-se, de maneira geral, a vinculação das alterações propostas à finalidade de coibir crimes específicos. O PL n. 882/2019, subscrito por Sérgio Moro, aduz expressamente que “este projeto tem por meta estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. Acrescenta ainda que as propostas de alteração legislativa enfrentam “os três aspectos, corrupção, organizações criminosas e crimes com violência, porque eles são interligados e interdependentes.”

O PL n. 10.372/18, por sua vez, deixa ainda mais evidente a finalidade específica que propõe ao confisco alargado, pois, diferentemente do texto promulgado, pretendia incluí-lo na Lei n. 12.850/2013, vinculado à prática dos crimes previstos em referida legislação e, portanto, com o claro intuito de coibir as organizações criminosas. Tanto é assim que na justificativa do projeto lê-se que “a constrição financeira das organizações criminosas é medida essencial para a eficaz persecução penal, retendo e decretando o perdimento dos bens e valores obtidos pela prática de infrações penais”.

Referidas circunstâncias tornam ainda mais questionáveis os motivos pelos quais o texto atualmente em vigor, que incluiu o confisco alargado no Código Penal (e não em lei específica como pretendia o PL n. 10.372/2018) não delimitou o cabimento da medida a determinadas práticas delitivas, mas somente à pena máxima abstratamente cominada ao crime objeto de prévia condenação.

Mas não é só. O PL n. 4850/2016, encabeçado pelo Ministério Público Federal, diferentemente dos demais, propôs a incidência do confisco alargado apenas no caso de condenação por delitos taxativamente previstos, como tráfico de drogas, peculato, corrupção ativa e passiva, etc. Ainda, a justificativa do projeto assevera que a introdução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro cumpriria com “diretrizes de tratados dos quais o Brasil é signatário” e adequaria “o sistema jurídico pátrio a recomendações de fóruns internacionais voltados a coibir o crime organizado”.

Conforme explica Roberto D’Oliveira Avila, três são os tratados existentes a respeito do assunto. Inicialmente, tem-se a Convenção de Viena de 1988 que, ao tratar do tráfico de drogas, “mencionou em seu texto, diversas vezes, a importância da recuperação de ativos para o sucesso da repressão e prevenção desejadas”[9]. No parágrafo 7º do art. 5º, adotou uma medida próxima aos contornos atuais do confisco alargado, ao dispor que “cada parte considerará a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem lícita do suposto produto ou outros bens sujeitos a confisco [...]”.[10] Disposições semelhantes são encontradas também nas Convenções de Palermo (2000) e de Mérida (2003).

Ocorre que, não sendo reproduzido na Lei n. 13.964/2019 o catálogo de crimes existente no referido Projeto de Lei, não se verifica também a coesão do texto legal com os objetivos assinalados nas citadas convenções internacionais, posto que não há vinculação do instituto aos crimes que estas visam coibir. A Convenção de Viena, como dito, estabelece o confisco como mecanismo de repressão ao tráfico de drogas, reconhecendo, por conseguinte, a necessidade de combate às organizações criminosas e lavagem de dinheiro. Por outro lado, as Convenções de Palermo e Mérida constituem, respectivamente, marcos legais no combate internacional das organizações criminosas e crimes de corrupção.

Além disso, o mesmo PL n. 4.850/16 também fala em harmonizar “a legislação brasileira com sistemas jurídicos de outros países que já preveem medidas similares”. Igualmente, porém, a redação atual destoa do que se observa em outros países a respeito do tema. Exemplificativamente, a legislação portuguesa, ao instituir o confisco alargado por meio da Lei 05/2002, vinculou expressamente o cabimento da medida à condenação prévia por determinados crimes taxativamente previstos na legislação, dispondo que

 

Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.[11]

 

Referido artigo 1º prevê algumas figuras delitivas às quais o confisco alargado estaria vinculado, como os crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros. A esse respeito, vale observar que Roberto D’Oliveira Vieira, ao analisar o confisco alargado da perspectiva do direito comparado, pontuou a existência, em Portugal, de um “catálogo de crimes”, asseverando inclusive a importância de referida delimitação legislativa. Em suas palavras,

A avaliação da pertinência de determinado crime com o instituto da perda alargada evita arbitrariedades na decisão legislativa e permite aferir, com mais segurança, o respeito ao princípio da proporcionalidade.

Busca-se evitar, com tal controle, que o novo instrumento de confisco recaia, também, sobre a criminalidade em geral, quando o objetivo principal do confisco alargado – ao menos desde o surgimento nas Convenções de Viena, de Palermo e de Mérida e nos atos da União Europeia – sempre foi atingir apenas os produtos relacionados a crimes lucrativos praticados em contexto estranho à criminalidade clássica.[12]

 

Não se sustenta, no presente estudo, que havendo um catálogo de crimes estariam sanadas as relevantes questões levantadas pela doutrina em relação à implementação do confisco alargado no Brasil. Permaneceriam, ainda após a fixação de um rol taxativo de delitos, os problemas relacionados à própria violação da presunção de inocência e inversão do ônus da prova, além de lacunas relacionadas a aspectos práticos da medida, como a (im)possibilidade de utilização de cautelares reais para sua garantia e a inexistência de um standart probatório coerente e isonômico para acusação e defesa. Além disso, mesmo os motivos que justificariam a introdução do confisco alargado no ordenamento jurídico pátrio já denotam suas inúmeras incompatibilidades com os princípios que regem o processo penal brasileiro. Veja-se, exemplificativamente, que no PL n. 4.850/16 foi expressamente consignada a necessidade de instituição da medida pelo fato de que “nem todas as infrações podem ser investigadas e punidas, inclusive por força das garantias constitucionais e legais dos cidadãos”. Referida afirmação, por si só, já evidencia o intuito declarado de supressão das garantias individuais que limitam o confisco “tradicional” a um crime concretamente considerado.

Porém, é inegável que caso fosse observado o catálogo de crimes existente em legislações estrangeiras, seria possível ter critérios mais objetivos que permitissem, em algum grau, relacionar a natureza do delito objeto da condenação à probabilidade de proveniência criminosa do patrimônio excedente do condenado. Longe de adequar o confisco alargado ao princípio da presunção de inocência, seria ao menos uma limitação lógica e coerente na aplicação de um instituto seriamente questionável.

A inexistência de um catálogo de crimes, assim, deixa ainda mais evidente a necessidade de reflexão e aperfeiçoamento dos mecanismos de combate à criminalidade, pois denota não apenas um afastamento das finalidades precípuas da medida e dos tratados internacionais que supostamente a legitimariam, mas também o seu inegável apelo populista e pretensão declarada de superação de princípios basilares de um estado democrático de direitos, sob a justificativa de combate aos “crimes do colarinho branco”.

[1]BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 11.04.2022.

[2]Convertido no PL n. 3855/2019, o qual atualmente aguarda a Constituição de Comissão Temporária pela Mesa, conforme informações obtidas junto à página da Câmara dos Deputados.

[3]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.8850/2016. Brasília. Câmara dos Deputados, 2016. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1448689&filename=PL+3855/2019+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+4850/2016%29>. Acesso em: 12.04.2022.

[4]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 10.372/2018. Brasília. Câmara dos Deputados, 2018. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0122p9w1pdprmwjgttgklarsqc38535653.node0?codteor=1666497&filename=PL+10372/2018>. Acesso em: 12.04.2022.

[5]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 882/2019. Brasília. Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019>. Acesso em: 12.04.2022.

[6]O PL n. 882/19 foi anexado ao PL n. 10.372/2018 e posteriormente convertido na Lei n. 13.964/19.

[7]BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Exposição de Motivos n. 00014/2019, de 31 de janeiro de 2019. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MJ/2019/14.htm>. Acesso em: 10.04.2022.

[8]SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal. v. 5. Parte especial: arts. 312 a 359-H do CP. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 158.

[9]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. 2017. 134 f. Dissertação (Mestrado em Direito - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2017, p. 20. Disponível em: <https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/handle/tede/2337>. Acesso em: 11.04.2022

[10]Convenção concluída em Viena, a 20 de dezembro de 1988. Incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991, após aprovação do Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1991/decretolegislativo-162-14-junho-1991-358232-textodaconvencao-pl.pdf>. Acesso em: 12.04.2022.

[11] PORTUGAL. Lei nº 5/2002. Lisboa, 11 de janeiro de 2002.Disponível em: <https://www.bportugal.pt/legislacao/lei-no-52002-de-11-de-janeiro > Acesso em: 12.04.2022.

[12]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. op. cit., p. 97.


Ana Beatriz da Luz, advogada e especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

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Da possibilidade de realização de interrogatório virtual do réu foragido

Por Bárbara Mostachio Ferrassioli e Ronaldo dos Santos Costa

Quando a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em data recente, declarou a impossibilidade de realização de interrogatório por videoconferência de réu foragido – o que se deu no âmbito do HC nº 640.770/SP, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, em 15/06/2021 –, o fez de maneira excessivamente simplista e desprovida da análise criteriosa e cautelosa que o tema exige.

Isso porque se utilizou, essencialmente, do argumento rudimentar de que realizar o interrogatório virtual do acusado em situação de fuga, seria equivalente a “premiar a condição de foragido”. Limitou-se a aplicar, como se nota, o princípio geral do Direito que assinala que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”, como se estivesse a solucionar simples caso de litigância de má-fé.

A partir dessa singela, e insuficiente, premissa – de estrutura muito mais política e utilitarista e muito menos técnica e democrática – concluiu-se pela inaplicabilidade do art. 220 do Código de Processo Penal, sob qualquer viés interpretativo, ao ato de interrogatório, em se tratando de réu foragido.

A decisão, contudo, parece não fornecer resposta juridicamente adequada ao debate. Talvez sirva ao propósito de agradar audiências acostumadas a festejar a supressão de garantias processuais penais daqueles que, pelo fato de responderem a uma acusação criminal, são comumente reduzidos à categoria de inimigos do Estado.

Nada obstante, a questão fulcral em torno deste debate, certamente não enfrentada pelo julgado supra referido, consiste em saber se é legítimo, ao Estado, no âmbito do processo penal, restringir a garantia constitucional da ampla defesa, condicionando o exercício do direito de autodefesa à disponibilidade da liberdade pelo cidadão. É, o direito de defesa, suscetível de barganha estatal?

A resposta a esse questionamento, desde que alinhada a um processo penal desenvolvido sobre bases democráticas e preocupado mais com as garantias do cidadão do que com a opinião pública, é, obrigatoriamente, negativa. E são várias as razões que alicerçam tal conclusão.

Por primeiro, convém rememorar que a recusa, por parte do cidadão, em dar cumprimento voluntário a uma ordem judicial de prisão contra si expedida não constitui fundamento idôneo, por si só, para considera-lo um sujeito que menospreza a aplicação da lei penal e, portanto, merece ser perseguido pelo Estado, inclusive mediante supressão de garantias fundamentais. Isso só poderia ser verdadeiro no âmbito de um direito penal de terceira velocidade, típico do funcionalismo sistêmico (em tese, inaceitável no direito penal brasileiro).

É plenamente legítima, destarte, a possibilidade de uma pessoa discutir a ordem de prisão que considera ilegal, enquanto conserva, no plano fático, o estado de liberdade que lhe foi suprimido no plano jurídico-processual. Tanto é assim que a legislação penal brasileira não tipifica a conduta de fuga (mas apenas de quem promove ou facilita a fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança detentiva – art. 351, CP).

O direito de resistência à ordem de prisão, aliás, encontra-se, há muito, reconhecido no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Recordemos, aqui, como não poderia deixar de ser, as palavras do Ministro Marco Aurélio, para quem “o simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC 84.851/BA. Julgado em 01/03/2005).

Nessa mesma ordem de raciocínio, mas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Paulo Medina, também há longa data, afirmara que “o réu tem direito de fuga, salvo se usar de violência contra a pessoa (art. 352 do Código Penal), quando então será punido nos termos da Lei Penal e não da Lei Processual Penal. Sancionar o réu por exercer um direito é inverter o ônus da responsabilidade pela sua fuga. A responsabilidade é do Estado, que não adotou as cautelas devidas para evitar a fuga.” (HC 35997 SP, Julgado em 11/10/2005).

Significa, grosso modo, que o sujeito investigado/acusado da prática de um crime que tem sua prisão processual decretada, não possui o dever de entregar, voluntária e espontaneamente, sua liberdade ao Estado, de modo que a ausência desse comportamento ‘altruísta’ ou ‘moralmente recomendável’ não pode ser utilizada em seu desfavor, com a supressão de direitos e garantias no bojo do processo penal democrático.

Essa constatação inicial nos permite uma primeira conclusão parcial quando comparada com a questão central objeto deste escrito: se um sujeito conserva seu direito (fundamental) de impetrar ordem de habeas corpus, ou de outro modo pleitear sua liberdade, enquanto resiste ao cumprimento do mandado de prisão – e o conserva pelo simples fato de ser sujeito de direitos em um Estado Democrático de Direito –, parece certo que também conserva seu direito (fundamental) de autodefesa enquanto não efetivada a ordem de prisão, até porque pode utilizar o ato de interrogatório justamente para se apresentar ao Estado-juiz, esclarecer sua versão sobre os fatos e contestar a determinação de prisão.

Analisemos a questão, agora, sob outro importante enfoque.

É de conhecimento generalizado que, em sua redação originária, já nos idos de 1948, o Código de Processo Penal condicionava o direito de apelar ao recolhimento do réu à prisão, prevendo, em seu artigo 594 que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto” e, em seu artigo 595, que “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação”.

Tais dispositivos foram revogados, respectivamente, pelo advento das Leis nº 11.719/08 e 12.403/11, que cumpriram o papel de positivar o entendimento então sedimentado no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores, inclusive por meio de Súmula nº 347 do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte redação: “o conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.

A lógica motora da gradativa mudança no cenário jurisprudencial da época, que precedeu as sucessivas (e necessárias) alterações legislativas acima referidas, consistiu numa percepção, pelos integrantes das mais altas Cortes do país, tão elementar quanto cara ao processo penal: a de que a garantia, constitucional e fundamental, da ampla defesa e do contraditório – com todos os recursos e meios a ela inerentes – não pode servir de moeda de troca à efetivação da prisão processual.

Nessa ótica, condicionar o exercício do direito de defesa ao recolhimento do acusado à prisão equivale, em última análise, à criação de uma sanção, de caráter eminentemente penal, para atendimento de uma finalidade utilitarista do processo criminal. É cercear o mais, a serviço do menos.

A ratio decidendi alcançada em tal discussão, como facilmente se vê, é em tudo aplicável à questão da (im)possibilidade do interrogatório virtual do réu em estado de fuga.

Em ambas as situações, percebe-se que o Estado, no anseio de efetivar a prisão processual do indivíduo foragido – o que seria atribuição das forças policiais, não do Judiciário, diga-se – faz (indevido) uso do processo penal, coibindo o exercício de direitos que constituem a base fundante do devido processo legal, notadamente a ampla defesa e o contraditório.

Afinal, em se reconhecendo, a garantia da ampla defesa, em sua dupla face (defesa técnica e autodefesa), como uma prerrogativa jurídica essencial do devido processo legal consagrado na Constituição Federal, que ampara, indistintamente, qualquer acusado (estando ele preso, ou não) em sede de persecução penal, tem-se como inconcebível qualquer comportamento tendente a restringir o pleno exercício do direito de defesa[1], seja no plano legislativo, seja no plano judicial.

No caso do interrogatório do réu foragido, aliás, a situação é ainda mais grave, pois inexiste proibição legal do exercício do direito de autodefesa em caso de fuga do acusado. Não se trata, portanto, de conflito entre lei e Constituição, como era o caso da proibição de apelar sem recolher-se preso ou prestar fiança, mas sim de deliberada criação de óbice à efetivação de garantia constitucionalmente assegurada.

Nessa perspectiva, tudo indica que o recente, e imaturo, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça na temática da vedação do interrogatório do réu foragido estampa verdadeiro retrocesso na seara dos direitos fundamentais alcançados com a revogação dos artigos 594 e 595 do Código de Processo Penal. É dizer, no lugar de promover meios para a materialização de princípios e garantias constitucionais, cria condições para impedir sua concretização.

Um terceiro ponto de vista é ainda possível, e recomendado, para enfrentamento da questão.

A razão de ser da proibição do interrogatório por videoconferência do réu foragido está diretamente relacionada aos efeitos da pandemia provocada pelo COVID-19, que promoveu ao status de regra os atos processuais virtuais, antes relegados à posição de exceção.

É evidente que, como toda mudança, a era da virtualização processual experimenta benefícios e, também, perdas, quando em comparação com a era dos processos físicos. Ganha-se, por exemplo, em celeridade e quantidade de julgamentos. Perde-se, por vezes, em qualidade.

O ponto é que as perdas inerentes à era digital não podem conduzir, absolutamente, à perda ou mitigação de direitos e garantias processuais penais. As formas devem, sempre, conformar-se ao direito que buscam efetivar, não o contrário.

Nessa ordem de ideias, forçoso reconhecer que a possibilidade de o réu, estando foragido, exercer regularmente seu direito de autodefesa sem ter imediatamente suprimida a sua liberdade – o que fatalmente ocorreria tivesse ele que se apresentar, pessoalmente, numa sala de audiência do edifício do fórum – é um dos tantos corolários lógicos e naturais da virtualização processual. Assim como o é a possibilidade de o Magistrado, o Promotor de Justiça e o Advogado compareceram a audiências e sessões de julgamento país afora sem saírem de suas residências.

Não se trata, pois, de avaliar se tal efeito é positivo ou negativo, pois tal análise seria meramente subjetiva e pouco produtiva. A análise neutra e imparcial da questão, como deve ser, só permite uma conclusão lógica: tecnicamente, a realização virtual das audiências, que tem sido a regra tanto em processos de réus soltos, quanto em processos de réus presos, criou condições fáticas (e físicas) para que o sujeito foragido compareça ao seu interrogatório sem ser imediatamente preso.

Vale lembrar, nessa perspectiva, que o Código de Processo Penal não veda a participação do réu foragido dos atos do processo e o artigo 185, por sua vez, preconiza o comparecimento do acusado “perante a autoridade judiciária”, na presença de seu defensor, para realização do interrogatório, nada dispondo sobre a obrigatoriedade desse comparecimento ocorrer de forma presencial.

A Constituição Federal de 1988, a seu turno, cuida de assegurar “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV). Por sua vez, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, também de envergadura constitucional (art. 5º, § 3º, CR/88), asseguram a toda pessoa acusada de um delito o direito de “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha” (Artigo 14, 3, b). Vê-se, pois, que nenhum dos diplomas normativos promove qualquer tipo de distinção quanto ao fato de o réu encontrar-se preso, ou não.

É inegável, destarte, que, no cenário atual, a audiência virtual é meio e recurso inerente ao exercício da autodefesa, sendo irrelevante, à luz da legislação adjetiva penal, da Constituição Federal e dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, se o acusado se encontra detido, em liberdade ou em estado fuga.

Aliás, tanto é possível a interpretação extensiva do artigo 222 do Código de Processo Penal que os interrogatórios continuaram – e continuam – acontecendo regularmente durante a pandemia e, como regra, de modo virtual.

Todas essas reflexões permitem concluir que a negativa da realização do interrogatório virtual a pretexto de “não se premiar o réu foragido”, para além de intolerável cerceamento das garantias da ampla defesa e do contraditório e do próprio direito (legítimo) de resistência, promove tratamento processual desigual sem esteio legal e transfere ao réu o ônus de suportar a deficiência do aparato estatal (Estado-polícia) em prender ou manter preso o cidadão, tratamento em tudo incompatível com os ideais democráticos orientadores do devido processo legal brasileiro.

O exercício do direito de defesa não se defere mediante barganha. Não se trata, em absoluto, de um prêmio que o Estado-juiz pode, ou não, ofertar ao acusado, a depender de seu “bom comportamento processual”. O interrogatório, que é tanto meio de defesa, quanto meio de prova, seguramente não é instrumento de efetivação da prisão processual, nem pode ser alijado do processo penal como forma de punição do acusado que se recusa a entregar voluntariamente sua liberdade ao Estado.

[1] Convém rememorar, nessa perspectiva, as precisas palavras do Ministro Celso de Mello, o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do "due process of law" e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu (...) Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal.” (STF HC 93503, Julgado em 02/06/2009).


Bárbara Mostachio Ferrassioli é advogada criminalista e coordenadora do núcleo de Direito Penal do escritório Karsptein Falavinha Advocacia.

Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista e sócio do escritório Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.


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