A (in)tempestividade recursal no processo eletrônico: boa-fé, cooperação processual e o PL nº 4.563/21
A história está diretamente relacionada com o desenvolvimento tecnológico, desde as técnicas para o fogo até a internet das coisas e inteligência artificial no âmbito da 4ª Revolução Industrial1. Nesse contexto, a sociedade tecnológica e informacional tem permitido diversos avanços nos mais diferentes segmentos, de modo que os autos de um processo judicial, antes materializados em papel, há tempos já tramitam de forma eletrônica, com sistemas eficazes e efetivos2. Tais sistemas disponibilizam diversas ferramentas, como a contagem dos prazos processuais. A título de exemplo, no caso do sistema Projudi, utilizado pela Justiça Estadual do Paraná, para cada intimação expedida o próprio sistema indica aos jurisdicionados o prazo para o cumprimento do ato processual, incluindo – automaticamente – na contagem os feriados, recessos e suspensões de expediente, e tudo é feito de forma exclusiva pelo sistema do Tribunal, sem qualquer interferência das partes. Contudo, há um problema, por exemplo, quando o sistema estabelece um determinado prazo contabilizando feriado local, e a parte ao interpor o recurso não comprova, nos termos do artigo 1.003, §6º do Código de Processo Civil, o referido feriado, de modo que o recurso é considerado intempestivo. Ocorre que, inadmitir um recurso por intempestividade em razão de uma contagem de prazo que é realizada pelo próprio tribunal, ofende, no mínimo, o princípio da boa-fé processual (CPC/2015, art. 5º) e o princípio da cooperação (CPC/2015, art. 6º). Se o sistema disponibiliza a contagem do prazo é de se esperar, evidentemente, que o jurisdicionado possa confiar na veracidade das informações prestadas pelo próprio tribunal. Por consequência, a parte não pode ser prejudicada em razão de equívoco no cálculo que não foi por ela realizado, mas, sim, pelo Estado. Nesta linha há decisões do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. INTEMPESTIVIDADE. VENCIMENTO DO PRAZO RECURSAL INDICADO ERRONEAMENTE PELO SISTEMA DE PROCESSO ELETRÔNICO DO TRIBUNAL DE ORIGEM. ERRO ALHEIO À VONTADE DA PARTE. POSSIBILIDADE DE REPERCUSSÃO NA CONTAGEM DO PRAZO. JUSTA CAUSA PARA PRORROGAÇÃO DO PRAZO RECURSAL. PRECEDENTES. AGRAVO PROVIDO PARA, RECONHECIDA A TEMPESTIVIDADE DO RECURSO ESPECIAL, DETERMINAR A DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM PARA QUE PROSSIGA NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. (AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1983116 - PR (2021/0289052-7). Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Julgado em 14 de fevereiro de 2022). (Grifos nossos).
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INTEMPESTIVIDADE. ALEGADO EQUÍVOCO DO SISTEMA ELETRÔNICO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (PROJUDI). JUSTA CAUSA. DEMONSTRAÇÃO. NECESSIDADE.
- No presente caso, a expedição de intimação eletrônica ocorreu em 2/10/2020. Nos termos do § 3º do art. 5º da Lei n. 11.419/2006, o prazo para a efetivação da intimação eletrônica ficta é de 10 dias corridos. Contado a partir do dia 3/10/2020, o prazo expirou em 12/10/2020. Ainda de acordo com o § 2º do art. 5º da referida Lei, como 12 de outubro não foi dia útil, considera-se que a consulta foi feita no próximo dia útil, ou seja, 13/10/2020, dia considerado como o de intimação da parte.
- Considera-se o dia do começo do prazo o dia 14/10/2020, segundo a dicção do art. 231, V, do CPC. Exclui-se o dia 14/10/2020, primeiro dia do prazo, segundo a norma do art. 224, caput, do CPC.
Prosseguindo-se na contagem de 15 dias úteis a partir de 15/10/2020, primeiro dia da efetiva contagem do prazo, exclui-se, além dos finais de semana, o feriado nacional de 2/11/2020, que não necessita ser comprovado. Após, a contagem é retomada em 3/11/2020, finalizando o prazo em 5/11/2020. No entanto, o recurso foi interposto somente em 26/11/2020.
- A Corte Especial do STJ firmou o entendimento de que o equívoco na indicação do término do prazo recursal contido no sistema eletrônico mantido exclusivamente pelo Tribunal não pode ser imputado ao recorrente. Precedentes.
- Entretanto, também conforme o entendimento deste Tribunal Superior, para a prorrogação do prazo é necessária a configuração da justa causa, que deve ser demonstrada de maneira efetiva. Precedentes.
- Este Tribunal Superior também já reconheceu que apenas o "print" do sistema não é servil à efetiva demonstração da justa causa: AgInt no AREsp 1.640.644/MT, Rel. Ministro Gurgel de faria, Primeira Turma, julgado em 31/08/2020, DJe 08/09/2020.
- Agravo interno não provido.
(AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.837.057/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 1/6/2022.). (Grifos nossos).
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO Nº 3/STJ. ANDAMENTO PROCESSUAL DISPONIBILIZADO PELA INTERNET. VENCIMENTO DO PRAZO RECURSAL INDICADO DE FORMA EQUIVOCADA NO ANDAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. ERRO ALHEIO À VONTADE DA PARTE. CONSIDERAÇÃO PARA FINS DA CONTAGEM DE PRAZO.
POSSIBILIDADE. JUSTA CAUSA PARA PRORROGAÇÃO DO PRAZO RECURSAL. ART. 183, §§ 1º E 2º, DO CPC/1973. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DA CONFIANÇA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.
- A divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação dos advogados em relação aos trâmites do feito. A jurisprudência deve acompanhar a realidade em que se insere, sendo impensável punir a parte que confiou nos dados assim fornecidos pelo próprio Judiciário. Ainda que não se afirme que o prazo correto é aquele erroneamente disponibilizado, desarrazoado frustrar a boa-fé que deve orientar a relação entre os litigantes e o Judiciário. Por
essa razão o art. 183, §§ 1º e 2º, do CPC determina o afastamento do rigorismo na contagem dos prazos processuais quando o descumprimento decorrer de fato alheio à vontade da parte. (REsp 1324432/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, CORTE ESPECIAL, julgado em 17/12/2012, DJe 10/05/2013).
- Embargos de divergência providos.
(EAREsp 688.615/MS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/03/2020, DJe 09/03/2020). (Grifos nossos).
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. RECURSO ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO FORA DO PRAZO RECURSAL. ERRO DE INFORMAÇÃO PELO SISTEMA ELETRÔNICO DO TRIBUNAL. BOA-FÉ PROCESSUAL. DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES E DO JUIZ. TEMPESTIVIDADE. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.
- A embargante defende a tempestividade de recurso especial interposto fora de seu prazo. Para tanto, não destaca a ocorrência de feriado local ou ausência de expediente forense, mas equívoco na contagem do prazo pelo sistema oficial (PJe) do Tribunal de origem.
- Não cabe às partes ou ao juiz modificar o prazo recursal, cuja natureza é peremptória. Porém, o caso dos autos não se trata de modificação voluntária do prazo recursal, mas sim de erro judiciário.
- De fato, cabe ao procurador da parte diligenciar pela observância do prazo legal para a interposição do recurso. Porém, se todos os envolvidos no curso de um processo devem se comportar de boa-fé à luz do art. 5º do CPC/2015, o Poder Judiciário não se pode furtar dos erros procedimentais que deu causa.
- O equívoco na indicação do término do prazo recursal contido no sistema eletrônico mantido exclusivamente pelo Tribunal não pode ser imputado ao recorrente. Afinal, o procurador da parte diligente tomará o cuidado de conferir o andamento procedimental determinado pelo Judiciário e irá cumprir às ordens por esse emanadas nos termos do art. 77, IV, do CPC/2015.
- Portanto, o acórdão a quo deve ser reformado, pois conforme a Corte Especial já declarou: "A divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação dos advogados em relação aos trâmites do feito. A jurisprudência deve acompanhar a realidade em que se insere, sendo impensável punir a parte que confiou nos dados assim fornecidos pelo próprio Judiciário" (REsp 1324432/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, DJe 10/5/2013).
- Embargos de divergência providos. (EREsp 1805589/MT, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/11/2020, DJe 25/11/2020). (Grifos nossos).
Embora a Corte Especial tenha decisões no sentido de reconhecer a tempestividade do recurso nas situações supramencionadas, não é raro que os jurisdicionados tenham que manejar recursos e mais recursos para que a decisão de inadmissibilidade por intempestividade seja revertida, o que abarrota ainda mais o Judiciário brasileiro3. Entretanto, vislumbra-se uma possibilidade de mudança de cenário, pois o PL nº 4.563/21, de autoria do Deputado Federal Carlos Bezerra do MDB/MT, prevê a revogação do §6º do artigo 1.003 do Código de Processo Civil. O referido projeto já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e aguarda aprovação do Senado Federal4. Nesse contexto, verifica-se que, embora o avanço tecnológico tenha possibilitado, entre tantas coisas, o sistema processual eletrônico, que, inclusive, faz a contagem automática dos prazos processuais, precisamos avançar para evitar que os jurisdicionados sejam prejudicados com eventual inadmissibilidade de recurso por intempestividade, quando há, por exemplo, erro no cálculo feito pelo próprio tribunal. É preciso fazer valer a confiança que as partes depositam nos atos estatais, a boa-fé e a cooperação processual, pois são princípios estruturantes, que devem ser lidos e aplicados – inclusive – no cenário de avanços tecnológicos, de maneira a não prejudicar aquele que confia e utiliza ferramenta disponibilizada pelo próprio Estado, sendo possível que, neste contexto, o PL nº 4.563/21 traga mudanças significativas em prol do jurisdicionado.
Mariane de Matos Aquino
Advogada criminalista. Professora. Mestre em Direito pela PUC-PR. Especialista em Direito Penal Econômico e Processo Penal pela PUC-PR. Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB Londrina.
Rafael Garcia Campos
Advogado criminalista. Especialista em garantías constitucionales de la investigación y la prueba en el proceso pela Universidad de Castilla-La Mancha, em Toledo (Espanha), e especialista em crimen organizado, corrupción y terrorismo pela Universidade de Salamanca (Espanha).