Por Caio Marcelo Cordeiro Antonietto[1], Rafael Guedes de Castro[2] e Douglas Rodrigues da Silva[3]
Em julho do corrente ano, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento conjunto de quatro mandados de segurança[4] impetrados por empresas que se insurgiam em relação a alguns aspectos da dinâmica dos acordos de leniência. Especificamente, o objeto da controvérsia apreciada pela Corte dizia respeito à possibilidade do Tribunal de Contas declarar a inidoneidade de pessoas jurídicas que tenham firmado acordos de leniência com outras instituições públicas.
Malgrado a discussão ainda não tenha sido concluída na Suprema Corte, o caso concreto apresenta peculiaridades dignas de realce diante da sistemática então adotada na feitura dos acordos de leniência no país. O pano de fundo da discussão, na hipótese, diz respeito à segurança jurídica dos acordos. Em que pese os avanços da Lei Anticorrupção na regulamentação do acordo de leniência no âmbito das infrações praticadas por pessoas jurídicas contra a administração pública, a Lei não apresenta uma sistemática unificada no que atine às tratativas e assinatura do acordo. Isso acarreta diversos problemas práticos aos eventuais pretendentes aos benefícios do instituto colaborativo, o principal deles reside na inconstância das instituições públicas em relação ao leniente. Não é incomum que o acordo firmado por uma instituição seja desconsiderado por outra, gerando incertezas quando às vantagens da postura colaborativa.
No caso em comento, o Ministro Gilmar Mendes, na condição de relator dos remédios constitucionais impetrados, apresentou importantes contribuições nessa seara. Conforme pontuou, os espaços de consenso têm ganhado relevância na dinâmica processual brasileira e, de forma crescente, são utilizados em âmbito penais, como a colaboração premiada, e demais esferas jurídicas, como é o caso da leniência. Isso traz à baila a necessidade de se discutir os diversos regimes do acordo de leniência que convivem paralelamente na rotina brasileira. Compreender e estabelecer uma dinâmica única poderia otimizar o uso desses instrumentos colaborativos e, a um só tempo, auxiliaria o Estado na obtenção de relevantes informações no combate à corrupção e se apresentaria como benéfica à pessoa jurídica afetada.
Desse modo, um verdadeiro alinhamento e uma cooperação institucional séria entre os diversos órgãos que compõem o microssistema anticorrupção contribuiria demasiadamente na sedimentação dos acordos de leniência como uma opção viável às empresas afetadas. Apresentar-se-ia como um garantidor da segurança jurídica desses acordos, trazendo maior confiança às empresas que optam em negociar benefícios com o Estado em troca de uma menor sanção (ou até mesmo o afastamento dessa punição).
Não se pode perder de vista que a crescente complexidade da organizações empresariais, sobretudo aquelas que possuem relações com o Estado, pode se apresentar como um terreno fértil à ilegalidade e, por isso mesmo, a sedimentação de um instrumento de colaboração que preveja a remessa de informações por parte da própria empresa pode ser benéfico à persecução da infração. Como alerta Athayde[5], quanto mais difícil de se detectar uma ilicitude, maior devem ser os benefícios oferecidos a quem queira colaborar. Até porque, nesses casos, a tendência seria o acobertamento. Portanto, os acordos de leniência devem vir como opção a essa “regra”, oferecendo um caminho viável à empresa ao mesmo tempo que serve de ferramenta imprescindível ao estado.
Eis aí o ponto crucial em se debater a necessidade de critérios mais seguros à realização do acordo.
Seguindo nessa tendência, recentemente sobreveio uma proposta de Acordo de Cooperação Técnica entre os diversos órgãos públicos que se encarregam do combate à corrupção no país. Numa ação inédita, Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) – sem a subscrição da Procuradoria Geral da República após Nota Técnica apresentada pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção / Comissão Permanente de Assessoramento para Acordos de Leniência e Colaboração Premiada do Ministério Público Federal (MPF) – apresentaram um plano de unificação e atuação conjunta na negociação de acordos de leniência.
A ideia, de maneira geral, vem com o propósito de unificar os procedimentos institucionais nas negociações e requisitos do acordo, permitindo que o leniente, numa só vez, consiga assegurar os benefícios propostos em todas as esferas de controle, não correndo o risco de ver sua colaboração se esvaziar diante da atuação isolada de órgão que eventualmente não aderiu à proposta de leniência.
Essa atitude interinstitucional emerge num momento de crucial importância na atividade desses órgãos e, sobretudo, se apresenta como uma proposta de solução ao maior entrave no momento de se optar pela autodenunciação: o possível conflito entre as agências de controle.
Como destacou o Sebastião Botto de Barros Tojal, já em 2019[6], não fazia sentido o distanciamento entre AGU/CGU e do Ministério Público. Embora o MP tenha por costume compreender que o objetivo da leniência é a colaboração com a investigação e a CGU/AGU, por sua vez, compreendam que ela se presta à reparação dos danos, vê-se que ambos os entendimentos não são inconciliáveis. Ao revés. É certo que uma atuação conjunta que prime não só pela colaboração, mas também pela efetiva reparação do dano, tende muito mais a trazer benefícios que prejuízos. E não só. Seria uma oportunidade única de maximizar a expertise entre os diversos polos institucionais.
E o atual acordo de cooperação se mostra, numa primeira vista, afinado com tal objetivo. Segundo se extrai do documento conjunto, os subscritores se preocuparam em estabelecer parâmetros seguros de atuação conjunta dos órgãos de controle, possibilitando uma otimização dos trabalhos e, principalmente, solidificando a segurança jurídica necessária para despertar o interesse das empresas nesse instrumento de colaboração. Isso, como primeira consequência, tem por finalidade demonstrar à pessoa jurídica que ela pode se dirigir a uma única mesa de negociação e ter a certeza de que os benefícios ali estipulados serão observados pelas demais agências. Não haverá riscos de se beneficiar por um lado e se retirar de outro.
Seria, pois, um grande passo inicial na tentativa de se construir uma cultura empresarial afinada com os deveres de compliance e, ao mesmo tempo, passa um recado importante sobre a atuação conjunta e organizada do Estado no momento de negociar eventual colaboração.
Outro ponto de destaque, nesse sentido, pode ser visto na proposta de unificação dos parâmetros de cálculo dos compromissos pecuniários exigidos no acordo. Essa proposta vem muito a calhar diante dos patentes conflitos entre os mecanismos de cálculo adotados pelo Ministério Público e o Tribunal de Contas, por exemplo. Se levada a efeito, como se pretende, a unificação permitirá uma metodologia específica e segura na negociação do acordo, reduzindo eventuais discrepâncias e apresentando a certeza ao leniente de que não pagará nem mais e nem menos do que lhe foi proposto. Novamente, uma oportunidade de concretização da segurança jurídica também em relação aos efeitos reparatórios do acordo.
À vista disso, embora seja preciso esperar a aplicação prática desse instrumento, já se pode vislumbrar contundentes efeitos positivos na unificação das práticas negociais no acordo de leniência. De um lado, otimiza-se a expertise das diversas instituições de controle, permitindo ao Estado uma melhor eficiência nos resultados das ações de combate à corrupção. De outro, ganha a empresa, que terá a segurança jurídica e os incentivos necessários para se utilizar do acordo de leniência. Há potencial para grandes avanços.
[1] Doutorando em Direito pela Universitat Pompeu Fabra. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[2] Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de Direito Processual Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[3] Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Professor de Direito Penal. Advogado Criminal. Sócio do Antonietto e Guedes de Castro Advogados Associados.
[4] Mandado de Segurança 35.435, 36.173, 36.496 e 36.526
[5] ATHAYDE, Amanda. Manual dos acordos de leniência no Brasil: teoria e prática. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 31.
[6] TOJAL, Sebastião Botto de Barros. Perspectivas para segurança jurídica dos acordos de leniência. Revista CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-05/leniencias-questao-perspectivas-seguranca-juridica-acordos-leniencia. Acesso em: 06 ago. 2020.
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