Por Francisco Monteiro Rocha Jr[1] e João Vitor Grycajuk[2]
Em 18 de dezembro de 2019[3], o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus n 163.334 no qual, por maioria, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, fixou a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”[4].
Pode-se concluir, a partir da decisão em análise, que a Suprema Corte brasileira sedimentou o entendimento de que é passível de sanção penal o mero não pagamento de dívida perante o Estado uma vez que, na hipótese considerada, o contribuinte, sem fraude, declara o valor devido e não realiza o respetivo pagamento. Tem-se assim a criminalização do ICMS declarado e não recolhido pelo contribuinte, em operação própria.
Existem inúmeros pontos controversos na decisão destacada que podem aqui ser abordados. Por conta dos limites impostos ao presente ensaio, optamos por realizar uma discussão topográfica sobre o tema, sem que qualquer aspecto fosse devidamente verticalizado, o que deverá ser realizado em outra oportunidade.
Inicialmente, pode-se sustentar que é incompatível com a Constituição Federal do Brasil a utilização do Direito Penal para os interesses próprios do Estado ou ainda como instrumento de política social e muito menos para instituir um instrumento exclusivamente arrecadatório do Estado. Tal fenômeno já foi definido por vários autores como sendo a administrativização do Direito Penal (TANGERINO, CANTERJI, FIGUEIREDO DIAS, ZAFFARONI, BATISTA, TAVARES) que, resumidamente pode ser definido como a utilização do direito penal não para punir condutas que ofendem bens jurídicos em sentido retributivo ou preventivo, mas para forçar pagamento de dívida. Ao contrário do art. 1º da Lei 8.137/1990 que penaliza os fraudadores do sistema tributário, a interpretação que foi dada pelo STF ao art. 2º teria o condão de institucionalizar a prisão por dívida tributária. Em síntese, trata-se de forçar o cidadão a realizar um pagamento (cujo atraso até então era penalmente irrelevante) para somente assim evitar a intervenção do direito penal.
Outra perspectiva faz exsurgir (mais uma vez!) o debate relacionado à prisão por dívida, assim regulada pela Constituição Federal de 1988: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (art. 5º, inciso LXVII). O âmbito dessa discussão que deve ser trazida à tona diz respeito à existência (ou não) de diferenciação entre prisão civil e prisão tributária. Trata-se de debate já enfrentado por Hugo de Brito Machado, que assim se manifestou sobre o tema:
Admitir que a Constituição, ao vedar a prisão civil por dívida, não está proibindo também a definição da dívida como crime, é outorgar ao legislador ordinário ferramenta que lhe permite destruir completamente a supremacia constitucional. Na interpretação da norma jurídica, especialmente da norma da Constituição, tem-se de ir além do elemento meramente literal. É preciso buscar a realização dos objetivos que a norma tende a alcançar, os valores humanos que tende a realizar.[5]
Rememore-se que abordamos aqui apenas a decisão do RHC nº 163.334/STF que criminalizou o não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita, sendo que na realidade há apenas uma obrigação tributária não cumprida que gerou uma mera inadimplência com o Fisco. O mesmo autor verticaliza a discussão, em passagem que deve ser citada:
A norma da Constituição que proíbe a prisão por dívida protege o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito. Isto não quer dizer que o direito de receber um crédito restou sem proteção jurídica. Quer dizer que essa proteção não pode chegar ao ponto de sacrificar a liberdade corporal, a liberdade de ir e vir. Limita-se, pois, a proteção do direito de receber um crédito ao uso da ação destinada a privar o devedor de seus bens patrimoniais, que poder ser afinal desapropriados no processo de execução.[6]
Evidencia-se assim, que a decisão do Supremo Tribunal Federal padece de inconstitucionalidade pelo motivo de possibilitar a prisão por dívida do devedor tributário.
Consigne-se, ainda sobre o ponto, que além da própria Constituição não ter recepcionado o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 nos moldes adotados pelo Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334, é de incidir na espécie o Pacto São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário, e que nos levaria à mesma conclusão.
Além da (in)constitucionalidade da prisão por dívida no RHC 163.334, salienta-se que a tese oriunda do julgamento fere determinados princípios do Direito Penal que estabelecem a não criminalização da conduta analisada, tais como o a) in dubio pro reo; b) o princípio da legalidade; c) a lesividade/ofensividade; e d) a intervenção mínima.
Pode-se sustentar que o princípio do in dubio pro reo ou da presunção de inocência seria atacado na medida em que a decisão analisada consente com uma modalidade de dolo presumido incompatível com o regime jurídico aplicável à espécie. Sobre o ponto, merece destaque trecho do Recurso Ordinário Constitucional interposto pela Defensoria de Santa Catarina.
Porque o ICMS pode não ser repassado, de modo que a tipicidade dependeria da demonstração efetiva desse repasse, não bastando partir de uma presunção baseada na “prática costumeira”, sob pena de ofensa à presunção de inocência.[7]
O princípio da legalidade, por seu turno, é corolário tanto do Direito Penal quanto do Direito Tributário e está previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. Pode-se perceber sua violação em ao menos dois momentos.
Primeiramente, porque a tipificação do delito de apropriação indébita tributária diz respeito apenas aos casos de substituição tributária. Assim, presumir que o tipo penal também se relaciona com o ICMS em operação própria caracteriza analogia in malam partem, o que é vedado pelo referido princípio, como já nos explicou MACHADO:
A elementar “tributo cobrado” diz respeito aos casos de substituição tributária, de modo que subsumir ao tipo penal também a hipótese de ICMS próprio “cobrado” dos consumidores significaria uma violação à legalidade penal (proibição de analogia)[8].
Na mesma senda, a tese emanada pelo Supremo Tribunal Federal criou nova tipificação penal por via jurisprudencial, uma vez que o art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 não pode simplesmente ser comparado e aproximado do delito de apropriação indébita, analogicamente ou por fusão de elementares do tipo, dando origem a um novo tipo penal denominado apropriação indébita tributária e ferindo diretamente o princípio da legalidade. Como explicam ESTELLITA e PAULA JÚNIOR:
A possibilidade da criação doutrinária e/ou jurisprudencial de uma nova figura penal a partir da fusão de elementares de normas incriminadoras em vigor para ampliar o espectro de incidência de uma restrição a direito fundamental é de duvidosa constitucionalidade (princípio da legalidade, art. 5º, XXXIX, CF)[9].
Temos em terceiro plano o princípio da ofensividade ou lesividade que aduz que não há crime se não há lesão ou perigo real de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Portanto, o mero inadimplemento do ICMS sem uma conduta fraudulenta não pressupõe perigo, muito menos lesão, ao bem jurídico tutelado.
Segundo o princípio da intervenção mínima, o Direito Penal apenas interferirá em questão de máxima importância em que as demais áreas do Direito não sejam capazes de resolver. No caso do RHC nº 163.334/STF resta evidenciado que houve uma intervenção penal além do devido, uma vez que a questão poderia ter sido resolvida sem a coerção estatal, mediante novo parcelamento, por exemplo.
Para que exista a caracterização o delito de “apropriação indébita tributária”, é imprescindível que haja uma conduta extra para que a mera inadimplência tributária se torne mais reprovável e realmente atinja um bem jurídico, uma vez que é proibida a criminalização de meras desobediências.
Portanto, pode-se concluir que a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Ordinário Constitucional em Habeas Corpus nº 163.334 foi equivocada, uma vez que contraria princípios fundamentais do Direito Penal e da Constituição Federal. Trata-se de uma indevida administrativização do direito penal, da constitucionalização de uma modalidade de prisão por dívida, de ofensa à legalidade, além de um ataque à intervenção mínima.
[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor, Mestre e Especialista pela UFPR. Coordenador geral da área de Direito e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDE). Advogado criminalista.
[2] Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela ABDConst. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela PUCMG. Bacharel em Direito pela UFPR. Advogado criminalista.
[3] O acórdão respectivo não foi publicado até a data em que vem a público esse rápido ensaio.
[4] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…) II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
[5] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 414.
[6] Idem
[7] STF – RHC: 163334 SC – SANTA CATARINA, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 11/02/2019, Data de Publicação: DJe-029 13/02/2019.
[8] Idem.
[9] ESTELLITA, Heloisa. PAULA JUNIOR, Aldo de. O STF e o RHC 163.334: uma proposta de punição da mera inadimplência tributária? Jota. 10/12/2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/o-stf-e-o-rhc-163-334-uma-proposta-de-punicao-da-mera-inadimplencia-tributaria-10122019#sdfootnote2anc>. Acesso em: 20.fev.2020.