Danyelle Galvão[i]

Há muito se trata sobre a possibilidade de reparação civil decorrente de ilícito penal, tendo previsão legal em vários diplomas diferentes no país. O Código Civil, em seu art. 935, prevê que a responsabilidade civil independe da criminal, mas estabelece que não se pode mais questionar, na esfera cível, sobre “a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

Por sua vez, o Código de Processo Civil dispõe, em seu art. 515, inciso VI, inciso II, que a sentença penal condenatória é título executivo judicial. Já no âmbito penal, a disposição do art. 91, inciso I do Código Penal estabelece que é efeito da condenação criminal “a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”. E, por sua vez, o Código de Processo Penal prevê (art. 63) a execução da sentença penal para o efeito de reparação do dano, sem excluir a possibilidade de proposição de ação civil ex delicto no juízo cível (art. 64).

Uma leitura atenta e dependente dos artigos supra mencionados conduzem à conclusão que, apesar das searas penal e civil serem independentes, têm estreita e direta ligação no que se refere ao dever de indenizar.

Apesar de todas estas disposições legais e da independência das instâncias, o Código de Processo Penal foi alterado em 2008 para incluir o inciso IV ao art. 387 e possibilitar a fixação, perante o juízo criminal, de valor indenizatório.

Diante deste panorama, tem-se como objetivo analisar a disposição legal relativa à fixação de valor mínimo de reparação civil pelo juízo criminal quando da sentença condenatória e algumas questões controvertidas sobre o tema.

 

1) Critérios de fixação de valor mínimo pelo juízo criminal

 

Como dito, a Lei n. 11.719/2008, que alterou o Código de Processo Penal, inovou ao permitir, no art. 387, inciso IV, pretensão indenizatória cível na seara criminal, pois dispõe que o juiz, ao proferir sentença condenatória, “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Além disto, a mesma lei incluiu um parágrafo único ao art. 63 do Código de Processo Penal, que trata da execução da reparação do dano poderá ser efetuada pelo valor fixado em sentença (art. 387, IV, CPP), sem prejuízo de eventual liquidação no juízo cível.

Apesar da importância de estabelecimento de critérios para fixação do valor mínimo no juízo criminal, o assunto não encontra muita discussão na doutrina. Evidentemente que só poderá haver fixação de valor mínimo indenizatório quando o acusado for condenado, afinal, trata-se de pedido secundário na ação penal e detém relação de dependência com o pedido condenatório propriamente dito. Ademais, só pode haver condenação quando houver ação ou omissão do agente, dano, prova da sua ocorrência e que “permitam ao juiz aferir a extensão do dano ou ao menos ter algum parâmetro para tanto”[ii].

Para a fixação de valor de reparação civil em sentença penal, além da autoria e materialidade do crime, devem ser utilizados os mesmos critérios adotados pelo juízo cível para a fixação do quantum indenizatório[iii], destacando-se que “a reparação do dano não pode converter-se em fonte de enriquecimento da vítima”[iv].

Entende-se que a melhor forma de fixação de valor a título de dano material, mesmo que em seu patamar mínimo, é de acordo com o estabelecido no art. 944 do Código Civil, medindo-se a indenização em razão da extensão do dano[v], sempre de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Com relação ao dano moral[vi], solução é trazida pela doutrina e consagrada na jurisprudência. Segundo Rui Stoco, “impõe-se a obediência ao que podemos chamar de ‘binômio do equilíbrio’, cabendo reiterar e insistir que a compensação pela ofensa irrogada não deve ser fonte de enriquecimento sem causa para quem recebe, nem causa da ruína para quem dá. Mas também não pode ser tão apequenada que não sirva de punição e desestímulo ao ofensor, ou tão insignificante que não compense e satisfaça o ofendido, nem o console e contribua para a superação do agravo recebido”[vii].

Entretanto, a condenação à reparação de danos em sentença penal deve guardar consonância direta com a ação/omissão praticada pelo agente e a medida da sua culpabilidade, sob pena de ofensa à individualização da pena e enriquecimento ilícito do beneficiário dos valores indenizatórios. Este aspecto vem ganhando espaço de discussão no âmbito da jurisprudência dos tribunais pátrios, especialmente após o início da Operação Lava Jato, cujas denúncias geralmente apresentam pedido de condenação em reparação civil sem apontamento específico – ou qualquer correlação – entre ação/omissão do agente e valores pleiteados, apontando-se apenas o valor total a ser ressarcido pelos acusados.

Sobre estes pedidos de reparação total de forma solidária entre todos os acusados, sem qualquer distinção em relação à ação de cada agente, vem o Superior Tribunal de Justiça dispondo que “o valor do dano deva estar diretamente vinculado à conduta do agente e àquilo que foi a ele imputado no processo”, e que a condenação “não pode gerar para o recorrente o dever de indenizar que ultrapasse os limites da vantagem cujo recebimento lhe foi imputado”[viii].

Com razão este posicionamento jurisprudencial, por algumas razões. Primeiro porque o art. 927 do Código Civil, que inicia a disciplina sobre a responsabilidade civil – justamente a questão ora discutida, mesmo que fixada no âmbito penal -, estabelece que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Por sua vez, o art. 186 do mesmo diploma legal dispõe expressamente que comete ato ilícito aquele que, por “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”. Não restam dúvidas que o Código Civil condiciona a reparação do dano à existência de uma ação ou omissão do agente. Assim, não atende aos postulados de direito civil a eventual condenação à reparação de danos que não foram causados pelas suas ações ou omissões, merecendo reforma, tal como vem sendo operada pelo Superior Tribunal de Justiça, apontado acima.

Depois porque, tal como a pena criminal (privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa), a reparação de danos requerida no âmbito penal está diretamente ligada à conduta do agente, sob pena de responsabilização por fato de terceiro e ofensa aos parâmetros previstos no art. 59 do Código Penal.

 

2) Termo inicial da execução e liquidação da sentença penal que fixa valor mínimo de reparação de danos

 

Proferida sentença condenatória criminal com a fixação de valor mínimo de reparação civil, passa-se a discutir o termo inicial para que seja promovida a execução na esfera cível, além do regime submetido e meios de defesa cabíveis.

A Constituição Federal, no seu art. 5o, inciso LVII, prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”[ix]. Recentemente o Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 43. 44 e 54, estabeleceu que a execução da sentença penal condenatória somente é possível após o trânsito em julgado, garantindo-se, portanto, efeito suspensivo aos recursos especiais e extraordinários.

Apesar do valor mínimo de reparação civil ter natureza indenizatória, entende-se que foi fixada em sentença criminal, sendo indissociável do restante da condenação contida naquele decisum. Desta forma, tal como é feito em relação às penas privativas de liberdade, restritivas de direito ou de multa fixadas pelo juízo criminal, é imprescindível observância da garantia da presunção de inocência – e efeito suspensivo dos recursos – também para a condenação em reparação civil[x].

O próprio Código de Processo Civil, no seu art. 515, inciso VI, dispõe expressamente sobre o tema quando dispõe que é título executivo judicial a sentença penal condenatória transitada em julgado. Ou seja, a execução do valor mínimo fixado na sentença criminal só será possível após o trânsito em julgado da decisão, não havendo o que se falar em autonomia dos capítulos da sentença que embasaria eventual execução provisória da parte indenizatória[xi].

 

3) Conclusão – apontamentos críticos sobre a fixação de valor mínimo de reparação civil na esfera criminal 

 

É fácil verificar que a aplicação deste novo instituto vem causando debates e controvérsias. O apontamento de Antonio do Passo Cabral, feito há 10 anos, permanece atual: “aplicação prática destes novos dispositivos vem criando uma série de problemas e fomentando grande número de indagações sobre seu correto tratamento”[xii].

Ao nosso ver, a modificação legislativa operada no Código de Processo Penal, que tinha como intuito dar maior importância à vítima e garantir a celeridade processual para satisfazer dever indenizatório, não alcançou todos seus objetivos de maneira plena.

Primeiro porque há enorme discussão, sobre a legitimidade para a realização do pedido nos autos, exigindo-se, na maioria das vezes, a intervenção do ofendido ou representante como assistente litisconsorcial[xiii].

Depois porque a fixação de valor relativo ao dano depende de prova, mas a persecução penal tem como intuito primeiro a verificação sobre a existência do fato, sua autoria e materialidade, não a discussão alongada e instrução probatória sobre eventual extensão do prejuízo de natureza civil.

Ademais, porque compete ao juízo criminal apenas a fixação de valor mínimo a título de reparação de danos. Ou seja, tem-se uma sentença parcialmente líquida para posterior execução no cível, restando possível ainda rediscussão e/ou apuração do valor efetivo em sede de liquidação de sentença ou ação civil própria.

Melhor seria, portanto, manter o tratamento anterior dado à matéria, com a independência relativa das instâncias e possibilidade de execução cível da sentença penal transitada em julgado (art. 63, caput, CPP), ou propositura de ação civil de conhecimento para reparação de danos (art. 64, CPP), revogando-se o parágrafo único do art. 63, bem como do inciso IV do art. 387, ambos do Código de Processo Penal.

No entanto, considerando a atual vigência do dispositivo, o melhor é o estabelecimento de critérios precisos para a fixação dos valores cíveis no âmbito criminal, especialmente quanto a necessária correlação entre a conduta do agente e o valor a ser reparado, evitando-se responsabilização por fato de terceiro ou ofensa aos ditames dos arts. 186 e 927 do Código Civil e art. 59 do Código Penal.

 

Referências bibliográficas

 

ARAÚJO, Alexandre Mota Brandão de. Indenização cível como capítulo da sentença penal. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, ano X, n. 58, out/nov. 2009.

BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2012.

CABRAL, Antonio do Passo. O Valor Mínimo da Indenização Cível Fixado na Sentença Condenatória Penal: Notas sobre o Novo Art.387, IV do CPP. Revista da Emerj, v. 13, n. 49, 2010.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Efeitos civis e processuais da sentença condenatória criminal – reflexões sobre a Lei n. 11.719/2008. RDPP, n. 56, jun/jul 2009.

COUTO E SILVA, Clóvis do. O conceito de dano no Direito brasileiro e comparado. São Paulo: RT, 1991.

FILIPPO, Thiago Baldani Gomes de. A valorização da vítima e o valor mínimo de indenização em sentença penal condenatória. Revista Jurídica, ano 59, julho de 2011, n. 405.

Galvão, Danyelle da Silva. Aspectos polêmicos da sentença penal condenatória que fixa valor mínimo de reparação de danos e sua execução e liquidação no juízo cível. In: Revista brasileira de ciências criminais, v. 24, n. 123, set. 2016.

HERTEL, Daniel Roberto. Aspectos processuais civis decorrentes da possibilidade de fixação de indenização civil na sentença penal condenatória. Revista da Ajuris, v. 36, n. 114, junho de 2009.

KROSKA, Renata Caroline. Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória. Revista Brasileira de Direito Processual, ano 22, n. 88, out/dez 2014.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 12a edição. São Paulo: Atlas, 2020, p. 975.

MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 20a edição. São Paulo: Atlas, 2012.

SILVA, Marco Antônio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva, 2012.

STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. Doutrina e Jurisprudência. 8a edição. São Paulo: RT, 2011.


[i] Advogada, Mestre e Doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, galvaodanyelle@gmail.com


[ii] CABRAL, p. 310. O mesmo autor, na p. 326, defende que poderá haver condenação em danos morais caso haja provas nos autos, em que pese reconhecer que para a reparação deste dano muitas vezes é necessária prova mais alongada.

[iii] Neste sentido também, tem-se HERTEL, p. 68.

[iv] STOCO, p. 152. Clóvis do Couto e Silva aponta importância de se impedir que “através da reparação, a vítima possa ter benefícios, vale dizer, possa estar numa situação econômica melhor do que aquela em que se encontrava anteriormente ao ato delituoso”. COUTO E SILVA, p. 11.

[v] Com este posicionamento, tem-se STOCO, p. 152; HERTEL, p. 68.

[vi] Parte da doutrina sustenta que o pedido e eventual condenação são impossíveis, visto que “a expressão valor mínimo é indicativa de que os danos a serem considerados são os materiais”. SILVA, p. 594 e no mesmo sentido FILIPPO, p. 108; PACELLI, FISCHER, 2020, p. 771; e SILVA, FREITAS, p. 594. Inclusive este foi o posicionamento do TJSP – apelação n. 0006566-81.2008.8.26.0002 – 14a CCrim – rel. Miguel Marques e Silva – j. 12/02/2015 – registro 25/02/2015: “a indenização por danos morais ou extrapatrimoniais é pretensão que não compete ao juízo criminal conhecer, cumprindo, acaso expressamente requerida pela vítima ou seus familiares, o que não também é o caso, ser apreciada no âmbito cível”. Por outro lado, com posicionamento com o qual se concorda, tem-se doutrina que defende a possibilidade de cumulação de dano moral, ante a inexistência de restrição na disposição legal. CABRAL, p. 316;  HERTEL, p. 67; RANGEL, p. 579 e BADARÓ, p. 372.

[vii] STOCO, p. 152.

[viii] STJ – 5ª T. – AgRg no REsp 1765139 – rel. Min. Felix Fischer – j. 23/04/2019 – DJe 09/05/2019 – RSTJ vol. 254 p. 994. Do acórdão ainda se extrai que “não se mostra razoável admitir que o réu seja condenado a arcar, sozinho, com todo esse montante, já que inexiste prova de que ele tenha sido beneficiado com o valor integral”.

[ix] Trata-se da garantia da presunção de inocência. A este respeito, vide a obra de MORAES, 2010.

[x] Apesar de não adentrar à discussão específica sobre o termo inicial, Daniel Roberto Hertel estabelece que é executável a sentença transitada em julgado. HERTEL, p. 69.

[xi] Com posicionamento diverso, tem-se Alexandre Mota Brandão de Araújo ao sustentar a possibilidade de execução provisória do capítulo da sentença condenatória relativa à indenização civil, desde que apresentada caução, por aplicação analógica do art. 475-O do Código de Processo Civil. ARAÚJO, p. 106. Sabe-se que após o trânsito em julgado da sentença condenatória, desde que sejam cumpridos determinados requisitos legais, surge a possibilidade de propositura de revisão criminal. Desta forma, entende-se que em havendo reversão da condenação, haverá a extinção da execução e/ou liquidação da sentença sem ônus ao acusado. E em já tendo sido satisfeita a obrigação na esfera cível, nasce o direito ao acusado de propor ação de regresso para reaver o valor pago indevidamente.

[xii] CABRAL, p. 307. Uma análise mais aprofundada sobre o tema é encontada em Galvão, 2016.

[xiii] A legitimidade é a questão mais controvertida na doutrina ao tratar do tema de reparação civil pela sentença penal. Isto porque são, pelo menos, quatro posicionamentos conflitantes a este respeito. Renata Caroline Kroska aponta que o pedido pode ser feito pelo Ministério Público, “não havendo necessidade de que seja aduzido pela vítima”. KROSKA, p. 75. Antonio do Passo Cabral entende há uma legitimidade extraordinária do Ministério Público não prevista em lei, defendendo que o legislador dispensou o pedido ou requerimento, “até porque a vítima muitas vezes desconhece o direito à indenização ou possui algum temor em ajuizá-lo”. CABRAL, p. 313. No mesmo sentido, CÂMARA, p. 74. Em outra direção, tem-se posicionamento de Alexandre Mota Brandão de Araújo restringindo a legitimidade do Ministério Público apenas às hipóteses de vítimas pobres. ARAÚJO, p. 99.


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