Por: Guilherme Brenner Lucchesi[1]

Em 11 de fevereiro de 2021, as ciências criminais choraram a perda de um de seus mais emblemáticos e importantes juristas, o Professor René Ariel Dotti. Em toda a sua trajetória profissional e acadêmica, Professor René se destacou pela inovação em suas análises, rompendo com a penúria intelectual do que comparou a um “mercado persa” dos comentários à legislação brasileira.[2] Em homenagem à memória do saudoso Professor, dedico-lhe as seguintes linhas em crítica ao que se vê sendo reproduzido no âmbito do Judiciário a respeito de um importante instituto do processo penal, à revelia da “editoração desordenada e habitualmente inepta de inúmeras publicações que são oferecidas aos profissionais e aos estudantes”[3].

Observa-se fenômeno recente em que a repressão criminal no Brasil tem buscado atingir o patrimônio do agente como um fim em si mesmo pelo uso de instrumentos processuais de natureza patrimonial. Os “bloqueios de milhões” substituíram os “anos de prisão” nas manchetes de jornal. Nesta persecução penal contemporânea, houve o abrupto resgate das medidas assecuratórias — arresto, sequestro e especialização da hipoteca legal — que, apesar de encontrarem previsão no CPP desde a década de 1940, até recentemente estiveram relegadas ao esquecimento no próprio estudo da disciplina de Direito processual penal. Disso decorre, justamente, a assimetria entre o aumento da demanda judicial de tais medidas e a escassa produção doutrinária sobre o tema.

Para além da parca produção intelectual a respeito do tema, a desnaturação das medidas cautelares tem levado à sua utilização como formas de antecipação da punição, privando o acusado de seu patrimônio muito antes de qualquer eventual decisão condenatória. Não fosse isso, nem mesmo os parâmetros de imposição destas medidas são claros, em razão da utilização de medidas amorfas ou genéricas criadas pela prática forense no lugar da aplicação das medidas cautelares típicas estabelecidas pela lei processual penal.

Como já ensinava o Professor René Dotti, a legislação processual penal brasileira conhece como medidas cautelares patrimoniais o arresto, o sequestro e a especialização de hipoteca legal.[4] Apesar de alguma confusão de nomenclatura entre o sequestro e o arresto — não apenas por o CPP em sua redação originária empregar uma nomenclatura equivocada, corrigida pela Lei n.º 11.435/2016[5], como também pela incidência do defasado Decreto-Lei n.º 3.240/1941[6], que emprega a expressão sequestro em sentido diferente do CPP —, a legislação processual penal estabelece parâmetros objetivos para a incidência de cada medida assecuratória.[7] O arresto e a especialização da hipoteca legal buscam garantir a reparação do dano, por meio da constrição judicial de bens de origem lícita, sem relação com o crime; o sequestro visa à indisponibilidade dos bens adquiridos com a prática do crime, portanto, bens ilícitos.

A despeito disso, não é incomum a decretação de medidas estranhas às expressamente previstas na lei processual penal — “bloqueio” e “indisponibilidade” — e a invocação do sequestro e do arresto de forma indistinta — “sequestro/arresto” e “arresto e sequestro”. O uso de medidas inominadas e de medidas indefinidas viola a tipicidade e a taxatividade, atributos inerentes a qualquer medida cautelar penal. Diferentemente do processo civil, a legislação processual penal brasileira não contempla juiz com poder geral de cautela que autorize a decretação de medidas constritivas fora das hipóteses previstas em lei.

É preciso que a doutrina, em vez de se limitar ao “vício acaciano de repetir as palavras da lei sob a máscara de interpretação”[8] passe a pensar efetivamente as medidas cautelares patrimoniais em um mesmo nível de densidade teórica utilizado na análise nas medidas cautelares pessoais, em especial quanto à prisão preventiva. Em menos de uma década, as prisões processuais foram objeto de diversas pesquisas e duas reformas legislativas compreensivas, tanto pela Lei n.º 12.430/2011, como pela Lei n.º 13.964/2019. Enquanto isso, as medidas cautelares patrimoniais seguem praticamente inalteradas desde 1941, com pouca ou nenhuma análise por parte da doutrina.[9]

A fim de honrar a memória do Professor René Ariel Dotti, visando perpetuar seu esforço pela modernização do ordenamento positivo, com “soluções modernas que gozam de estabilidade dogmática”[10], urge o desenvolvimento de uma teoria geral das medidas cautelares patrimoniais no processo penal.


[1] Advogado – OAB/PR 50.580. Attorney-at-Law – NYSBA 5.495.812. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

contato: guilherme@lucchesi.adv.br


[2] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: RT, 2018. p. 21.

[3] Idem, p. 22.

[4] Idem, p. 715-716. O autor ainda anota como “medida patrimonial” a busca e apreensão, que apesar de sua natureza como meio de prova, também incide sobre bens de procedência ilícita e instrumentos do crime.

[5] Idem, p. 715.

[6] Segundo Dotti, o Decreto-Lei segue em vigor por força do Decreto-Lei n.º 359, de 1968 (Idem, p. 716).

[7] Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner. ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. RBDPP, v. 6, n. 2, p. 725-764.

[8] Dotti, obra citada, p. 21.

[9] São importantes exceções: SAAD GIMENES, Marta Cristina Cury. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese (Doutorado em Direito), Universidade de São Paulo, 2007; AMARAL, Thiago Bottino do (Coord.). Medidas Assecuratórias no Processo Penal. Série Pensando o Direito, 25/2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3pALC0Y; LEITE, Larissa. Medidas patrimoniais de urgência no processo penal: implicações teóricas e práticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

[10] Dotti, obra citada, p. 22.


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