Por Milena Holz Gorges

A Colaboração Premiada pode ser conceituada como um acordo realizado entre acusador e defesa, objetivando facilitar a persecução penal em troca de benefícios ao colaborador, garantindo ao investigado um prêmio por sua confissão e auxílio nas investigações, prestados de forma voluntária[1]. Nos termos do artigo 3°-A da Lei n° 12.850/13, a colaboração premiada é um negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe a existência de utilidade e interesse públicos.

No ordenamento jurídico brasileiro, o mecanismo negocial da colaboração premiada não possui previsão e regulamentação em um único diploma. Além da Lei n° 9.807/99, que é o diploma geral sobre o tema, existem várias outras hipóteses específicas de delação premiada, como, por exemplo, nos crimes hediondos (art. 8°, parágrafo único, da Lei 8.072/90), nos crimes contra o sistema financeiro nacional (art. 25, §2°, da Lei 7.492/86) e organização criminosa (art. 4° da Lei 12.850/13).

Assim, verifica-se que o assunto não recebeu do legislador tratamento sistemático e uniforme, motivo pelo qual muitas questões são cotidianamente resolvidas nos próprios casos concretos pelos tribunais. Um grande exemplo disso está nos vários acordos de colaboração premiada formalizados no âmbito da Operação Lava Jato que inovaram em diversos aspectos, inclusive com a previsão de regimes diferenciados de execução de penas e regulação de imunidade a familiares e terceiros ao acordo.

Atendo-se mais especificamente à concessão de benefícios extralegais aos colaboradores, verifica-se que, antes da entrada em vigência da Lei Anticrime, não havia nenhuma restrição ou regulamentação acerca dos benefícios concedidos ao colaborador. Quando da homologação do acordo, originariamente, o §7° do artigo 4° da Lei n° 12.850 preconizava que deveriam ser verificadas a regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo, tratando-se, portanto, de mero juízo de legalidade.

Neste cenário, era do entendimento do Supremo Tribunal de Federal, consolidado no Agravo Regimental no Inquérito nº 4405[2], que a fixação de sanções premiais não expressamente previstas na Lei nº 12.850/13, mas aceitas de modo livre e consciente pelo investigado não acarretaria a invalidade do acordo. Entendia-se, portanto, que a concessão de benefícios extralegais não consistiria em uma violação ao princípio da legalidade, o qual apenas vedaria a imposição de penas mais graves do que as previstas em lei.

Sob essa ótica, tudo aquilo que não fosse vedado pelo ordenamento jurídico e não agravasse a situação do colaborador poderia ser negociado, desde que razoável, sob o fundamento de que isto seria próprio da natureza das relações negociais[3].

Apesar de esta vertente ter sido muito aplicada nos casos da Lava Jato, é importante mencionar que a questão nunca foi pacífica nos tribunais brasileiros. Pode-se citar como exemplo a Petição 7265, em que o Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, deixou de homologar acordo de colaboração premiada que previa regime diferenciado de cumprimento de pena. Na oportunidade, o Ministro destacou que “validar tal aspecto do acordo, corresponderia permitir ao Ministério Público atuar como legislador. Em outras palavras, seria permitir que o órgão acusador pudesse estabelecer, antecipadamente, ao acusado, sanções criminais não previstas em nosso ordenamento jurídico”[4].

De modo a solucionar o conflito de decisões, a Lei Anticrime alterou o parágrafo 7º do artigo 4º da Lei nº 12.850, passando a dispor que o juiz, no momento da homologação do acordo, deve analisar, além da regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo, alguns outros aspectos, dentre eles a adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos parágrafos 4º e 5º do mesmo artigo. Ainda, o §7°-B do artigo 4° prevê a nulidade das cláusulas que violem o critério de definição de regime inicial de cumprimento de pena, as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei de Execução Penal e os requisitos de progressão de regime.

Quanto a essas alterações, primeiramente deve-se pontuar que o exame de constitucionalidade, convencionalidade e eventual abusividade das cláusulas do acordo é, tipicamente, um juízo de legalidade, na medida em que busca garantir que os benefícios concedidos estejam expressamente permitidos pela lei[5]. Essa análise, portanto, não constitui análise indevida do mérito do acordo por parte do juiz no momento da homologação.

Quanto às justificativas para a impossibilidade de concessão de benefícios não previstos pelo legislador, estas são as mais variadas. Um primeiro obstáculo encontra-se no princípio da legalidade, já que o Ministério Público não poderia oferecer ao delator um benefício que não se encontre previsto em lei específica, já que não possui atribuição para disciplinar as penas a serem cominadas ao acusado[6]. Nesse sentido, Vinicius Gomes de Vasconcellos[7] pontua que a aceitação de um modelo irrestrito e não balizado pelas previsões normativas incentiva condutas ilegítimas.

Ainda que se argumente que na seara da justiça negocial haveria a possibilidade de ampla negociação dos benefícios entre os órgãos persecutórios do Estado e o potencial colaborador, com base nos princípios da autonomia privada, boa-fé e eficiência, destaca-se que não podem ser deixadas de lado as garantias do devido processo legal. No ordenamento jurídico pátrio, a justiça criminal negocial precisa, necessariamente, respeitar os critérios definidos pelo legislador, em respeito ao princípio da legalidade, que nos é tão caro.

Não obstante em um primeiro momento possa parecer que a concessão de benefícios não previstos pelo ordenamento, mas mais benéficos ao réu, estaria em conformidade com a legalidade, há de se apontar que existem consequências nefastas para essa abertura, que esvaziam os limites do instituto da colaboração premiada, além de enfraquecer direitos e garantias fundamentais[8].

Diante disso, parece que foi acertada a decisão do legislador em adequar os benefícios a serem concedidos aos potenciais colaboradores às disposições legais, limitando o regime da colaboração premiada ao máximo respeito à legalidade. Inclusive porque, a fim de evitar arbitrariedades jurisdicionais, que tratem desigualmente réus cujas colaborações obtiveram resultados semelhantes, os benefícios concedidos devem ficar dentro de certos parâmetros legais.

 


Milena Holz Gorges: Acadêmica de Direito da UFPR.


REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei n° 7.492, de 16 de Junho de 1986. Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7492.htm> Acesso em 12/03/2021.

BRASIL, Lei nº 8.072, de 25 de Julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XVIII, da Constituição Federal e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm> Acesso em 11 de Janeiro de 2021.

BRASIL, Lei n° 9.807/99, de 13 de Julho de 1999. Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção às vítimas e as testemunhas ameaçadas, institui o Programa federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9807.htm> Acesso em 12/03/2021.

BRASIL, Lei nº 12.850, de 2 de Agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm> Acesso em 11 de Janeiro de 2021.

BRASIL, Lei nº 12.964, de 24 de Dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm> Acesso em 11 de Janeiro de 2021.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. AgRg no Inq n. 4.405 – DF, STF, 1a Turma, unânime, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 27.2.2018, publicado no DJ em 5.4.2018

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. PET 9265/DF. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em 14/11/2017

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Petição nº 7074/DF, Relator Ministro Edson Fachin. Julgado em 29/06/2017.

JARDIM, Afrânio Silva. Acordo de cooperação premiada. Quais são os limites?. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n.1, jan.-jun. 2016. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23110> Acesso em 12/03/2021.

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017

[1] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal [livro eletrônico] – 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2017, p. 60-62.

[2] AgRg no Inq n. 4.405 – DF, STF, 1a Turma, unânime, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 27.2.2018, publicado no DJ em 5.4.2018

[3] Voto do Ministro Luís Roberto Barroso na Questão de Ordem na Petição nº 7074/DF, Relator Ministro Edson Fachin. Julgado em 29/06/2017, p. 65-66.

[4] PET 9265/DF. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em 14/11/2017, p. 23.

[5] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 378.

[6] JARDIM, Afrânio Silva. Acordo de cooperação premiada. Quais são os limites? Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n.1, jan.-jun. 2016, p. 3. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23110> Acesso em 12/03/2021.

[7] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 237.

[8] VASCONCELLOS. Op cit., p. 239-240.