Por: Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos[1] Marina Brentano Colombo[2]

 

Desde a alteração da Lei n.º 9.613/98, em 2012, o crime de lavagem de dinheiro se tornou um campo fértil para discussões jurídico-penais. Não por menos. Se antes a lavagem de capitais era um delito desconhecido por parte da maioria dos atores do processo penal – fundamentalmente nas ações de competência do juízo comum –, hoje parece que há, inclusive, uma indevida banalização do crime, de modo a perder a sua própria razão de existência. O que se pretende neste artigo não é trazer razões político-criminais sobre o delito, tampouco trabalhar os aspectos dogmáticos da conduta, mas sim trazer à lume – embasado nos pressupostos teóricos da Crítica Hermenêutica do Direito[3] – a análise do tipo penal sob o enfoque da interpretação judicial. Nesse sentido, trabalhar-se-á com a hipótese do recebimento de honorários maculados e da imputação específica da lavagem de dinheiro em casos tais.

Afinal, por que há juízes que asseveram que a lavagem de capitais se materializa com a simples realização de um dos verbos nucleares do tipo (art. 1.º, caput)? Por que se chama de “lavagem” a conduta que – de acordo com alguns tribunais – se destina tão somente a punir o indivíduo que oculta ou dissimula o ativo, em tese, ilícito? Não é verdade que o crime aqui referido se projeta para coibir a circulação de ativos ilícitos na economia formal? Se o é, por que a simples realização da ocultação ou da dissimulação configuram o tipo penal? Essas são questões tomadas por complexas – em que pese, inseridas em uma tradição, sejam óbvias – uma vez que os tribunais, levando a discricionariedade ao último estágio, tendem a ditar os limites jurídico-penais do tipo penal, descolando-o, por consequência, da sua própria natureza[4].

Sob este espectro, questiona-se, prima facie, se seria possível apenas enxergar o dispositivo legal do crime de lavagem de dinheiro e, a partir disso, concluir-se pela perfeita – e pretendida – interpretação hermenêutica do tipo penal ali inserido. Seria a norma um fim em si mesma? Teria, portanto, a gramaticalidade da norma logrado êxito em alcançar o seu integral sentido interpretativo? Os exegéticos talvez diriam que sim. A questão, entretanto, atinge um ponto sensível e que demanda atenção. Observe-se, nesse sentido, que a leitura amarrada ao puro textualismo da norma do art. 1º da Lei 9.613/98 conduz a uma interpretação limitada, na medida em que, não é possível extrair da sua literalidade, por exemplo, a necessidade de aferição do elemento subjetivo do agente para a configuração do delito de lavagem de dinheiro. E este é o ponto fundamental para a discussão deste ensaio.

Objetivamente: o crime da Lei n.º 9.613/98 censura penalmente a conduta do indivíduo que reintroduz os ativos ilícitos – provenientes de infração penal antecedente – na economia formal. Ao revés, não pode ser utilizado como mecanismo de imputação criminal de condutas que são desdobramentos do crime antecedente (v.g. como aquisição de imóveis) ou mesmo de delitos que sequer se materializaram (como, por ex., a sonegação fiscal). Quer dizer, da forma como introduzido no ordenamento jurídico, a lavagem de dinheiro não existe sem, ao menos, ter indícios veementes de que a prática visa a dar uma capa de legalidade aos ativos ilícitos. Por uma premissa básica, destarte, pagar honorários advocatícios com dinheiro advindo de prática delitiva não configura o tipo penal, uma vez que não há qualquer intenção de acoplar um sentido de licitude aos ativos.

É nesse ponto, de tal arte, que ingressa o debate sobre a interpretação judicial da lavagem de dinheiro e o motivo pelo qual alguns tribunais compreendem a tipificação de tal delito por meio da mera ocultação ou dissimulação. De logo, é possível se afirmar que tal entendimento advém de um problema geral e de uma de suas ramificações: o predomínio do paradigma do positivismo jurídico, expressados através da ausência de superação do exegetismo do século XIX (textualismo)[5]. Portanto, é possível ver, na práxis, os problemas aqui abordados: quando o juiz – ao analisar o art. 1.º da Lei n.º 9.613/98 – diz que o tipo penal se configura por meio da simples ocultação ou dissimulação dos ativos ilícitos, sem considerar a tradição epistemológica que lhe antecede, compreende que o legislador previu todas as hipóteses de aplicação do referido tipo penal, de sorte que a mera subsunção do tipo ao caso concreto é suficiente, quando, na verdade, não o é.

Veja-se que: a interpretação literal do art. 1º da Lei 9.613/98, além de atentar contra a essência da hermenêutica, abre um vasto campo à criação de completas aberrações jurídicas e condenações infiéis ao que, de fato, se pretendia, desde o início, com a criação do tipo penal de lavagem – e para compreender isso basta revolver ao passado histórico da sua criação. É dizer, portanto, que: ao se admitir a interpretação pura e literal da norma, excluindo-se, dessa forma, a aferição do dolo da lavagem, passa-se a admitir que condutas como a de pagar honorários advocatícios com valores ilícitos possam ser configuradas como lavagem de dinheiro – pelo simples fato de se ter, de certo modo, ocultado ou dissimulado o ativo.

E mais: a interpretação puramente literal do referido dispositivo conduz a afirmação de que o crime de lavagem de dinheiro seria um caminho necessário a todos os delitos que visam ou tem como resultado o lucro. Assim, todo aquele que, por exemplo, furta um bem e o vende, e, em seguida utiliza esse valor ilícito – seja pagando honorários advocatícios ou comprando desde um imóvel até uma peça de roupa –, responderá, automaticamente, por lavagem de dinheiro. Tal afirmação não parece, nem de longe, razoável.

De todo modo, a resposta adequada à problemática está refletida no passado histórico da criação do delito de lavagem de capitais, de sorte que colocou em evidência a necessidade da comprovação da vontade do agente em tornar o ativo ilícito em lícito – do contrário, a própria criação da norma não teria existido, já que derivou da engenhosa conduta da máfia italiana que, buscando driblar a instituição da Lei Seca nos Estados Unidos, criou a venda irregular de bebidas e, para justificar seus ganhos ilícitos com tais práticas, adquiriu lavanderias que serviram de fachada para justificar os seus lucros. E é a partir dessa perspectiva que deve se dar a interpretação da norma do art. 1º da Lei 9.613/98.

Assim, o conteúdo do tipo penal do art. 1º da Lei 9613/98 não se esgota em sua literalidade. Vai muito além. De acordo com Lenio Streck, ‘… há sempre algo que lhe antecede e que foi construído pela cadeia de sentido produzida ao longo da relação entre os sujeitos.’[6]. Nessa perspectiva, o referido dispositivo somente pode ser interpretado adequadamente, e, portanto, em sua integralidade, se houver a compreensão de sua cadeia construtiva.

Em nosso juízo – embora os ares do positivismo exegético ainda pareçam reinar em terrae brasilis – a interpretação literal do art. 1º da Lei 9613/98 é perigosa e conduz a uma compreensão incompleta acerca do dispositivo. A necessidade de exigir que seja ilustrada, na conduta do agente, o intuito de conferir a aparência lícita ao ativo – e, portando, exceder a barreira da literalidade da norma -, é, com inabalável convicção, a correta, pretendida e integral interpretação do delito de lavagem de dinheiro. Nesse sentido, a criminalização do pagamento de honorários advocatícios com valores ilícitos só poderia ser corretamente enquadrada no contexto da lavagem de capitais se a intenção do agente com tal conduta fosse, efetivamente, a de conferir caráter lícito aos ativos, do contrário, estar-se-ia diante de conduta atípica.

 

REFERENCIAS:

 

DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, 2006.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11 ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.


[1] Doutorando em Direito (UNISINOS/RS), Mestre em Ciências Criminais (PUC/RS) e Especialista em Direito Penal Empresarial (PUC/RS). Advogado criminalista – marcelo@lemos.adv.br.

[2] Graduada em Direito (UNISINOS/BR) e pós-graduanda em Direito Penal Econômico (PUC/MG). Advogada criminalista – marina@lemos.adv.br.


[3] A propósito: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11 ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[4] A construção histórica do tipo penal de lavagem de dinheiro, originalmente, remonta às primeiras décadas do século XX, através da persecução criminal dos membros de organizações criminosas atuantes na comercialização ilegal de bebidas alcoólicas. O referido crime solidificou-se a partir do maior rigor imposto às organizações criminosas, especialmente após a entrada em vigor da chamada “Lei Seca” nos Estados Unidos da América, a qual vetou a comercialização de bebidas alcoólicas naquele país. Esta proibição fez surgir um mercado paralelo e clandestino que visava à efetivação de práticas ilícitas. Neste momento, enalteceu-se a figura do lendário gangster de origem italiana Al Capone e, também, de Meyer Lansky. O termo cunhado para o referido crime, ademais, inspirou-se na prática de Al Capone, porquanto este, por intermédio da manutenção de lavanderias com aparência plenamente lítica, ocultava e dissimulava os ganhos provenientes dos crimes anteriormente aludidos. Ainda que tenha sido materializada, a priori, nos Estados Unidos da América, a lavagem de dinheiro encontra seus primeiros traços legais na Itália. Durante os “anos de chumbo”, por volta de 1978, o grupo armado denominado Brigate Rosse (Brigada Vermelha) provocou uma série de atos, a fim de desmantelar o poder político da época. Nessa linha, em 16 de março de 1978, dando sequência a gigante onda de seqüestros que vinham dando cabo, a Brigada Vermelha capturou o político Aldo Moro que, em maio do mesmo ano, veio a ser assassinado. Tal fato gerou uma relevante comoção internacional e chamou a atenção do governo italiano. Com o escopo de enfraquecer as organizações criminosas, as autoridades italianas introduziram ao Código Penal o art. 648, bis[4], criminalizando a substituição de dinheiro proveniente de ilícitos, notadamente, roubo qualificado, extorsão qualificada ou extorsão mediante seqüestro. DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, 2006.

[5] Acerca do tema, leia-se o verbete “Positivismo Jurídico” em: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020, p. 184.


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