Por Ronaldo dos Santos Costa e Luccas Beresa de Paula Macedo

Desde o início da pandemia em solo nacional, a mídia vem divulgando a ocorrência de diversas fraudes na aquisição de materiais hospitalares relacionados à prevenção e cura do Covid-19, em diversos estados da Federação, notadamente nos estados de Amazonas, Santa Catarina, Pará e do Rio de Janeiro.

Recentemente, a Procuradoria Geral da República apresentou denúncia em desfavor do Governador do Amazonas, Wilson Lima – PSC/AM, pela aquisição por parte de sua administração de 28 ventiladores pulmonares para tratar das pessoas infectadas pelo novo coronavírus. A referida aquisição foi concretizada via dispensa de licitação junto a uma empresa importadora de vinhos pelo preço de R$ 2,9 milhões. O valor unitário de cada respirador equivale a até quatro vezes o preço de mercado praticado por lojas no Brasil e no exterior, e, além do preço exorbitante, os equipamentos foram considerados “inadequados” para pacientes com Covid-19, segundo o Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CREMAM).

Já no Rio de Janeiro, segundo as investigações da Polícia Civil, o governo do Estado comprou 1.000 respiradores, ao valor total de R$ 183,5 milhões, mas somente foram entregues 52 unidades. Ademais, os respiradores mecânicos são diferentes dos que foram requisitados pela administração pública e não servem para atender os doentes com Covid-19.  Por esta e outras irregularidades no combate a pandemia, o Governador Wilson Witzel – PSC/RJ sofreu um processo de impeachment na ALERJ e perdeu seu cargo, notadamente pela suspeita de superfaturamento e atrasos na construção dos hospitais de campanha e conluios com empresários do ramo da saúde.

Em Santa Catarina, o MP e a Polícia Civil apuraram uma suposta fraude na aquisição de 200 respiradores, que custaram R$ 33 milhões ao Estado. Nesta aquisição, foi realizado o pagamento antecipado, sem que houvesse a entrega dos respiradores, e somente a primeira remessa de apenas 50 respiradores foi efetivamente recebida pela administração pública, dos quais somente 11 estão em condições de uso nas UTI. Passados quase 10 meses após a constatação de que a empresa que se sagrou vencedora na licitação não adimpliu com suas obrigações contratuais, o Estado ainda não conseguiu recuperar em torno de R$ 19 milhões.

No Pará, uma empresa recebeu R$ 25 milhões do Estado para o fornecimento de 200 respiradores fabricados na China, mas entregou outro tipo de respirador que não pode ser utilizado em UTI. Além disso, segundo a equipe técnica da Secretaria de Saúde do Governo do Pará, os ventiladores pulmonares “colocariam em risco real os pacientes, por não possuírem alarmes que indicassem interrupção do funcionamento nem baterias internas para manter a respiração artificial em caso de queda de energia”. Os técnicos informaram ainda que os equipamentos poderiam se tornar vetores de infecções, por não permitirem a limpeza e a esterilização de fluidos corporais e gases expirados.

E, embora não diretamente relacionados aos crimes de peculato e fraudes em licitações, cabe ressaltar ainda os episódios ocorridos no norte do país, em que um empresário que foi preso em Manaus no início de janeiro de 2021, por segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM) ter retido cilindros de oxigênio para especulação, ou seja, criando uma ausência artificial para inflar os preços a serem pagos pela Administração Pública na aquisição deste tão crítico insumo para os pacientes acometidos da Covid-19.

E, neste mês de abril, houve ainda a descoberta de dezenove respiradores novos atrás de uma parede falsa no auditório Hospital Abelardo Santos a 20 km de Belém-PA, hospital este referência no atendimento a pacientes com Covid, fato este que está sob investigação interna da Secretaria Estadual de Saúde do Pará.

Os exemplos acima citados se repetiram em maior ou menor grau por inúmeros estados e munícipios do Brasil. Diante desse cenário de pouco caso com a vida humana, entende-se como necessário criar qualificadoras para os agentes públicos e particulares envolvidos nestes ilícitos, pois em se tratando de combate a pandemia, tais condutas se tornam extremamente gravosas e demandam uma apuração rigorosa pelas autoridades competentes, pois estas afetam significativamente a saúde do povo brasileiro, principalmente daquelas pessoas que não tem outra opção que não seja o sistema público de saúde.

No momento em que vivemos, com as médias de mortes diárias ultrapassando o número de 2.500, revela-se importante a apuração e eventual punição – após o exercício do contraditório e da ampla defesa – de potenciais ilícitos praticados por servidores públicos em conluio com empresários que consequentemente prejudiquem milhares de pessoas que necessitam de materiais hospitalares para tentar sobreviver a Covid-19.

Atualmente está em tramitação no Senado Federal o PL n° 2.846/2020, de autoria do Senador Zequinha Marinho (PSC/PA), que pretende tipificar no § 4º do art. 312 do Código Penal, o crime de peculato qualificado, com pena de reclusão, de 10 (dez) a 25 (vinte e cinco anos), e multa, para quando a apropriação recair sobre dinheiro, valor ou bem móvel destinado ao combate de epidemia.

Com idêntica previsão de pena do ilícito acima descrito, o PL também busca atingir condutas criminosas ocorridas em procedimentos licitatórios, que tenham por objeto adquirir equipamentos ou medicamentos destinados ao combate de epidemia, criando a tipificação de uma conduta qualificada para o crime de fraude em licitação instaurada para a aquisição ou venda de bem ou mercadoria destinada ao combate de epidemia, ou contrato dela decorrente e incidindo o referido tipo penal mesmo se houver dispensa ou inexigibilidade de licitação (art. 96, § 1º e 2º, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993) que atualmente foi revogado e transferido em sua maior parte para o art. 337-L do Código Penal, através da Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021.

Por fim, pretende ainda transformar tais condutas em crimes hediondos, pois seriam essas condutas de gravidade acentuada e producentes de dano significativo e difuso sobre as pessoas que necessitam buscar os órgãos públicos de saúde, inserindo tais dispositivos no art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990.

Analisando a legislação atual, verificamos que o crime de peculato tem a previsão de pena de reclusão, de dois a doze anos, e multa, e que, portanto, está muito abaixo da pena prevista no PL 2.846/2020 que é de reclusão, de dez a vinte e cinco anos, e multa.

Já para o crime de fraude em licitações e contratos administrativos, com o advento da Lei nº 14.133, de 2021, houve o aumento da previsão das penas, passando da antiga previsão de detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa para a atual reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.  Esta alteração, apesar de ser um avanço, ainda está muito abaixo da pena de reclusão, de 10 (dez) a 25 (vinte e cinco) anos, e multa prevista no PL 2.846/2020.

Entende-se como necessária a aprovação das qualificadoras, especialmente nos casos de desvios de verbas públicas destinadas ao combate da pandemia de Covid-19. No entanto, alguns ajustes se fazem necessários para evitar que esse aumento de pena exacerbado venha a justificar novos endurecimentos de penas em crimes que não necessariamente atinjam bens jurídicos tão importantes quanto à saúde pública.

 

 


Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista, sócio em Gilson Bonato, Ronaldo Costa e advogados associados, Procurador jurídico no ABRACRIM-PR e conselheiro do IBDPE.

Luccas Beresa de Paula Macedo é advogado e especialista em Direito Público Aplicado e Direito Previdenciário pela Escola Brasileira de Direito – EBRADI e integrante do Escritório de Advocacia Gilson Bonato e Ronaldo Costa e Advogados.

 


BRASIL – Lei Nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 25 abr. 2021

BRASIL – Lei Nº 14.133, de 1º de abril de 2021.
Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm#. Acesso em: 25 abr. 2021

BRASIL – Lei Nº 8.072, de 25 de julho de 1990.
Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm. Acesso em: 25 abr. 2021

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/142093

http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-denuncia-wilson-witzel-a-esposa-e-outras-dez-pessoas-por-organizacao-criminosa

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/11/06/dos-200-respiradores-comprados-por-sc-por-r-33-milhoes-apenas-11-estao-sendo-utilizados.ghtml

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2021/01/15/interna_nacional,1229341/empresario-e-preso-em-manaus-por-esconder-oxigenio-para-vender-mais-caro.shtml

https://www12.senado.leg.br/tv/programas/noticias-1/2020/05/projeto-endurece-pena-de-crimes-praticados-contra-administracao-publica-durante-pandemia?fbclid=IwAR2rFtBa_09Y4SRmrlz_S8wRu5AQilYQ3pSp2Xua7Neld6pJHbQFIvHCoNE

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2021/01/15/interna_nacional,1229341/empresario-e-preso-em-manaus-por-esconder-oxigenio-para-vender-mais-caro.shtml

https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/17/parede-falsa-escondia-respiradores-sem-uso-em-hospital-do-para-diz-funcionaria


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