Por: Thiago Diniz Nicolai e Renata Rodrigues de Abreu Ferreira

Desde fevereiro de 2014 vigorava o posicionamento jurisprudencial, fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, de que a natureza jurídica do terço de férias era indenizatória e, portanto, não deveria ser incluído no cálculo da contribuição patronal. Contudo, em agosto do ano passado, esse entendimento foi alterado pelo Supremo Tribunal Federal que, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário nº. 1.072.485, decidiu pela sua tributação.

No entanto, durante esses últimos seis anos, diante entendimento consolidado pelo STJ, muitas empresas deixaram de recolher tributos sobre o terço constitucional das férias – amparadas ou não por decisões de primeira e/ou segunda instâncias. De acordo com Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), o passivo tributário existente por conta dessa situação está na casa dos R$ 80 bilhões.

Em razão da relevância da matéria e possível impacto na economia nacional, a Suprema Corte, em sede de embargos de declaração, decidirá no próximo dia 28 de abril, qual será o alcance temporal de tal decisão: a chamada modulação de efeitos. Isto é, discute-se se a Receita Federal poderá ou não cobrar valores retroativos, que não foram pagos no passado (durante a vigência do entendimento do STJ), das empresas que deixaram de contabilizar o terço de férias no cálculo da contribuição previdenciária patronal ou se a cobrança somente será passível de cobrança dali (da ata de julgamento) em diante.

A verdade é que, como bem ressaltado pelo Ministro Barroso, a decisão da Corte pode reverberar, inclusive, sobre outras matérias. Por isso, é imprescindível que a deliberação leve em consideração todas as consequências jurídicas possíveis advindas da alteração jurisprudencial, isso inclui – ainda que a título de obter dictum – a modulação de efeitos penais.

Do contrário, poder-se-á vivenciar um efeito cascata, afinal, em relação aos fatos pretéritos, os contribuintes estariam obrigados a pagar os valores devidos ou a depositá-los em juízo – tal qual, em certa medida, já se tem observado no âmbito das reversões das decisões anteriormente proferidas – ou serão autuados pela Receita Federal. Assim sendo, se observará a lavratura de uma enxurrada de autos de infração que, consoante a multa arbitrada, poderão culminar em uma representação para fins criminais, dando ensejo a uma investigação criminal.

Eis que para evitar-se que o contribuinte “pague o pato” duas vezes nessa dissonância de entendimentos das Cortes superiores, é crucial que o Supremo anteveja essa situação e, desde já, se posicione quanto à impossibilidade de inauguração de persecução penal contra os contribuintes pelos fatos pretéritos, abarcados durante a vigência do entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Ainda que evidentemente estejam tais contribuintes em uma situação de inconsciência de ilicitude, não se deve deixar que essa análise fique a cargo das instâncias inferiores, não só porquanto isso geraria um atolamento desnecessário do já tão abarrotado Judiciário, mas também pelo elevado risco de violação ao princípio da isonomia sob a óptica da igualdade de tratamento entre sujeitos processuais que se encontram em situação jurídica idêntica.

Ora, especialmente em casos como este, cujo precedente fora produzido em caráter repetitivo – portanto, vinculativo às instâncias inferiores – é que, para salvaguardar valores tão imprescindíveis, como a confiança e a segurança jurídica, se aplica a prospective overruling.

Afinal de contas, como nos ensina Canotilho, “o homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se considerou como elementos constitutivos do Estado de direito o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão”[1].

Como se sabe, o princípio da proteção da confiança (Vertrauensschutzprincip) decorre da legítima expectativa do destinatário (in casu o contribuinte) oriundo de um ato (decisão consolidada do STJ) específico que origina essa confiança[2], sendo certo que este princípio também toma assento na seara jurisprudencial, a qual também se enquadra entre as fontes de direito.

O mesmo sucede em relação à segurança jurídica. Por óbvio, “é diferente falar em segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência. Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos tribunais[3].

Não por outro motivo, senão precisamente para evitar zonas obscuras como a que ora se vivencia, é que o legislador estabeleceu, no § 3º do artigo 927 do Código de Processo Civil, que, na “hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Nessa mesma linha já apontava a Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), estabelecendo, em seu artigo 23, que “a decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

Sendo assim, espera-se que nessa nova retomada da discussão os Ministros do STF não se olvidem de debater a respeito, também, da necessária modulação dos efeitos penais.

 


Thiago Diniz Nicolai. Sócio do escritório Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado – Advogados.

Renata Rodrigues de Abreu Ferreira Advogada do escritório Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado – Advogados. Mestre e doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.


[1] Canotilho, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 370.

[2] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção confiança: Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão Diante do Estado, 2ª ed., Impetus, p. 83.

[3] Canotilho, Op. cit., p.381/382 –grifamos.


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