Por: Victoria Antonia Karam[1]

O Crime Organizado por si só é um tema de estudo complexo que, com o desenvolver da sociedade, a potencialização da globalização e, consequentemente, a quebra dos mais variados tipos de barreiras, deu origem ao fenômeno do Crime Organizado Transnacional e a  agentes –  como a ‘Ndrangheta – que tem como uma de suas atividades essenciais, se não a mais lucrativa, o tráfico de drogas, em especial de cocaína.

Ao que tange à definição de Crime Organizado fica evidente a necessidade da comunidade acadêmica em entender a origem e a problemática deste tipo de ilícito penal e, em conjunto com as instituições nacionais e internacionais, formular um conceito geral que seja adaptável ao contexto nacional, assim como ao internacional, uma vez que fronteiras não são mais empecilhos para os criminosos organizados.

Não obstante, deve-se considerar que o Crime Organizado se manifesta como um processo ou, até mesmo, um método de cometimento de atos criminais e não como um crime em si com um perpetrador específico, tornando-se ainda mais perigoso. Desta forma, faz-se mister que o Crime Organizado seja observado a partir de um olhar multidisciplinar, levando em conta a natureza econômica, política, social e, até mesmo, empresarial desse tipo de conduta.

Outrossim, tal fenômeno é composto por três enfoques: estrutura hierárquica, ênfase no lugar e nas conexões culturais e étnicas e, por fim, a economia. Nesse sentido a Organização das Nações Unidas (ONU), classifica de uma forma mais abrangente, no caso ‘ndrino, configurando uma hierarquia padrão. Sendo assim, é possível estabelecer que o Crime Organizado Transnacional, por sua vez, pode ser estudado a partir de três visões: a política, econômica e social.

O crime organizado mafioso é caracterizado por elementos comuns presentes em todas as organizações mafiosas: família, poder, respeito e território – sendo este o mais importante e que dá origem aos atos de corrupção usados para garantir o poder das máfias. Nessa lógica, a máfia é uma organização dinâmica que conserva todos os elementos místicos retratados em filmes, livros e séries, para que possa se desenvolver nas sociedades e tornar-se praticamente invisível, mas ainda sim extremante presente, independente do cenário no qual está inserida.

A ‘Ndrangheta é um fenômeno que pode ser entendido como um agregado de famílias mafiosas – cerca de oitenta e cinco – com base na região italiana conhecida como Reggio Calabria. É considerada, atualmente, uma das máfias com os rituais mais elaborados e ainda é cercada por todos os misticismos que permeavam as tradicionais Cosa Nostra e Camorra em meados do século passado. Nas sociedades modernas as máfias surgem quando estas passam por expansões econômicas que acabam por desconstruir a sua estrutura legal que objetiva proteger direitos de propriedade e disputas empresariais. A ‘ndrangheta, por sua vez, aproveitou um momento de crise no crime organizado para consolidar-se como uma das organizações criminosas mais ameaçadoras da atualidade.  Em meados da década de 80 e 90, foram deflagradas diversas operações que visavam acabar ou enfraquecer o crime organizado mafioso na Itália. Além disso, o enfraquecimento do mercado de heroína (que tinha o tráfico comandado pela Cosa Nostra), aliado ao bom relacionamento que ‘ndrangheta mantém com os produtores latinos de cocaína fez com que essa organização se transformasse no ator de peso que é hoje no cenário do crime organizado transnacional.

O processo de criminalização ‘ndrino, que até então era conhecido, apenas, como crime organizado da Calábria, ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e, acredita-se que o nome ‘Ndrangheta, derive da palavra grega andragaqos, significando homem bravo e corajoso. Até algum tempo atrás, grande parte da população calabresa usava essa palavra para indicar um grau de heroísmo e virtude, criando assim, o termo ‘ndrandhetisti, pessoa que era dotada de certa superioridade.

Nesse contexto, a ‘Ndrangheta é uma organização com uma grande habilidade de adaptação, ajustando-se às transformações da sociedade da qual faz parte, seguindo tendências financeiras e sociais, assim tornando-se um oligopsônio poderoso numa das mais pobres regiões da Itália, investindo como o inimigo da democracia e da transparência.

Em função dessa característica, é capaz de relacionar-se com outras organizações e deve ser vista como uma estrutura capaz de gerenciar, concomitantemente, atividades lícitas e ilícitas de forma una e indivisível que facilitam a invisibilidade ‘ndrina. Assim, a Itália é considerada uma das portas de entrada principais para as drogas no continente europeu, uma vez que tem uma posição geográfica privilegiada.

Dessa forma, o envolvimento mafioso no tráfico de drogas pode ocorrer de três maneiras colaborativas: como crimes internacionais cometidos por um único grupo étnico; por arranjos ad hoc entre vendedores e compradores e, por fim, através de cooperação internacional. Entretanto, existe um quarto tipo de colaboração – um tanto quanto recente –, a sociedade estratégica que tem como objetivo reduzir riscos e ganhar acesso ao mercado. É nesta última forma onde se encontra a relação ‘ndrina com o tráfico de cocaína, em especial, com os colombianos e mexicanos.

Sendo assim, pode-se dizer que o crime organizado mafioso, em especial o italiano, e o narcotráfico colombiano são considerados entidades gêmeas, que caminham lado a lado quando se conceitua organização criminosa transnacional. Contudo, são organizações que funcionam de forma diferente entre si, principalmente no que tange à organização: narcotraficantes se estruturam por redes e a ‘Ndrangheta, em especial, é uma organização guarda-chuva.

Nesse contexto, é necessário ressaltar que a organização italiana tem um papel crucial na operação do tráfico de drogas, uma vez que dispõem de muito dinheiro e pode comprar droga usando, apenas, a sua palavra de honra, além disso, é a organização preferida dos traficantes, uma vez que é mais confiável, rígida e invulnerável – devido aos laços de sangue. Ademais, como resultado da facilidade de adaptação ‘ndrina, é possível perceber uma estratégia de joint venture entre as organizações calabresa e siciliana, a última encarrega-se do transporte da droga até a Itália.

Já ao que tange ao narcotráfico mexicano, em especial aos cartéis Los Zetas e Cartel do Golfo, a relação ítalo-mexicana não poderia ser melhor, afinal, os cartéis tem a necessidade de atingir novos mercados e a máfia calabresa em procurar novos fornecedores de drogas, com rotas mais seguras, abrigo e, acima de tudo com melhor preço.  Sendo assim, esse relacionamento pode ser entendido como mão de obra mercenária, tendo em vista que os cartéis se colocam à disposição de quem pagar mais.

Em suma, o que se pode observar é que o crime organizado transnacional, a ‘Ndrangheta e o tráfico de cocaína, são elementos que tem poder quando são separados. Entretanto, unidos são ainda mais fortes e exercem uma pressão muito grande na sociedade em que estão inseridos e no cenário internacional, onde a cocaína é, não só, uma moeda extremamente rentável, mas também uma forma da ‘Ndrangheta em conquistar territórios e se expandir cada vez mais, tornando o Crime Organizado Transnacional Mafioso um ilícito cada vez mais complexo e enraizado nas sociedades em que consegue se inserir.

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[1] Advogada, graduada pela UNICURITIBA, autoria do livro “Basuco: ‘ndrangheta e o tráfico de cocaína”, publicado pela Editora Íthala em 2018.