Por: Lívia Maria Alves Teixeira Lima[1]
Delimitar os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal é uma garantia do controle do ius puniendi do Estado contra os cidadãos. O primeiro a desenhar a teoria do bem jurídico foi Franz Birnbaum (século XIX) que dizia que o delito não lesiona direitos, mas sim lesiona bens fundamentais imateriais; esses são valores da existência social, valores esses instituídos pela própria vida em sociedade. Quando ocorre um homicídio, por exemplo, o bem violado é, evidentemente, a vida humana. Ademais, implicitamente são violados de forma secundária a integridade física e a liberdade, pois o corpo da vítima é destruído e seu direito de ir e vir cerceado de forma definitiva e irremediável. No âmbito do direito penal econômico, como a natureza dos bens jurídicos tutelados é transindividual ou metaindividual, há ainda muitas controvérsias e polêmicas sobre quais bens jurídicos são tutelados quando da análise de alguns tipos penais econômicos.
Como ponto de partida, o crime de lavagem de dinheiro ainda levanta dúvidas na doutrina e jurisprudência, nacionais e estrangeiras, de qual seria o bem jurídico violado quando da prática do mencionado fato típico. Existem três correntes distintas sobre qual bem jurídico é ofendido quando da prática do branqueamento de capitais: a primeira defende ser a ordem econômica; a segunda defende ser a administração da justiça e, por último, a mais complexa em que os bens jurídicos tutelados são múltiplos: a administração da justiça, a ordem econômica e o bem jurídico protegido pelo crime antecedente. A dificuldade encontrada pelos órgãos de persecução penal para delimitar as condutas praticadas pelos agentes e para a obtenção de provas coloca em risco as funções de investigar, processar e julgar dos órgãos de justiça criminal.
Os tipos penais econômicos, em sua maioria, são normas penais em branco e crimes de perigo abstrato. Esses tipos penais vazios, geralmente, precisam de complementos de resoluções emanadas de órgãos do Poder Executivo, tais como Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Conselho Monetário Nacional (CMN), entre outros.
Conceituar o que seria ordem econômica é uma tarefa complexa, pois nem mesmo os especialistas chegaram a um consenso do que objetivamente seria esse “possível” bem jurídico. A Constituição Federal, em seu artigo 170, expressa quais são os fundamentos que norteiam a ordem econômica: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. A constitucionalização da ordem econômica mostra o quão ela é importante e cara ao estado democrático de direito, pois ela objetiva assegurar uma vida digna e igualitária para todos os cidadãos.
Existem diversas leis esparsas que tipificam condutas contra a ordem econômica, mas no presente artigo destacam-se duas legislações: a lei 8.137/90, conhecida como crimes contra a ordem tributária e a lei 8.176/91. A primeira, nos incisos do seu artigo 4º, elenca as condutas contra a ordem econômica, consideradas crimes. A segunda, as condutas tipificadas estão previstas no artigo 1º da referida lei. O Código de Processo Penal Brasileiro, em seu artigo 312, também traz o termo “ordem econômica” de forma muito vaga, pois como decretar prisão preventiva baseado em termos genéricos (ordem econômica, ordem pública)?
O professor Luís Greco, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim, em um vídeo para o canal no YouTube intitulado Senhor Criminologia[2], com apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que ele tem tendências a não aceitar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, porém ele afirma ser necessário um estudo mais aprofundado do tema e análise dos tipos penais. Essa palestra ministrada pelo professor Greco trouxe uma inquietude nessa que vos escreve sobre o tema apontado no título e objeto desse artigo. Ele menciona também que provavelmente, quando da análise dos tipos penais ditos ofensivos a ordem econômica, concluiríamos que em todos esses tipos penais existe um perigo abstrato para bens individuais (patrimônio, propriedade) ou bens coletivos, por exemplo, a concorrência (professor Luís Greco considera como um bem jurídico).
As leis 8.137/90 e a lei 8.176/91, a título de exemplo, possuem em seu bojo um tipo penal conhecido como “cartel”: acordo feito entre duas ou mais empresas do mesmo ramo, que combinam os preços dos seus produtos a fim de maximizar os lucros e estabelecer clientes e mercados de atuação, entre outras finalidades. Podemos perceber de plano que a livre concorrência é afetada, pois as outras empresas que não participam do processo de cartelização inevitavelmente vão perder espaço no mercado e, por consequência, serão obrigadas a encerrar seus empreendimentos. Os consumidores também são afetados porque não possuem direito a escolha do melhor produto em termos de qualidade e preço, forçando-os a comprarem produtos por preços abusivos. É instantâneo a nossa vontade de apontar a ordem econômica como bem jurídico autônomo, mas a conclusão que se chega é que bens jurídicos individuais são afetados com esse tipo de conduta, sobretudo o patrimônio.
A ordem econômica, possivelmente, não pode ser entendida como um bem jurídico autônomo, mas a base de outros bens jurídicos que fundamental a tutela penal (concorrências, relações de consumo, administração pública, entre outros). Os crimes contra a ordem econômica nada mais são que delitos que ofendem um conjunto de princípios de um sistema amplo de normas; a ordem econômica é atingida através dos bens jurídicos nos quais ela se presta a regulamentar, mas aquela, por si só, não é capaz de ser lesada de forma independente. A ordem econômica precisa de um complemento: ordem econômica + bem jurídico individual ou supraindividual penalmente relevante. Há a diminuição do patrimônio das empresas que não formalizaram o cartel e, claro, dos consumidores. Não há um entendimento claro sobre isso, nem tão pouco pacífico sobre se a ordem econômica figura como bem jurídico autônomo no direito penal econômico. Considerações mais aprofundadas e atentas, no futuro, serão de grande utilidade e fonte de debates e reflexões acerca desse assunto.
Ainda pairam muitas dúvidas acerca desse tema, uma temática inclusive pouco explorada pela doutrina especializada. O objetivo primordial do presente texto não é esgotar ou trazer respostas definitivas ao tema; a finalidade é fomentar a reflexão do que podemos ou não considerar bens jurídicos tutelados pelo direito penal, haja vista que não se pode considerar tudo como bem jurídico penalmente relevante.
A maioria dos autores que produzem sobre Direito Penal, sobretudo o Direito Penal Econômico não fazem maiores questionamentos, aceitando de pronto a ordem econômica como bem jurídico. O recrudescimento da chamada sociedade de risco de Ulrich (1986) não pode legitimar a desenfreada “intromissão” do Direito Penal em condutas que podem ser combatidas pelo direito administrativo ou civil. Se o Estado não souber os seus limites, até onde pode punir e como punir, abre-se espaço para arbitrariedades e flexibilização de garantias constitucionais, ainda mais em um ramo do direito em que se cerceia a liberdade, bem jurídico este tão caro que não pode ser restituído, pois o tempo perdido não pode mais ser recuperado, nem mesmo com indenizações na esfera cível. Há de se ter um olhar mais cuidadoso dos estudiosos em delimitar quais bens jurídicos merecem a tutela penal e quais podem ser preservados por outros ramos do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.vr/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.137, 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em: 01 out. 2021
BRASIL. Lei n. 8.176, 91. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8176.htm Acesso em: 01 out. 2021
SOUZA, Luciano Anderson. Análise da legitimidade da tutela penal da ordem econômica. 2011. Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Penal, USP, São Paulo.
WUNDERLICH, Alexandre, et al. Direito penal econômico: crimes financeiros e correlatos. São Paulo: Saraiva, 2011
[1] Graduada em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis; Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Advogada.
[2]CALHAU, Lélio. Senhor Criminologia. Criminalidade Econômica – Professor Luís Greco – UFMG/Canal Senhor Criminologia. YouTube, Maio 2021. Disponível em: https://youtu.be/L9UCXag6cPo