Por: Claudia da Rocha e Gabriel Bertin de Almeida

A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como a conduta por meio da qual pretende-se ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição ou movimentação de ativos provenientes da prática de uma infração penal. Quanto a esses ativos, há a finalidade de sua reinserção na economia formal, revestida de aparência de licitude.
Por isso, o processo penal envolvendo esse crime necessita da presença de justa causa duplicada, devendo haver lastro probatório mínimo quanto à lavagem e quanto à infração antecedente, que tenha gerado bens, direitos e valores passíveis de serem lavados.
Dessa maneira, não basta a existência de um crime anterior e uma operação posterior. É necessário que haja um nexo entre os bens ocultados, dissimulados e reinseridos e a prática delitiva prévia. Em outros termos, além de existir o crime anterior, ele necessariamente deve ter gerado um proveito (produto em sentido amplo), já que não é possível lavar-se o que não existe.
Fixadas essas premissas, questiona-se se o recebimento de propina mediante utilização de conta bancária de terceiros configura corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Trata-se de concurso de crimes ou mera consumação do crime de corrupção passiva?
Conforme elucida Pierpaolo Bottini, a situação ora discutida é bastante recorrente em processos penais:

Personagens corriqueiros nos processos penais atuais, a corrupção e a lavagem de dinheiro andam de mãos dadas em denúncias e condenações. Sempre que algum servidor público recebe vantagem indevida por interpostas pessoas (esposa, mãe, irmão, sócio) ou empresas laranjas é acusado por ambos os crimes — corrupção pela vantagem indevida, e lavagem de dinheiro pelo recebimento dissimulado.

No entanto, é de ver-se que no crime de corrupção passiva, consoante expressa previsão do artigo 317 do Código Penal, o recebimento da vantagem indevida pode dar-se de forma direta ou indireta .
Na forma direta, o próprio agente recebe a vantagem indevida. Já na indireta o recebimento dá-se por terceiros, por interpostas pessoas, físicas ou jurídicas.
Nesse sentido, BOTTINI esclarece que se um funcionário público recebe vantagens indevidas por intermediários, há corrupção passiva consumada. Mas não há lavagem de dinheiro, pois o recebimento de valores por interposta pessoa já está previsto no tipo penal da corrupção, de modo que o reconhecimento de concurso de crimes, nessa situação, implicaria na punição duplicada pelo mesmo fato.
Por outro lado, HOFFMANN e SANNINI pontuam que na corrupção passiva, o delito consuma-se com a mera solicitação, de modo que se a propina é recebida de forma dissimulada e em um contexto distinto da solicitação anteriormente realizada pelo agente público, estar-se-ia diante de um caso típico de concurso material.
Todavia, o argumento de que a consumação do crime de corrupção passiva já teria ocorrido na solicitação da vantagem indevida, também prevista no tipo penal, não afasta a conclusão de que inexiste o concurso de crimes.
Como se sabe, muito embora a solicitação seja suficiente para a consumação do crime de corrupção passiva, o posterior recebimento da vantagem indevida consubstancia a renovação do fato típico, com nova consumação que absorve a precedente.
Do mesmo modo, TORON aduz o seguinte:

Em outras palavras, para a corrupção passiva consumada, basta a ‘solicitação’, não é necessário o ‘recebimento’, mas se este efetivamente ocorrer, consubstancia ato típico novo, que absorve o precedente, e renova inclusive o início do prazo prescricional. […] Por isso, a conduta típica da corrupção passiva em análise é o recebimento, e não a solicitação prévia que – embora típica – é absorvida pelo segundo ato. Vale repetir: a consumação da corrupção passiva se dá – sem dúvida – pela solicitação, mas o recebimento posterior é nova consumação, um ato de renovação do fato típico, a partir do qual, inclusive, recomeça a contagem do prazo prescricional, sendo este o núcleo típico que justificou a condenação.

Nesse quadro, para que se possa falar em concurso material entre lavagem de dinheiro e corrupção passiva, deve houver outro ato de ocultação ou dissimulação, para além do recebimento indireto, como, por exemplo, na hipótese de simulação de negócios posteriores com o intuito de conferir aparência lícita aos recursos recebidos.
Sobre o assunto, vale destacar o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Ação Penal 804-DF, na qual tratou justamente do tema em discussão:

11. Está documentalmente provado nos autos o depósito de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por pessoa interposta na conta de uma assessor do acusado (…)
12. Dessa forma, o tipo legal reportado no art. 317 do Código Penal (corrupção passiva) se encontra devidamente configurado, e, ao contrário do alegado pelo réu, entendo que incide no caso a causa de aumento do art. 317, § 1º, do Código Penal (…)
13. No que tange ao delito de lavagem de capitais, previsto no art. 1º, inc. V, § 4º, da Lei n. 9.613⁄1998, destaca-se que (…) Por mais que o crime antecedente – “a corrupção passiva qualificada” – tenha existido, a dissimulação ocorrida no caminho que o dinheiro percorreu até chegar nas mãos do acusado não caracteriza a lavagem de capitais, mas apenas a ocultação normal que ocorre no pagamento de propinas. Ou seja, trata-se da mera consumação do crime de corrupção, e não de crime autônomo de lavagem de dinheiro.
15. É admissível a punição pelo crime de autolavagem no Brasil. Precedentes do STF e do STJ. Entretanto, a utilização de terceiros para o recebimento da vantagem indevida não configura, per si , o delito de lavagem de dinheiro, conforme precedente do STF na AP 694⁄MT (Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 2⁄5⁄2017, publicada do DJE 195, de 31⁄8⁄2017). Assim, não há que se falar, no caso concreto, de “autolavagem de capitais”, pois o réu não realizou ações posteriores e autônomas com aptidão para convolar os valores obtidos com a prática delituosa em valores com aparência de licitude na economia formal.
(STJ – APn: 804 DF 2015/0023793-9, Relator: Ministro Og Fernandes, Data de Publicação: DJe 07/03/2019 – grifou-se).

O Supremo Tribunal Federal, já no caso denominado Mensalão, ao julgar o ex-Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, acusado da prática do crime de corrupção passiva, consistente no recebimento de R$ 50.000,00, para favorecer determinada agência de publicidade, e lavagem de dinheiro, porque o recebimento da propina teria ocorrido por meio de sua esposa, a qual sacou a respectiva quantia, decidiu da seguinte maneira:

EMBARGOS INFRINGENTES NA AP 470. LAVAGEM DE DINHEIRO . 1. Lavagem de valores oriundos de corrupção passiva praticada pelo próprio agente:
1.1. O recebimento de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na forma objetiva “receber”, sendo indiferente que seja praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da conduta.
(STF – AP: 470 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 13/03/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 21/08/2014 – grifou-se).

Portanto, tendo em vista que o delito de lavagem de dinheiro caracteriza-se pelo emprego de meios para ocultar ou dissimular a origem, natureza, movimentação e propriedade do produto do crime antecedente, o ato configurador do crime de lavagem de capitais deve ser distinto e posterior à disponibilidade sobre o produto do crime.
Por conseguinte, não é possível a imputação de qualquer mecanismo de lavagem de produto de ilícito que anteceda a consumação do crime de corrupção passiva (em modalidade que tenha gerado recursos), como delito autônomo de lavagem de dinheiro, pois, repita-se, não é possível lavar-se o que ainda não existe.


Claudia da Rocha é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL, professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma e Conselheira Fiscal no IBDPE.

Gabriel Bertin de Almeida é advogado, mestre e doutor em Filosofia pela USP e professor de Processo Penal na PUC-PR.


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