por Guilherme Brenner Lucchesi[1] e Lucas Gandolfi Vida[2]

Imagine uma situação hipotética: o Ministério Público deflagra operação contra cinco alvos, todos dirigentes empresariais, a fim de investigar atos de fraude a licitações públicas, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro. Segundo o Ministério Público, os alvos integram suposta organização criminosa que, mediante o pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos, mantinha-se hegemônica no mercado por vencer indevidamente licitações públicas. Parte dos recursos era movimentado para fora do país mediante companhias offshore.

Após diligências investigativas de interceptação telefônica e quebras de sigilo, houve a expedição de ordens de busca apreensão e mandados de prisão temporária contra os cinco dirigentes. Sabendo-se da existência de fortes indícios de atividade delitiva nos materiais apreendidos, dando conta de reiterada prática criminosa, dois dos cinco alvos, por recomendação de seus respectivos advogados, buscam o Ministério Público para a propositura de um acordo de colaboração premiada. Embora o MP já detivesse informações suficientes para a desarticulação da organização criminosa, percebeu, na busca, que os agentes possuíam outras informações relevantes do modus operandi da organização, bem como outras informações que poderiam levar ao desbaratamento de outras organizações criminosas conexas. Por isso, o MP dá início a tratativas com os dois potenciais colaboradores que, por sua vez, apresentam documentos relevantes que corroboram outros dados já arrecadados, de modo a guiar novas diligências em investigações que já estavam em curso, bem como auxiliam na compreensão da estrutura organizacional e na interpretação dos inúmeros documentos coletados.

São realizadas as tratativas pré-acordo, assinados termos de confidencialidade e entregues anexos com rica descrição das atividades criminosas desenvolvidas, acompanhadas de documentos ainda desconhecidos pelas autoridades e indicações de linhas frutíferas para as investigações em curso. Em síntese, estão preenchidos todos os requisitos para a celebração do acordo, resultante em benefícios aos colaboradores e em provas para serem usadas pelo Ministério Público. Contudo, sob a justificativa de que as informações apresentadas seriam insuficientes – alegação de suposta justa causa – o membro do Ministério Público rejeita a oferta de acordo, devolvendo os documentos e encerrando as tratativas com os pretensos colaboradores. Todos os alvos são denunciados, e a peça acusatória apresenta peculiar riqueza de detalhes sobre os fatos em apuração, não descrita no requerimento de busca e apreensão e prisão temporária dos alvos. Indica-se ter havido novas diligências investigativas posteriormente às buscas e prisões. Tais medidas foram baseadas nas informações obtidas nas tratativas com os pretensos colaboradores?

Há uma questão relevante surgida a partir do exemplo hipotético. Tendo em vista o aparente uso das informações fornecidas pelos alvos durante as tratativas, não se pode simplesmente afirmar que as novas provas, obtidas a partir de diligências investigativas posteriores, tenham sido obtidas por fonte propriamente independente. Caso a investigação tenha sido direcionada para obter algo que não estava ao alcance das autoridades antes das tratativas preliminares de acordo, pode-se reconhecer que os pretensos colaboradores auxiliaram na elucidação do fato e na construção da narrativa acusatória. Caberia um argumento pela impossibilidade de rejeição unilateral do acordo diante de uma efetiva colaboração pelos investigados.

Tendo em vista que as diligências investigativas resultaram na obtenção de provas inicialmente identificadas nas tratativas iniciais para a colaboração premiada, pode-se efetivamente dizer que as informações obtidas dos pretensos colaboradores foram efetivamente utilizadas? Desse questionamento surgem outros, referentes à eventual quebra de custódia da prova e quanto à criação de um mecanismo interno de controle da discricionariedade do Ministério Público na celebração/recusa de acordos.

É neste contexto que identificamos o fenômeno da lavagem de provas, compreendida como a dissimulação ou a ocultação da origem de uma informação inutilizável no processo como fonte de meios de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem.

Ainda que este fenômeno possa ter lugar em outros momentos processuais, optamos por explorá-lo justamente à luz de sua potencial incidência na formação dos acordos de colaboração premiada, em artigo recente publicado na Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, sob o título “Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual”. [3]

O artigo busca compreender o fenômeno da lavagem de provas, a partir da definição proposta, analisando os contornos legais do fenômeno e a (i)licitude das provas dele derivadas. Ademais, também examinamos a lavagem de provas também à luz da cadeia de custódia das provas, de modo a verificar se a obtenção — premeditada ou não — de informações fornecidas pelo pretenso colaborador, sem a concessão de um benefício premial, viola alguma regra processual penal. Por fim, buscando estabelecer medidas para controle da ocorrência do fenômeno, apresentamos possíveis soluções extraídas a partir da experiência do programa de leniência do CADE.

Tratando-se de discussão ainda incipiente na práxis dos acordos de colaboração premiada, de relativa complexidade teórica e prática, o tema da lavagem de provas merece discussão qualificada na doutrina processual penal. Enfatiza-se que, mais do que trazer as consequências jurídicas e as eventuais soluções definitivas, o trabalho buscou explorar uma possível saída, assim como um modo de controlar a lavagem de provas na colaboração premiada, convidando a comunidade jurídica ao diálogo quanto às potenciais soluções apresentadas.


[1] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Foi Presidente do IBDPE (2017-2021).

[2] Advogado sócio da Gustavo Alberine Pereira Advocacia. Pincadista da 40ª Edição do Programa de Intercâmbio do CADE. Membro do IBDPE.


[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner; VIDA, Lucas Gandolfi. Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, p. 2203-2243, set./dez. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i3.542


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br