Por Thiago Diniz Nicolai e Natália Di Maio
Há pouco mais de três anos, a Receita Federal do Brasil editou a Portaria RFB nº 1.750/2018, que apresentou nova sistemática para a elaboração de representação fiscal para fins penais referente a crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social, de contrabando ou descaminho, contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra administração pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e sobre representação referente a atos de improbidade administrativa.
Referida norma, além de expor a forma a ser seguida e o que seria obrigatório em termos de conteúdo e documentos instrutórios, ainda contém requisitos de essencial importância, relacionados a prazos para encaminhamento e hipóteses de exceção.
Prevê, por exemplo, o artigo 10, caput — em consonância com a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal —, que representações fiscais para fins penais relativas a crimes contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social devem “permanecer no âmbito da unidade responsável pelo controle do processo administrativo fiscal até a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”. A única hipótese de envio ao MPF antes desse prazo estava relacionada a casos excepcionais de contrabando e descaminho (conforme artigo 10, §1º, artigo 12, §2º, e artigo 15, IV, da referida portaria).
Já o §2º do mesmo artigo determina que, “na hipótese prevista no caput, se o crédito tributário correspondente ao ilícito penal for integralmente extinto por decisão administrativa ou pelo pagamento, os autos da representação, juntamente com cópia da respectiva decisão administrativa, deverão ser arquivados”.
A despeito de a matéria estar amplamente positivada, contudo, no último dia 13 de outubro a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou a Portaria nº 12.072/2021 para estabelecer “os procedimentos de envio das representações para fins penais aos órgãos de persecução penal” e dispor “sobre a atuação na esfera penal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”, assunto este nunca debatido até então.
Ocorre, no entanto, que tal portaria trouxe diversos pontos que colidem com outras normas e o entendimento jurisprudencial vigente.
O mais grave deles é o fato de não consignar a necessidade de o encaminhamento da representação ter de aguardar o término do processo administrativo relacionado a crimes contra a ordem tributária, em absoluta afronta à Súmula Vinculante nº 24 do STF e ao texto expresso dos artigo 83, caput, e §1º da Lei nº 9.430/96 [1] e do Decreto nº 2.730/98 [2].
Pelo contrário, a nova norma — que não revoga a anterior, pois formulada por órgão distinto — dispõe em sentido diverso, sobre a necessidade de encaminhamento das representações em até 60 dias, contados do encerramento de investigação feita pela Fazenda Nacional ou da ciência dos fatos, na hipótese de o procurador fiscal entender dispensáveis as diligências investigativas ou “se mostrar conveniente e oportuno o encaminhamento imediato” (artigo 3, I e II). Entretanto, a portaria não impõe limites ao entendimento do que seria “conveniente e oportuno”, abrindo, assim, possibilidade para que a Fazenda Nacional dite as regras como bem entender.
Mas não é só isso, e não é preciso um raciocínio muito profundo para perceber os demais problemas intrínsecos às novas disposições normativas. Numa análise rasa, estamos diante desde a afronta direta a texto de súmula vinculante até questões de ordem processual, tendo em vista o previsível aumento de reclamações junto ao STF nos casos em que inquéritos policiais forem instaurados para apurar crimes materiais contra a ordem tributária sem que o débito esteja definitivamente constituído, por exemplo.
Nem mesmo casos em que o débito for parcelado foram excluídos da discricionariedade fiscal, já que, nessas hipóteses, o prazo de 60 dias será contado do restabelecimento da exigibilidade, “salvo se houver indicativo de concurso de crimes com outras espécies delitivas, caso em que será aplicada a regra geral do caput deste artigo” (artigo 3º, §1º).
Nesse ponto, a norma aumenta de maneira vertiginosa os poderes dos procuradores da Fazenda, que agora terão a possibilidade e a discricionariedade de decidir se, além do delito fiscal, há indícios de eventual lavagem de capitais, falsidades, crimes contra a Administração Pública etc.
Outra novidade é a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional poder recorrer de arquivamentos de representações fiscais feitos pelo Ministério Público Federal (artigo 5º), providência prevista pela primeira vez, tal qual a possibilidade de o Fisco se tornar assistente do MPF em ações penais (artigo 6º, caput), participar ativamente em colaborações premiadas (artigo 6º, §2º) e oferecer ação penal privada subsidiária da pública em caso de inércia ministerial (artigo 7º).
Primeiramente, a possibilidade de recurso do arquivamento está fundamentada no artigo 28, §1º, do Código de Processo Penal. Entretanto, tal norma está com sua vigência suspensa, em razão de decisão liminar proferida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.305/DF, sem previsão de julgamento. Não bastasse isso, a legislação fala em possibilidade de recurso da vítima, cabendo aqui, ainda, uma discussão sobre se a PGFN seria vítima de delitos tributários — o que não nos parece o caso.
Noutro passo, a figura dos assistentes é prevista nos artigos 268 a 273 do CPP, que autorizam a intervenção, em todos os termos da ação pública, do ofendido ou de seu representante legal. E quando se fala em “ofendido”, quer-se dizer a vítima pessoa física ou quem lhe represente. Como ensina Aury Lopes Jr., a possibilidade de que órgãos ou entidades sejam assistentes da acusação só é relativizado em casos excepcionais e previstos em lei de forma expressa [3], como acontece com a CVM e o Banco Central nas Leis nº 6.385/79 e 7.492/86.
Para que a PGFN pudesse cogitar auxiliar formalmente o MPF em ações penais, seria preciso haver uma alteração legislativa prevendo essa hipótese, alteração essa que não pode, nunca, ser substituída por uma portaria do órgão fiscal.
O mesmo entendimento deve ser aplicado para a participação ativa do Fisco em procedimentos de colaboração premiada, ante a sua ilegitimidade para atuação em processos criminais. No entanto, visando a celeridade, transparência e segurança jurídica, nada impede que exista uma negociação conjunta do acordo em matéria penal com uma transação tributária, em consonância com o disposto na Lei nº 13.988/20 [4].
Como se pode perceber, o texto proposto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional destoa não só de dispositivos legais e da jurisprudência, como da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil, entidade que está hierarquicamente pareada a ela dentro do Ministério da Fazenda. Ora, não é possível que dois órgãos fiscais tenham entendimentos diferentes sobre um mesmo assunto; que o fiscal da RFB fale uma coisa enquanto o Procurador da PGFN pensa de forma diversa. É preciso que a União esteja alinhada numa posição única, e, diante do quanto exposto neste artigo, não nos parece que a melhor saída seja tomar a posição da Portaria nº 12.072/21 como norte.
[1] Nos termos dos quais “a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos artigos 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”. “Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento”.
[2] “Artigo 1º – O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fiscal, para os fins do artigo 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que configure, em tese; I – crime contra a ordem tributária tipificado nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990; II – crime de contrabando ou descaminho. Artigo 2º Encerrado o processo administrativo-fiscal, os autos da representação fiscal para fins penais serão remetidos ao Ministério Público Federal, se: I – mantida a imputação de multa agravada, o crédito de tributos e contribuições, inclusive acessórios, não for extinto pelo pagamento; II – aplicada, administrativamente, a pena de perdimento de bens, estiver configurado em tese, crime de contrabando ou descaminho”.
[3] Direito Processual Penal, 17ª ed., Saraiva, São Paulo, 2020, p. 613. Isso sem contar, como segue o professor, que “se o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será de iniciativa pública. Logo, quem defende em juízo os interesses do órgão público afetado é o Ministério Público, sendo sem sentido (salvo para gerar desequilíbrio processual e contaminar o processo com o sentimento de vingança) admitir-se a assistência. Do contrário, teríamos que admitir que o Ministério Público é negligente na tutela do patrimônio público, o que seria um contrassenso” (Opus citatum, p. 613/614).
[4] “Artigo 1º – Esta Lei estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”.
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