Por: Claudia da Rocha e Marlus Arns de Oliveira

O Projeto de Lei n. 8.045/2010, que objetiva instituir o Novo Código de Processo Penal, segue na Câmara dos Deputados. O substitutivo, que ainda pode sofrer alterações, engloba 372 propostas de mudanças na legislação, possuindo ao todo 827 artigos.

É importante lembrar que o Código de Processo Penal em vigor é de 1941, fortemente inspirado no Código Rocco da época de Mussolini, possui viés claramente autoritário, ligado ao ideário fascista e com estrutura inquisitorial. Embora tenha sido por diversas vezes reformado, a sua estrutura base mantém-se.

Desse modo, parece-nos clara a necessidade de substituição da Lei Processual Penal por uma que corresponda ao espírito da Constituição da República de 1988, isto é, que seja edificada sobre um sistema que, de fato, seja acusatório. Logo, tendo em mente que o processo penal deve ser lido à luz da ordem constitucional, objetivamos formular algumas considerações sobre o instituto da investigação defensiva, que se pauta principalmente no direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, desde a fase pré-processual[1].

Esclarece-se que o assunto não é novidade no direito brasileiro, sendo, atualmente, regulado pelo Provimento n. 118/2018 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que compreende a investigação defensiva como “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte” (art. 1º).

Ainda, conforme o artigo 2º do referido Provimento, a “investigação defensiva pode ser desenvolvida na etapa de investigação preliminar, no decorrer da instrução processual em juízo, na fase recursal em qualquer grau, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da revisão criminal ou em seu decorrer”. Dessa forma, não há limite temporal para a utilização do instituto, o qual pode, conforme a oportunidade e a conveniência, ser empregado a qualquer tempo.

Por sua vez, no Projeto do Novo Código de Processo Penal, o tema é tratado nos artigos 47 a 49, os quais trazem a possibilidade de o “advogado ou defensor público, na condução da investigação defensiva, promover diretamente diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento de determinado fato, em especial a coleta de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, elaboração de laudos e exames periciais por profissionais privados, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição e os procedimentos previstos na legislação de acesso à informação”.

Nota-se que a regulamentação acerca da investigação defensiva pretende diminuir a disparidade de armas entre a acusação e a defesa, bem como afastar as tentativas de criminalização da advocacia criminal. Assim, andou bem o legislador ao almejar garantir a isonomia entre as partes na persecução penal e o direito de defesa do imputado.

Porém, é necessário ficar atento para que não haja o desvirtuamento do instituto. Nesse sentido, para ilustrar o problema em debate, menciona-se que, no caso de crime doloso contra a vida, no projeto do novo Código de Processo Penal, houve o alargamento do prazo da resposta, de 10 (dez) para 45 (quarenta e cinco) dias, na hipótese de o juiz não rejeitar a denúncia liminarmente, sob a justificativa de propiciar uma investigação defensiva, a fim de que a defesa possa apresentar documentos e elementos que entender pertinentes para a desclassificação ou absolvição sumária[2]. Ao lado disso, elimina-se a primeira fase do procedimento do júri, pois o Juiz deve decidir se recebe a inicial acusatória após a resposta da defesa e esse recebimento equivale à submissão do acusado ao júri.

Então, enquanto, de um lado, aumenta-se o prazo da resposta, de modo a possibilitar a investigação defensiva, de outro, exclui-se a primeira fase do procedimento do júri. Por isso, é preciso olhar atentamente a situação. Primeiro, deve-se proporcionar à defesa instrumentos capazes de proporcionar uma efetiva investigação, para que o mecanismo não seja apenas uma falácia legislativa.

A título exemplificativo, destaca-se que, além do poder de requisição, o Ministério Público possui acesso a inúmeros sistemas indisponíveis à defesa. Frise-se que não prevalece aqui a discussão quanto à dicotomia entre o interesse público e o interesse particular. O Parquet, como principal destinatário do inquérito policial, representando o Estado-acusação, foi estruturado para manifestar uma opinião independente e para buscar elementos de sua convicção, de sorte que o acusado, para melhor demonstrar sua versão dos fatos, a fim corroborar com provas as suas alegações, deve ter também acesso a um arcabouço de informações para não fazer do texto um incremento natimorto.

Em segundo lugar, esse instituto deve ser compreendido como uma faculdade e não um ônus disfarçado de comprovação da inocência, sendo oportuno lembrar, nesse ponto, que inúmeros acusados vulneráveis financeiramente possivelmente não terão condições de concretizar esse instituto.

A investigação defensiva não pode, ainda que não declaradamente, ser utilizada para redistribuir-se o ônus da prova, no sentido de aumentar o encargo que recai sobre a defesa de buscar fontes de prova capazes de comprovar a inocência do imputado. O ponto de partida de toda persecução penal deve ser a incerteza, afirmada pela presunção da inocência, cabendo à acusação o ônus da prova sobre o fato típico, autoria ou participação, nexo causal e elemento subjetivo. À defesa incumbe provar a presença de eventual causa excludente da ilicitude, da culpabilidade ou extintiva da punibilidade.

É inconcebível, portanto, qualquer alegação no sentido de que a defesa tinha à disposição a possibilidade de angariar elementos que comprovassem a inocência do acusado, de modo que, ao não fazê-lo, considera-se verdadeira a versão acusatória, pois não se exige da defesa uma prova cabal acerca das teses, bastando que produza um estado de dúvida razoável para que o acusado seja absolvido. Há uma distinção no tocante ao quantum necessário para cumprir o ônus da prova, não podendo a investigação defensiva ser utilizada para alterar essa distribuição.

Por fim, é necessário lembrar que o processo penal, em um Estado Democrático de Direito, não pode ser concebido como mero instrumento para diminuir a impunidade, mas sim como um diploma limitador do poder estatal e garantidor do indivíduo. O discurso de combate à criminalidade não pode legitimar, em hipótese alguma, a flexibilização das regras processuais penais e nem mesmo a sua alteração em prejuízo do acusado.


Claudia da Rocha é Advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.

Marus H. Arns de Oliveira é Advogado sócio de Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e Doutor em Direito pela PUC/PR.


[1] PEZZOTTI, Olavo Evangelista; BECHARA, Fábio Ramazzini. Investigação Defensiva no projeto do novo CPP: disparidade de armas. Jota, 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/investigacao-defensiva-no-projeto-do-novo-cpp-disparidade-de-armas-10052021. Acesso em 02 de ago. de 2021.

[2] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Tribunal do Júri: avança na Câmara a Reforma do Código de Processo Penal, Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-15/avelar-faucz-avanca-camara-reforma-cpp. Acesso em 02 de ago. de 2021.


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