Por: Bárbara Mostachio Ferrassioli e Ronaldo dos Santos Costa
O reconhecimento de pessoas e coisas é um “meio de prova utilizado com a finalidade de obter a identificação de pessoa ou coisa, por meio de um processo psicológico de comparação com elementos do passado[1]”.
Embora previsto no art. 226 do Código de Processo Penal um procedimento detalhado e formal para a produção de tal prova – ainda que defasado no tempo –, sabe-se que, durante muitos anos, a jurisprudência dos tribunais pátrios (lamentavelmente) relativizou a aplicação do rito legal, concebendo à referida norma o caráter deficitário de “mera recomendação”.
Desta deturpada concepção, sobrevieram diversas arbitrariedades, injustiças e erros judiciários em condenações criminais, decorrentes da utilização de reconhecimentos, não raras vezes, baseados em falsas memórias, preconceitos sociais e racismo estrutural.
O cenário mudou, porém, quando o Superior Tribunal de Justiça passou a questionar o tratamento (antes descuidado) da referida norma processual. O precedente consolidado no julgamento do HC 598.886/SC, em 27/10/2020, da lavra e relatoria do Exmo. Min. Rogerio Schietti Cruz, é emblemático quanto à radical mudança no enfrentamento do tema.
Sedimentou-se, pois, a partir do citado julgamento, que “o reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador.”.
Ou seja, com a mudança no paradigma jurisprudencial, o rito previsto no art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas recebeu, finalmente, tratamento mais justo e coerente pelo sistema de justiça criminal, erigindo-se à posição de norma cogente e de observância obrigatória, porquanto detentora do status de inderrogável garantia processual penal àquele que ocupa a posição de investigado/acusado.
Na seara do reconhecimento por meio fotográfico, que sequer encontra previsão legal, a realidade experienciada nas Delegacias de Polícia é ainda mais caótica e propícia à ocorrência de falsos reconhecimentos.
A praxe demonstra “reconhecimentos” realizados pela mera exibição de foto do único suspeito (reconhecimento show up), extraídas de redes sociais, em caráter estático e, por vezes, em baixa resolução (isso para ficar em apenas alguns dos tantos problemas que permeiam a questão do reconhecimento fotográfico).
O problema do abandono das fórmulas legais quando da lavratura do auto de reconhecimento – e que parece ter sido finalmente compreendido pelos Tribunais superiores – consiste na alta probabilidade de indução do reconhecedor a falsas memórias, sobretudo pelo sugestionamento exógeno (do delegado, do investigador, do escrivão, etc), que busca meramente confirmar a hipótese investigatória que tem em mente.
É evidente que a chance de uma testemunha reconhecer um suspeito X quando a ela se exibe unicamente uma foto do sujeito X é muito maior do que a chance de ela reconhecer o mesmo sujeito se submetido a reconhecimento pelo rito do art. 226 do CPP. É dizer: o reconhecimento de pessoas, quando realizado sem observância do procedimento próprio ou similar, é altamente suscetível ao sugestionamento externo e, portanto, carece de confiabilidade, mormente na seara da prova processual penal.
Aury Lopes Jr[2]. há tempos alertava sobre o problema das falsas memórias em matéria de prova no processo penal:
As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação. Ambos são perigosos para a credibilidade da prova testemunhal, mas as falsas memórias são mais graves, pois a testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso. Daí por que é mais difícil identificar uma falsa memória do que uma mentira, ainda que ambas sejam extremamente prejudiciais ao processo.
É importante destacar que, diferentemente do que se poderia pensar, as imagens não são permanentemente retidas na memória sob a forma de miniaturas ou microfilmes, tendo em vista que qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
Janaina Matida também dedica boa parte de sua contribuição acadêmica ao estudo do reconhecimento de pessoas tal qual realizado no Brasil e o prejuízo decorrente da inobservância das garantias processuais penais. O exemplo trabalhado pela autora em uma de suas produções sobre o tema fala por si[3]:
Entre o início de sua oitiva em juízo e o momento em que apontou Thomas como seu estuprador, a audiência precisou ser suspensa para que Janet se recompusesse. Seu corpo respondia às fortes recordações daquele dia trágico. Perguntada pelo promotor como ela tinha 100% de certeza de que se tratava de seu estuprador, Janet reforçou que nunca seria capaz de esquecer aquele rosto. Thomas foi condenado a mais de 70 anos de prisão, dos quais cumpriu 27. Foi declarado inocente apenas em 2011, a partir da comparação do DNA dele com o material genético colhido por ocasião do estupro cuja incompatibilidade demonstrou, de uma vez por todas, a sua inocência. Em suma, vítimas e testemunhas podem não ter motivos para mentir, o que não afasta o perigo de erros honestos sejam por elas cometidos em razão de falsas memórias.
Essa realidade parece ter sido finalmente admitida, assimilada e, o que é melhor, repudiada pelo STJ[4]. No precedente acima mencionado (HC 598.886-SC) – que resultou na absolvição (em sede de Habeas Corpus!) de paciente condenado com base em reconhecimento fotográfico então declarado nulo –, restaram assentadas as seguintes conclusões, que servem de diretrizes para os reconhecimentos realizados a partir do referido julgamento: “1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.”.
Igualmente atento à nocividade do reconhecimento pessoal equivocado ao processo penal, o CNJ, por meio da Portaria nº 209 de 21 de agosto de 2021, instituiu o “Grupo de Trabalho destinado à realização de estudos e elaboração de proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes”, coordenado pelo Exmo. Min. Rogério Schietti Cruz.
Segundo o CNJ, “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário, que faz com que inocentes sejam indevidamente levados ao cárcere”. Os dados levantados pelo órgão e estampados na referia Portaria são alarmantes:
CONSIDERANDO o levantamento realizado pelo Innocence Project nos Estados Unidos, que indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização do exame de DNA (https://innocenceproject.org/dna-exonerations-in-the-united-states/);
CONSIDERANDO a ampla produção científica¹ acerca da falibilidade da memória humana, passível de sugestionamentos e influenciável por emoções, bem como acerca da diversidade de fatores implicados no ato do reconhecimento, seu alto grau de subjetividade e a suscetibilidade de falhas e distorções;
CONSIDERANDO que em levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em âmbito nacional, foi identificado que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e, em média, o tempo de prisão foi de 281 dias (aproximadamente 9 meses) (https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf );
CONSIDERANDO que em 83% dos casos de reconhecimento equivocado identificados no referido levantamento, as pessoas apontadas eram negras, a denunciar que o procedimento é marcado pela seletividade do sistema penal e pelo racismo estrutural (…).
Mais recentemente, em sessão de julgamento realizada no dia 23/11/2021, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas corpus nº 206.846, que também pretende definir se a inobservância do procedimento previsto no art. 226 do CPP constitui causa de nulidade absoluta ou relativa.
Conquanto ainda não finalizado referido julgamento – houve pedido de vista pelo Ministro Ricardo Lewandowski –, o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, acompanha o entendimento sedimentado na Sexta Turma do STJ (HC 598.886/SC), pretendendo aprimorar a confiabilidade do reconhecimento pessoal enquanto meio de prova no processo penal brasileiro a partir de três teses prospectivas, a saber: “1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas; 3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos”.
Significa, portanto, que, a partir da nova interpretação conferida à norma pelo STJ – que, a princípio, vem sendo referendada pelo STF –, a inobservância do procedimento legal na realização do reconhecimento pessoal atrai como consequência a nulidade (absoluta) da prova, que não pode servir para embasar eventual condenação criminal ou sequer o recebimento de denúncias (quando ausentes outros indícios válidos de autoria no início da persecução penal).
A mudança jurisprudencial, conquanto tardia, é recebida com aplausos. Sem dúvida, em um processo penal democrático e de base garantista, como deve ser o brasileiro, tornar mandatória a observância do procedimento legal do reconhecimento pessoal, ao menos até que advenha norma específica e atualizada a aprimorar a produção desta prova, representa não apenas uma necessidade emergente para melhoria da confiabilidade da prova processual penal, mas, sobretudo, importante iniciativa no combate ao racismo estrutural e à seletividade penal.
[1] LOPES, Mariângela T. O reconhecimento como meio de prova: necessidade de reformulação do direito brasileiro. Tese de Doutorado em Direito – Universidade de São Paulo, 2011. p. 23.
[2] Vide interessante artigo sobre o tema em https://www.conjur.com.br/2014-set-19/limite-penal-voce-confia-memoria-processo-penal-depende-dela?.
[3] Vide artigo completo em < https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal?pagina=2>
[4] Outro precedente de peso nesta virada de paradigma jurisprudencial trata-se do acórdão resultante do julgamento do HC nº 652.284/ SC, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Ronaldo dos Santos Costa é advogado criminalista e sócio do escritório Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.
Bárbara Mostachio Ferrassioli, é advogada criminalista e coordenadora do núcleo de Direito Penal do escritório Karsptein Falavinha Advocacia.
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