Por Bibiana Fontella[1]
Recentemente, em final do último ano, foi publicado pela revista Carta Capital[2] que o ex-juiz Sergio Moro teria admitido na pré-candidatura pelo Podemos que “na Lava Jato combateu o PT”. Sem adentrar às questões partidárias dessa informação, é de suma relevância analisar a politização do Poder Judiciário quando seu principal objeto é o combate à corrupção. Neste ponto há três julgados do STF e STJ que demostram a clara preocupação da Corte Constitucional com o discurso anticorrupção.
No INQ 4.506[3] o Ministro Luís Roberto Barroso proferiu voto e ao analisar a tipicidade do crime de corrupção passiva afirmou que o entendimento jurisprudencial atual rejeita a perspectiva sinalagmático da corrupção. O Ministro destaca que:
a exigência de indicação de um ato concreto para a caracterização do delito de corrupção – além de ser contrária, como visto, ao texto expresso da lei – afasta da punição as manifestações mais graves da violação à função pública: o guarda de trânsito que pode dinheiro para deixar de aplicar um multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune.
Referenciando o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, a Ministra Laurita Vaz adotada o mesmo posicionamento em voto divergente no RESP 1.745.410[4], no qual há importante alteração da interpretação jurisprudencial, pois é abandonada a exigência de nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o feixe de atribuições do funcionário público[5]:
Afinal, como bem pontuou o Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO por ocasião do julgamento do Inq 4.506/DF, exigir nexo de causalidade entre a vantagem e ato de ofício de funcionário público levaria à absurda consequência de admitir, por um lado, a punição de condutas menos gravosas ao bem jurídico, enquanto se nega, por outro lado, sanção criminal a manifestações muito mais graves da violação à probidade pública: “o guarda de trânsito que pede dinheiro para deixar de aplicar uma multa seria punível, mas o senador que vende favores no exercício do seu mandato passaria impune” (Voto do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO no Inq 4.506/DF, p. 2.052)
Outro importante julgado para o objeto do presente é o RHC 144.615[6], que apesar de não tratar especificamente do crime de corrupção, o relator Ministro Edson Fachin ao manter seu voto após a divergência, afirma a importância do combate à corrupção:
É errado equacionar luta pela responsabilização e o combate à impunidade com um aumento do “punitivismo”, assim como é errado imaginar que o programa da Constituição de 1988 foi criar amarras para a eficiência dos serviços públicos. A síntese de Ulysses Guimarães continua atual: a Constituição tem ódio e nojo da ditadura, mas “a corrupção é o cupim da República”. Dito de outro modo: é possível ao mesmo tempo ser democrático e combater a corrupção pelo aprimoramento do sistema judicial.
A politização por que têm passado os esforços por mais eficiência na justiça é, por tudo isso, lamentável. A polarização impõe um falso dilema à sociedade: ou se combate o “punitivismo”, ou retornaremos ao arbítrio, como se o estado de coisas anterior, no qual grassou por ano a ineficiência e deitou raízes o cupim da República, fosse o único apanágio da democracia. Por tudo isso, é preciso que não abandonemos os esforços por uma justiça mais eficiente e por uma democracia mais justa. É importante, em suma, não se afastar dos precedentes desta Corte que deram força e respaldo à síntese da Constituição a que se referiu Ulysses Guimarães.
No voto do Ministro Luís Roberto Barroso há importante constatação discursiva dentro do Supremo Tribunal Federal, a necessidade de punir membros do Poder Legislativo. O mesmo se repete no voto da Ministra Laurita Vaz no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que afirmou a necessidade de afastar a exigência do nexo de causalidade entre a vantagem indevida e o ato de ofício do funcionário Público.
Crime de corrupção é tratado na legislação brasileira apenas sob duas modalidades – passiva e ativa – sem qualquer especificidade da atividade ou função pública em que ocorre. Com isso, há uma grande lacuna, pois a função desempenhada pelo guarda de trânsito não é mesmo do senador. Desta forma, não é possível analisar da mesma forma um ato de corrupção do guarda de trânsito e do representante do Poder Legislativo. Pois, enquanto aquele não trabalha com dinheiro público – sua função é tão somente fiscalizar o cumprimento ou descumprimento das regras de trânsito – o Senador ou Deputado administra diretamente o dinheiro público quando de suas campanhas políticas. Não é possível usar a mesma medida para ambos. O que o Poder Judiciário vem fazer é exatamente a tentativa de adequação do crime de corrupção passiva para os membros do Poder Legislativo e Executivo possam ser punidos, uma vez que o tipo do art. 317, CP foi pensado para o “guarda de trânsito”.
A luta contra corrupção politiza o judiciário e judicializa da política, visto que muitos conflitos que deveriam ser servidos na dialética da conjuntura política acabam sendo trazidas para o Poder Judiciário e acabam por interferir diretamente na disputa de partidos políticos. Assim é formado deslocamento de legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário.[7]
Quando o processo penal é utilizado como instrumento para defender uma causa, seja o combate a corrupção ou qualquer outra. Infelizmente, até o presente o Código de Processo Penal não foi complementarmente alterado, nossa lei processual é de 1940 influenciado pelo Código Rocco de 1930 na Itália, e com marcas da Ditadura Vargas. Ao longo destes anos algumas reformas pontuais foram realizadas, mas não de forma estrutural, evoluímos em alguns pontos, mas é preciso que a percepção dos sujeitos processuais adote o paradigma de um processo meramente descritivo, apolítico, neutro e autossuficiente. Isso representa muito para o modelo de Estado e cultura da nossa sociedade, significa a vinculação constitucional, seja pela leitura das regras preexistentes a ela, seja pela reforma posterior, é uma necessidade condicionante do processo penal contemporâneo, de um processo penal democrático, capaz de superar vícios autoritários. [8]
Os discursos de combate a determinados crime é recorrente e cíclico no sistema penal, no momento o discurso é anticorrupção e a ampla criminalização de organizações. Da mesma forma como foi na inquisição das bruxas, com o surgimento do famoso manual de investigação Malleus Maleficarum. É necessário ter cuidado, como destacou Spee na Cauto Criminais, é preciso ter cautela e muita prudência[9] por parte dos sujeitos processuais, graves consequências aos imputados do processo penal podem ser vivenciadas e ao próprio Estado Democrático de Direito.
[1] Mestre em Ciências Jurídica-Criminais pela Faculdade de Direito em Universidade de Coimbra. Advogada Criminal e Professora. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
[2] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/a-lava-jato-combateu-o-pt-de-forma-eficaz-confessa-moro-em-entrevista/
[3] STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.
[4] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018
[5] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.
[6] STF, RHC 144.615, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. P/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgamento 25/08/2020, publicação 27/10/2020.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29 e 30.
[8] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 87 – 113.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 153
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