Por: Gabriela Kreusch Serena[1] 

Com a globalização, o advento das grandes crises econômicas e os mega escândalos financeiros, surgiu a necessidade de o Estado assumir uma função .[2] Essa nova realidade trouxe à tona o tema dos “crimes de colarinho branco”[3] ou “cifra dourada da criminalidade”[4], que agora colocam em evidência a criminalidade empresarial e corporativa enquanto núcleo do Direito Penal Econômico.

Em vista dos efeitos estrondosos que grandes escândalos financeiros causam, há um verdadeiro efeito dominó em todos os setores sociais, notadamente em decorrência da perda de credibilidade das empresas em razão da prática de crimes e a consequente perda de investimento. Os impactos que os ilícitos cometidos por empresas geraram na economia mundial impulsionaram a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em que vigora uma pluralidade de posições acerca do tema.

Parte da doutrina, invocando o brocardo societas delinquere non potest, entende ser inadmissível a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.[5] Por outro lado, há autores que defendem que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é possível e necessária[6], principalmente na proteção dos bens jurídicos difusos e supraindividuais[7]. Nesta concepção, entende-se que as condutas ilícitas praticadas pelas empresas geram uma espécie de cadeia de vitimização, em que diversos bens jurídicos são atingidos de diferentes maneiras.

No Brasil, é fundamental a análise da responsabilidade penal das pessoas jurídicas à luz da Constituição Federal de 1988, que primeiro dispôs sobre o tema. O art. 225 §3º[8] prevê a possibilidade da imposição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas que praticarem condutas atentatórias ou lesivas aos bens jurídicos de ordem ambiental.

O art. 173, §5º, da CF, acabou por deixar uma interpretação aberta acerca dos crimes econômicos e a possibilidade de regulamentação por uma lei estrita, que até o momento não há. Segundo Salvador Netto e Souza, o sistema jurídico brasileiro possibilita a responsabilização penal das pessoas jurídicas não só pela prática de crimes ambientais, mas também pelos “atos tipificados como atentatórios à ordem econômico-financeira e nas relações de consumo”[9].

No âmbito dos crimes ambientais, a Lei n.° 9.605/98 dispõe sobre a responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas, quando as infrações forem cometidas por seus representantes, não excluindo a possibilidade da responsabilização das pessoas físicas enquanto coautores[10]. Em 2013, no julgamento do RE 548.181, a primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de se processar penalmente a pessoa jurídica independentemente da pessoa física. Na decisão, a Relatora Ministra Rosa Weber manifestou-se no sentido de que, para a responsabilização da pessoa jurídica, “não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”[11].

A Lei n.º 12.846/2013 (Lei “Anticorrupção”) regulamenta a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Apesar da ausência de responsabilização criminal, as sanções possuem caráter especialmente aflitivo[12], pouco se distinguindo de penas[13]. Dentre as severas punições estabelecidas pela Lei, cita-se a multa, a inscrição nos Cadastros Nacionais de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e nos Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) e a suspensão da participação de processos licitatórios.

Tais sanções administrativas podem trazer consequências nefastas às pessoas jurídicas, em razão da dificuldade na obtenção de linhas de crédito e parcelamentos tributários, além da perda de credibilidade internacional que pode incidir diretamente na queda do valor das ações da empresa (como ocorreu com a Petrobrás). Portanto, as sanções administrativas podem gerar resultados muito mais gravosos que determinadas sanções penais. Além disso, o Direito Administrativo não é regido pelas mesmas garantias que o Direito Penal e o Direito Processual Penal, o que acarreta evidente desequilíbrio na balança da equidade e justiça.

Ante as graves sanções aplicáveis às pessoas jurídicas, a Lei n.º 12.846 reafirmou a necessidade da implementação de um sistema de controle e de promoção das boas práticas empresariais. Nessa toada, ganhou destaque o compliance, concebido como “o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e o risco legal/regulatório”[14].

A implementação do programa de compliance inclui oito pilares: (i) compromisso da alta administração; (ii) gerenciamento de risco; (iii) definição de políticas e procedimentos; (iv) treinamento e comunicação; (v) canal de denúncia; (vi) investigação; (vii) due diligence e (viii) monitoramento e auditoria. No Brasil, o “canal de denúncia” é obrigatório nas sociedades de capital aberto, as quais devem possuir meios para o recebimento de denúncias sobre questões internas ou externas. Ademais, as investigações corporativas, bem como as auditorias periódicas são mecanismos de suma relevância no exercício de averiguação dos fatos delituosos e na proteção dos interesses da companhia.

Desse modo, o compliance surge como pilar garantidor da governança corporativa para proteger a pessoa jurídica e seus acionistas contra possíveis ações lesivas perpetradas pelos executivos contratados. Além de se relacionar à criação, à implementação e à fiscalização de normas e condutas, o compliance age como uma forma de conscientização dos gestores e colaboradores a respeito dos seus deveres e obrigações legais, prevenindo riscos (o chamado compliance risk) e atribuindo a responsabilidade de vigilância a todos os integrantes das atividades empresariais.

Desse modo, a prática do compliance consiste em uma estratégia para incentivar a adoção de medidas internas nas empresas a fim de preservar a integridade tanto das pessoas jurídicas[15] quando das pessoas físicas – enquanto possíveis coautoras[16]. Ademais, vale comentar que o sistema brasileiro estabelece uma série de benefícios às pessoas jurídicas que implementam o programa de compliance, não só na disputa em procedimentos licitatórios, como por meio da isenção completa de imputação de responsabilidade em determinados casos[17].

Diante do exposto, tendo-se em conta que a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas é cada vez mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência de diversos países – especialmente pela pressão dos órgãos internacionais (v.g., OCDE) – ganha especial relevância a adoção do sistema de compliance nas empresas.

O sistema vem como uma forma de hibridização entre poder público e privado em função das normas internas de empresas,[18] as quais devem seguir os ditames da legislação pátria para prevenir, não apenas os riscos às pessoas físicas, como também à própria pessoa jurídica. Assim, as formas de autorregulação por meio do compliance têm como cerne a prevenção de riscos que podem culminar na responsabilidade da pessoa jurídica, o que consequentemente garante a sua proteção no âmbito penal, cível e administrativo.


[1] Acadêmica de direito pela UFPR. Estagiária do escritório Antonietto & Guedes de Castro e Pesquisadora acadêmica do IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico)

[2] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. Derecho Penal Económico. Consideraciones jurídicas y económicas.  Lima: Idemsa, 1997. 31-47.

[3] SUTHERLAND, Edwin H. White collar crime: the uncut version. New Haven, Londres: Yale University, 1983. p. 246.

[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 10.

[5] MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Informe sobre el proyecto de lei que establece la responsabilidad legal de las personas jurídicas em los delitos de lavado de activos, financiamiento del terrorismo y delitos de cohecho que indica, mensaje nº 018-357/. Revista Ius et Praxis, ano 15, nº 2, pp. 285-316.

[6] TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1995. p. 21.

[7] BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los bienes jurídicos colectivos: repercusiones de la labor legislativa de Jimenez de Asúa em el Código Penal de 1932. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, n.º 11, jun. 1986. p. 153-154.

[8] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

[9] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários à Lei de Crimes Ambientais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 90-92.

[10] Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

[11] STF, 1.ª T., RE 548181, Relatora Min. Rosa Weber, j. 6 ago. 2013.

[12] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 87.

[13] Idem.

[14] COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2.

[15] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 132.

[16] NÍETO MARTÍN, Adán. El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 10.

[17] GALÁN MUÑOZ, Alfonso. Fundamentos y límites de la responsabilidad penal de las personas jurídicas tras la reforma de la lo 1/2015. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 119.

[18] NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 13-14


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