Por Ana Beatriz da Luz
Passados mais de dois anos desde o início da vigência da Lei n. 13.964/2019, muitas das alterações instituídas pelo chamado “Pacote Anticrime” ainda permanecem nebulosas e são alvos de pertinentes questionamentos. Dentre as significativas mudanças trazidas pelo diploma legal, tem-se o acréscimo, ao Código Penal, do artigo 91-A, que instituiu novo efeito da condenação criminal, passando a autorizar, caso haja condenação por crime cuja pena máxima seja superior a 06 (seis) anos, “a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito”.[1]
Embora instituído apenas recentemente no ordenamento jurídico, não é de hoje que se tem defendido a necessidade de recrudescimento da intervenção penal no que se refere às medidas de combate à corrupção, direcionadas especialmente ao agravamento das consequências patrimoniais da prática delitiva, a fim de fazer frente aos “crimes do colarinho branco”. Foi justamente no contexto da Operação Lava Jato, a maior operação da história recente do país, que o Ministério Público Federal, no ano de 2016, apresentou as “10 medidas contra a corrupção”, sintetizadas no PL 4850/2016[2], apresentado na Câmara dos Deputados após grande adesão popular, com o recolhimento de duas milhões de assinaturas. À época, a introdução de uma “perda alargada” no ordenamento jurídico brasileiro foi uma das alterações propostas como mecanismo de combate à criminalidade econômica.[3]
Desde então, outras iniciativas surgiram com o mesmo propósito. Assim, a Lei n. 13.964/19, comumente chamada de Lei Anticrime, é resultado do Projeto de Lei n. 10.372/2018[4], que reuniu propostas da comissão coordenada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no ano de 2018, bem como do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2019, chefiado, à época, pelo então Ministro Sergio Moro. O Ministro inclusive encaminhou à Câmara suas propostas legislativas, por meio do PL 882/2019[5], às quais foi atribuído o nome bastante difundido (e questionável) de “Pacote Anticrime”.[6]
Da leitura do recém criado artigo 91-A do Código Penal, chama atenção o critério quantitativo fixado pelo legislador para limitar a incidência da medida a determinadas figuras delitivas: fora estabelecido, como dito, o requisito de prévia condenação “por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão”. Aqui reside o ponto nevrálgico e tema do presente estudo, tendo em vista a questionável redação legal e consequente ausência de correlação entre as finalidades da alteração legislativa e o texto efetivamente sancionado.
Inicialmente, nota-se que não há, na exposição de motivos do PL 882/2019[7] (que propôs referida delimitação), qualquer justificativa para a adoção do mencionado critério. Pode-se dizer, a priori, que a finalidade foi a de restringir o confisco alargado às figuras delitivas mais graves, estabelecendo, por isso, o parâmetro objetivo relacionado à pena cominada. Ainda assim, causa estranhamento o fato de que o confisco alargado não tenha sido condicionado à gravidade concretamente considerada, e não à previsão abstrata de aplicação de pena em referido patamar.
Outrossim, muito pertinentes são as observações existentes a respeito da desproporcionalidade da resposta sancionatória em relação à pena prevista para alguns delitos, tendo em vista a “incisiva distância entre o mínimo e o máximo estabelecidos”[8], como é o caso, ilustrativamente, da corrupção passiva, punida com reclusão de dois a doze anos. Referida circunstância evidencia de forma ainda mais clara a incongruência da medida. A fim de facilitar a compreensão, pode-se comparar, exemplificativamente, o delito de corrupção passiva com outro, bastante distinto, mas que igualmente gera proveito econômico ao agente: o delito de rufianismo. O artigo 230 do Código Penal tipifica a conduta daquele que tira “proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.” O parágrafo primeiro, por sua vez, institui a figura qualificada, quando a vítima é menor de dezoito e maior de quatorze anos, prevendo, como sanção, a reclusão de três a seis anos. Assim, pela sistemática adotada na Lei n. 13.964/21, ainda que o agente seja condenado à pena máxima prevista ao gravíssimo crime de rufianismo qualificado, não será cabível o confisco alargado, mesmo que haja patrimônio incompatível com sua renda lícita. Por outro lado, a medida pode ser adotada em desfavor de condenado pelo crime de corrupção passiva, ainda que à pena mínima de 02 (dois) anos, uma vez que a sanção abstratamente cominada ultrapassa os 06 (seis) anos exigidos pelo novo artigo 91-A. E não é só: ainda tomando-se como base o crime de rufianismo, caso o delito seja praticado com violência ou grave ameaça, a figura qualificada prevista no parágrafo primeiro do artigo 215 comina pena máxima de oito anos, de forma que, aí sim, poder-se-ia aplicar o confisco alargado, embora a circunstância que qualifica o delito não tenha qualquer relação com aspectos patrimoniais. Não é possível identificar, portanto, qualquer racionalidade por trás do critério fixado no novo texto legal.
Além disso, analisando-se as justificativas apresentadas nos projetos de lei que originaram a Lei Anticrime, observa-se, de maneira geral, a vinculação das alterações propostas à finalidade de coibir crimes específicos. O PL n. 882/2019, subscrito por Sérgio Moro, aduz expressamente que “este projeto tem por meta estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. Acrescenta ainda que as propostas de alteração legislativa enfrentam “os três aspectos, corrupção, organizações criminosas e crimes com violência, porque eles são interligados e interdependentes.”
O PL n. 10.372/18, por sua vez, deixa ainda mais evidente a finalidade específica que propõe ao confisco alargado, pois, diferentemente do texto promulgado, pretendia incluí-lo na Lei n. 12.850/2013, vinculado à prática dos crimes previstos em referida legislação e, portanto, com o claro intuito de coibir as organizações criminosas. Tanto é assim que na justificativa do projeto lê-se que “a constrição financeira das organizações criminosas é medida essencial para a eficaz persecução penal, retendo e decretando o perdimento dos bens e valores obtidos pela prática de infrações penais”.
Referidas circunstâncias tornam ainda mais questionáveis os motivos pelos quais o texto atualmente em vigor, que incluiu o confisco alargado no Código Penal (e não em lei específica como pretendia o PL n. 10.372/2018) não delimitou o cabimento da medida a determinadas práticas delitivas, mas somente à pena máxima abstratamente cominada ao crime objeto de prévia condenação.
Mas não é só. O PL n. 4850/2016, encabeçado pelo Ministério Público Federal, diferentemente dos demais, propôs a incidência do confisco alargado apenas no caso de condenação por delitos taxativamente previstos, como tráfico de drogas, peculato, corrupção ativa e passiva, etc. Ainda, a justificativa do projeto assevera que a introdução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro cumpriria com “diretrizes de tratados dos quais o Brasil é signatário” e adequaria “o sistema jurídico pátrio a recomendações de fóruns internacionais voltados a coibir o crime organizado”.
Conforme explica Roberto D’Oliveira Avila, três são os tratados existentes a respeito do assunto. Inicialmente, tem-se a Convenção de Viena de 1988 que, ao tratar do tráfico de drogas, “mencionou em seu texto, diversas vezes, a importância da recuperação de ativos para o sucesso da repressão e prevenção desejadas”[9]. No parágrafo 7º do art. 5º, adotou uma medida próxima aos contornos atuais do confisco alargado, ao dispor que “cada parte considerará a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem lícita do suposto produto ou outros bens sujeitos a confisco […]”.[10] Disposições semelhantes são encontradas também nas Convenções de Palermo (2000) e de Mérida (2003).
Ocorre que, não sendo reproduzido na Lei n. 13.964/2019 o catálogo de crimes existente no referido Projeto de Lei, não se verifica também a coesão do texto legal com os objetivos assinalados nas citadas convenções internacionais, posto que não há vinculação do instituto aos crimes que estas visam coibir. A Convenção de Viena, como dito, estabelece o confisco como mecanismo de repressão ao tráfico de drogas, reconhecendo, por conseguinte, a necessidade de combate às organizações criminosas e lavagem de dinheiro. Por outro lado, as Convenções de Palermo e Mérida constituem, respectivamente, marcos legais no combate internacional das organizações criminosas e crimes de corrupção.
Além disso, o mesmo PL n. 4.850/16 também fala em harmonizar “a legislação brasileira com sistemas jurídicos de outros países que já preveem medidas similares”. Igualmente, porém, a redação atual destoa do que se observa em outros países a respeito do tema. Exemplificativamente, a legislação portuguesa, ao instituir o confisco alargado por meio da Lei 05/2002, vinculou expressamente o cabimento da medida à condenação prévia por determinados crimes taxativamente previstos na legislação, dispondo que
Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.[11]
Referido artigo 1º prevê algumas figuras delitivas às quais o confisco alargado estaria vinculado, como os crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros. A esse respeito, vale observar que Roberto D’Oliveira Vieira, ao analisar o confisco alargado da perspectiva do direito comparado, pontuou a existência, em Portugal, de um “catálogo de crimes”, asseverando inclusive a importância de referida delimitação legislativa. Em suas palavras,
A avaliação da pertinência de determinado crime com o instituto da perda alargada evita arbitrariedades na decisão legislativa e permite aferir, com mais segurança, o respeito ao princípio da proporcionalidade.
Busca-se evitar, com tal controle, que o novo instrumento de confisco recaia, também, sobre a criminalidade em geral, quando o objetivo principal do confisco alargado – ao menos desde o surgimento nas Convenções de Viena, de Palermo e de Mérida e nos atos da União Europeia – sempre foi atingir apenas os produtos relacionados a crimes lucrativos praticados em contexto estranho à criminalidade clássica.[12]
Não se sustenta, no presente estudo, que havendo um catálogo de crimes estariam sanadas as relevantes questões levantadas pela doutrina em relação à implementação do confisco alargado no Brasil. Permaneceriam, ainda após a fixação de um rol taxativo de delitos, os problemas relacionados à própria violação da presunção de inocência e inversão do ônus da prova, além de lacunas relacionadas a aspectos práticos da medida, como a (im)possibilidade de utilização de cautelares reais para sua garantia e a inexistência de um standart probatório coerente e isonômico para acusação e defesa. Além disso, mesmo os motivos que justificariam a introdução do confisco alargado no ordenamento jurídico pátrio já denotam suas inúmeras incompatibilidades com os princípios que regem o processo penal brasileiro. Veja-se, exemplificativamente, que no PL n. 4.850/16 foi expressamente consignada a necessidade de instituição da medida pelo fato de que “nem todas as infrações podem ser investigadas e punidas, inclusive por força das garantias constitucionais e legais dos cidadãos”. Referida afirmação, por si só, já evidencia o intuito declarado de supressão das garantias individuais que limitam o confisco “tradicional” a um crime concretamente considerado.
Porém, é inegável que caso fosse observado o catálogo de crimes existente em legislações estrangeiras, seria possível ter critérios mais objetivos que permitissem, em algum grau, relacionar a natureza do delito objeto da condenação à probabilidade de proveniência criminosa do patrimônio excedente do condenado. Longe de adequar o confisco alargado ao princípio da presunção de inocência, seria ao menos uma limitação lógica e coerente na aplicação de um instituto seriamente questionável.
A inexistência de um catálogo de crimes, assim, deixa ainda mais evidente a necessidade de reflexão e aperfeiçoamento dos mecanismos de combate à criminalidade, pois denota não apenas um afastamento das finalidades precípuas da medida e dos tratados internacionais que supostamente a legitimariam, mas também o seu inegável apelo populista e pretensão declarada de superação de princípios basilares de um estado democrático de direitos, sob a justificativa de combate aos “crimes do colarinho branco”.
[1]BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 11.04.2022.
[2]Convertido no PL n. 3855/2019, o qual atualmente aguarda a Constituição de Comissão Temporária pela Mesa, conforme informações obtidas junto à página da Câmara dos Deputados.
[3]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.8850/2016. Brasília. Câmara dos Deputados, 2016. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1448689&filename=PL+3855/2019+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+4850/2016%29>. Acesso em: 12.04.2022.
[4]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 10.372/2018. Brasília. Câmara dos Deputados, 2018. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0122p9w1pdprmwjgttgklarsqc38535653.node0?codteor=1666497&filename=PL+10372/2018>. Acesso em: 12.04.2022.
[5]BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 882/2019. Brasília. Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019>. Acesso em: 12.04.2022.
[6]O PL n. 882/19 foi anexado ao PL n. 10.372/2018 e posteriormente convertido na Lei n. 13.964/19.
[7]BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Exposição de Motivos n. 00014/2019, de 31 de janeiro de 2019. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MJ/2019/14.htm>. Acesso em: 10.04.2022.
[8]SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal. v. 5. Parte especial: arts. 312 a 359-H do CP. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 158.
[9]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. 2017. 134 f. Dissertação (Mestrado em Direito – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2017, p. 20. Disponível em: <https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/handle/tede/2337>. Acesso em: 11.04.2022
[10]Convenção concluída em Viena, a 20 de dezembro de 1988. Incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991, após aprovação do Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1991/decretolegislativo-162-14-junho-1991-358232-textodaconvencao-pl.pdf>. Acesso em: 12.04.2022.
[11] PORTUGAL. Lei nº 5/2002. Lisboa, 11 de janeiro de 2002.Disponível em: <https://www.bportugal.pt/legislacao/lei-no-52002-de-11-de-janeiro > Acesso em: 12.04.2022.
[12]VIEIRA, Roberto D’Oliveira. op. cit., p. 97.
Ana Beatriz da Luz, advogada e especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico.
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.