ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E A ADEQUAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO COMO LIMITE PROCESSUAL DE VIABILIDADE

 

Por Nathalia Schuster Reis

 

A Lei nº 13.964/2019, ou somente “Pacote Anticrime”, estabeleceu o instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no artigo 28-A do Código de Processo Penal, que se refere a um negócio jurídico extraprocessual entre o autor do fato, assistido por sua defesa, e a acusação, que deverá ser devidamente homologado pelo Juízo competente, tendo como objetivo a extinção de sua punibilidade, desde que atingidos os requisitos e condições nele estabelecidos.

Todavia, considerada uma das questões mais controvertidas a respeito do ANPP, a definição do marco processual de viabilidade do seu oferecimento em relação aos processos criminais que se encontravam em andamento quando da edição da Lei nº 13.964/2019 não foi estabelecida expressamente pelo legislador, permitindo, desde a sua entrada em vigor, a manifestação e aplicação de diversos entendimentos sobre o tema.

Indiscutivelmente, a previsão legal do ANPP é mais benéfica ao indivíduo, de modo que, apesar de a sua natureza processual ser a mais evidente, especialmente por se encontrar na lei processual penal, pode-se facilmente vislumbrar o conteúdo material da norma, eis que o cumprimento do acordo implica na extinção da punibilidade do sujeito envolvido. Neste sentido, a sua aplicação deve ocorrer de forma ampliada no que se refere à retroatividade, em observância ao princípio e direito fundamental da retroatividade da lei penal mais benéfica.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento realizado nos autos de Habeas Corpus nº 628.647, a 6° Turma se posicionou no sentido de que o ANPP pode retroagir, desde que a denúncia não tenha sido recebida, em consonância com o entendimento da 5ª Turma da Corte Superior (AgRg no RHC 140.818/SC). Entretanto, tal argumento é superado pelo fato de que o novo dispositivo legal não consagrou tal aspecto não como “barreira limitadora da retroatividade”[i].

Há autores que, de outro lado, entendem pela possibilidade de celebração do ajuste somente até o momento da prolação da sentença penal condenatória[ii], sob o argumento, dentre outros, de que uma vez proferida sentença já não haveria mais interesse na confissão do acusado por parte do órgão ministerial, ato imprescindível para sua viabilidade. Todavia, a doutrina refuta tal argumento com base no fato de que, advinda uma nova regra processual, deve ser oportunizada ao indivíduo a possibilidade de análise sobre as vantagens e desvantagens da formalização do acordo, garantindo-lhe, caso manifeste interesse, o direito de confessar o delito, mesmo que em momento posterior ao seu interrogatório[iii].

Em sentido mais amplo, há quem entenda pela possibilidade de oferecimento do ajuste em processos que já se encontram na fase de cumprimento de pena, isto é, mesmo após o trânsito em julgado[iv], de modo que posicionamento diverso poderia implicar em violação ao princípio da isonomia[v]. Tal posicionamento, contudo, teria como consequência um efeito regressivo sem limites legais, gerando, ainda, reflexos patrimoniais graves.

Uma posição mais restritiva sustenta que o ANPP deve ser aplicado somente para os delitos praticados após a vigência da Lei nº 13.964/2019, sob o argumento de que configura nova causa suspensiva da prescrição, sendo, portanto, norma de natureza penal nitidamente mais prejudicial[vi]. Em que pese o respeitável posicionamento, a norma que prevê o acordo é, seguramente, muito mais favorável ao agente do que desfavorável, eis que tem como consequência a extinção de sua punibilidade. Assim, ainda que o acordo apresente algum ponto negativo, o benefício que o agente pode vir a receber é muito maior e, neste sentido, deve prevalecer.

Por outro lado, a própria 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no HC 575.395/RN) também já se manifestou pela possibilidade de oferecimento do acerto em qualquer fase processual e grau recursal até o momento do trânsito em julgado, cujo posicionamento se mostra o mais acertado, eis que, inexistindo decreto definitivo sobre o fato apurado, prevalece o princípio da presunção de inocência, sendo plenamente possível a colheita da confissão do agente – em que pese seja plenamente criticável[vii] –, ainda que este já esteja sentenciado, a fim de se atender aos requisitos do acordo. Deve ser aplicado, neste sentido, o princípio da isonomia àqueles para os quais ainda se aplica a presunção de inocência, eis que é nesta medida que se encontram em situação idêntica.

Diante do cenário de diferentes manifestações e entendimentos que vêm sendo aplicados a respeito do tema nos diversos tribunais brasileiros, o ministro Gilmar Mendes, no Habeas Corpus nº 185.913/DF, afetou o tema para julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que deverá decidir se o ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/2019; qual é a natureza da norma; e se é possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado, ainda que este não tenha confessado anteriormente, cujo entendimento se espera seja o adotado pela Corte Suprema, fixando-se como marco temporal para o seu oferecimento o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.


[i] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O respeito à Constituição Federal na aplicação retroativa do ANPP. In: _____. Acordo de não persecução penal. 2 ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, p. 131.

[ii] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal. 2ª ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 238.

[iii] GOMES, José Jairo; TEIXEIRA, Danielle Torres. Acordo de não persecução penal e sua aplicação a processos em curso. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/325403/acordo-de-nao-persecucao-penal-e-sua-aplicacao-a-processos-em-curso>. Acesso em: 21 jul. 2022. No mesmo sentido é o julgado do TRF 4ª Região, COR: 5009312-62.2020.4.04.0000, Rel. Gebran Neto, 8ª Turma, DJ 13/05/2020.

[iv] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O respeito à Constituição Federal na aplicação retroativa do ANPP. In: _____. Acordo de não persecução penal. 2 ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, p. 136.

[v]QUEIROZ, Paulo de Souza. Retroatividade da lei anticrime. Disponível em: <https://www.pauloqueiroz.net/1351-2/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

[vi] LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19 – Artigo por Artigo. 2 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 235.

[vii] MARTINELLI, João Paulo. A (ir)relevância da confissão no acordo de não persecução penal. DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo (org.). Acordo de não persecução penal. 2 ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, p. 313-314.


 

Nathalia Schuster Reis: Advogada criminal. Pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Bacharela em Direito pela Universidade Positivo.


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