Por: Bruno Artigas[1]

A teoria da cegueira deliberada ou wilfull blindness – como é conhecida nos Estados Unidos – vem sendo utilizada no Brasil de forma sedimentada pela jurisprudência em compatibilização com o instituto do dolo eventual, punindo de forma dolosa aqueles que teriam um desconhecimento intencional de determinado contexto fático que aponte para uma grande probabilidade de prática delitiva.

Saindo do prisma de definições teóricas sobre a cegueira deliberada, certo é que a respectiva teoria foi importada ao Brasil sem qualquer adequação teórica para os institutos pátrios em comparação com seu sistema jurídico originário[2], aparentando ser uma importação reducionista que tem como consequência polêmicas quanto sua efetiva aplicabilidade em consonância com os institutos do dolo e culpa na normatividade do Brasil.

Nesse caminho, adentrando no aspecto problemático de sua efetiva utilização como meio de verificação do dolo e consequente punibilidade na seara dolosa, a compatibilização feita de forma generalizada pela jurisprudência, mostra-se composta de certo reducionismo em detrimento da ausência de um estudo aprofundado e verificação de eventual possibilidade de compatibilização da forma de uso da cegueira deliberada em seu sistema jurídico de origem para o nosso, notadamente quanto aos pressupostos do dolo.

Ademais, o próprio instituto do dolo no ordenamento pátrio se mostra de extrema complexidade a ponto de ser inviável qualquer importação teórica sem antes passar por um filtro hermenêutico adequado. Não obstante, a temática do dolo ainda rende divergências doutrinárias quanto seus elementos constitutivos, notadamente quanto ao aspecto cognitivo e volitivo.

Moderna doutrina aponta como ponto fulcral do dolo a cognição e afastando o aspecto volitivo[3], contudo, a despeito da discussão doutrinária para melhor elucidação do que seria o dolo no ordenamento pátrio, o aspecto cognitivo é imprescindível para a efetiva existência do dolo para verificação do domínio sobre a realização do fato, independente da teoria seguida.

Nesse ponto que abrange a problemática da questão: Se o aspecto cognitivo é indispensável para a conduta ser dolosa, como seria possível punir o desconhecimento a título doloso, ainda que em sua modalidade eventual?

No tocante ao dolo eventual – modalidade que abarca a cegueira deliberada no Brasil -, esse encontra-se definido no Art. 18, I, apontado como a assunção do risco de produção de determinado resultado que constitua um delito, existindo o conhecimento quanto ao risco de sua conduta e conformação com o resultado lesivo[4], sendo assim indispensável o aspecto cognitivo[5].

De mais a mais, a cegueira deliberada é caracterizada pelo próprio desconhecimento no campo da ignorância, assim, a inserção da respectiva teoria no campo do dolo eventual sem a efetiva existência do conhecimento – de forma proposital ou não -, mostra-se extremamente temerária ao ponto de trazer um expansionismo à própria conceituação e aplicabilidade de dolo em caminhos que normalmente seriam percorríveis pela culpa.

Esse conceito extensivo do dolo pode até englobar violações ao principio da legalidade ante a previsão normativa do dolo no ordenamento jurídico brasileiro[6], sem mencionar que seria uma interpretação a malam partem em desfavor do réu, ao ponto que seria atribuível presunções de conhecimento em determinadas situações que exista a incidência da cegueira deliberada.

Ainda, pelo extenso campo de aplicação que a cegueira deliberada pode ganhar se aplicada de forma indiscriminada, nos parece que é utilizada em detrimento da própria dificuldade de verificação do dolo em determinadas circunstâncias fáticas e determinados tipos delitivos, como no de lavagem de capitais, e como pontua LUCCHESI: com indevida compatibilização de dever saber com o dolo eventual[7]. Ao passo que a utilização da respectiva teoria traria uma facilidade probatória a acusação, eis que o aspecto subjetivo do delito imputado poderia ser presumível com a imposição de uma obrigação investigatória através do dever saber.

No entanto, não é ônus do investigado suportar tal dificuldade através de interpretações a malam partem, importações de teorias expansionistas e imposições de deveres investigativos como se todos fossem garantidores de todas as relações sociais e bem jurídicos que o cercam[8], parecendo inclusive que a invocação da respectiva teoria quando insuficientes os elementos probatórios do dolo, realizar-se-ia uma espécie de inversão do ônus probatório, limitando-se assim a acusação a delinear as circunstancias fáticas e apontar a probabilidade de prática do delito no âmbito temporal do envolvimento do acusado, sem efetiva comprovação do aspecto do conhecimento que se torna prescindível se seguida a imputação subjetiva com fulcro na cegueira deliberada.

Desse modo, a aplicação da respectiva teoria atribuindo dolo quando há, no máximo, culpa, mostra-se aparente fruto de um viés punitivista através de um expansionismo do direito penal na forma da interpretação do dolo, e que o referido expansionismo advém das exigências de uma sociedade de risco ante a globalização da criminalidade, conforme interessantamente contextualiza HERNANDES[9].

Ao que pese a teoria da cegueira deliberada tentar vislumbrar aplicabilidade em situações de lacuna da imputação subjetiva[10], não parece ser aplicável no Brasil em razão dos institutos já impostos, tampouco aparenta existir uma compatibilidade com o dolo eventual, ao passo que o elemento cognitivo deve estar presente em todas as espécies de dolo[11] inclusive no eventual, e a falta de tal pressuposto mostra-se inaplicável a punição a título doloso, podendo no entanto discutir-se sua incidência no campo da culpa.

Em fundamental estudo jurisprudencial realizado por LUCCHESI, mostrou-se que por vezes a respectiva teoria é desnecessária na fundamentação de sentenças condenatórias em razão da já existência do preenchimento dos elementos subjetivos, sem necessidade de importação da cegueira deliberada para justificar a existência do dolo, desprovida de validade dogmática[12], e ainda que a respectiva teoria seja utilizada em casos de forma prescindível, sua interpretação generalizada poderá levar a punibilidade a titulo doloso mesmo quando inexistir o preenchimento de seus pressupostos, atingindo assim um verdadeiro expansionismo do conceito de dolo tendo como característica a prescindibilidade do conhecimento.

Por fim, para se efetivamente legitimar a aplicabilidade da respectiva teoria, seria necessário realizar uma ressignificação do conceito de dolo[13], ante a eminente incompatibilidade de punibilidade dolosa quando ausente o aspecto cognitivo.

 


[1] Advogado – OAB/PR 104.253. Pós-graduando em Direito e Processo Penal pelo CERS. Formado em Direito pela Universidade Positivo.


[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. P. 195

[3] GRECO, Luís. Dolo sem vontade

[4] MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições Fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. p. 594.

[5] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 362.

[6] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 147

[7] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 161.

[8] Idem. p. 161

[9] HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 27.

[10] SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020. p. 255.

[11] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 152

[12] Idem. p. 196

[13] REGUÉS I VALLÈS, Ramón.La ignorância deliberada em Derecho Penal. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2007, apud HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 148

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

HERNANDES, Camila Ribeiro. Cegueira deliberada e lavagem de capitais: problematizações doutrinárias e aplicação jurisprudencial no Brasil. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil. 1 Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

MARTINELLI, João Paulo. DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito Penal lições fundamentais – Parte Geral. 6ª Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada – 5ª Ed – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2020.


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