Por Ronaldo dos Santos Costa[i] e Isadora Sartori Ried[ii]
A democratização dos riscos, que passaram a afetar todos os indivíduos, independemente de classe social, somada à sensação de insegurança que permeia a sociedade contemporânea, firma a necessidade de gestores de riscos, a fim de que o sentimento de insegurança se reduza frente à suscetibilidade aos danos, ao menos de modo a possibilitar a convivência em coletividade, tornando suportáveis as novas ameaças.
Por essa razão, a aproximação ao debate da omissão imprópria no direito penal contemporâneo demonstra necessariamente a tendência expansiva do direito penal, em especial em seu ramo econômico. Enquanto aparato mais forte, incisivo e deletério da esfera jurídica, pode ser utilizado para controlar esses riscos. Seu emprego, no entanto, não pode ser desenfreado, mesmo diante ao clamor para que seja continuamente expansível.
O tipo omissivo tem um aspecto objetivo e um subjetivo que apresentam características diferentes, eis que possuem uma estrutura diversa do tipo comissivo doloso. Dessa forma, no tipo omissivo não se requer um nexo de causação entra a conduta proibida, distinta da devida, e o resultado, mas se recorre ao nexo de evitação, ou seja, a alta probabilidade de que a conduta não realizada interromperia o processo causal que concluiu o resultado. [iii]
Nas palavras do Professor Zaffaroni, “esse nexo de evitação é estabelecido por uma hipótese mental similar à que empregamos para estabelecer o nexo de causação na estrutura típica ativa: se imaginamos a conduta devida e com isto desaparecer o resulta típico, haverá um nexo de evitação; enquanto que, se imaginamos a conduta e o resultado permanece, não existirá um nexo de evitação.”[iv]
A incumbência de distinguir fundamentalmente os delitos omissivos próprios e impróprios é voltada ao resultado. Dessa forma, singelamente, omissões próprias poderiam ser classificadas como os que estão expressamente tipificadas na lei, contendo um simples mandado geral e indistinto de ação. Enquanto os delitos de omissão imprópria, por sua vez, seriam aqueles em que o objeto do mandado abarcaria os deveres especiais de evitar determinados resultados, isto é, dano ou perigo de lesão a bens jurídicos penalmente tutelados. Este comando incumbe àquele que está em posição de garantidor, ou seja, ao responsável pela preservação do bem jurídico eleito.[v]
O Código Penal Brasileiro, em afinidade com a teoria formal do dever jurídico, previu ser relevante a omissão quando alguém: a) tenha por lei a obrigação de cuidado; b) tenha, por outra forma, assumido a responsabilidade de evitar o resultado; ou ainda c) por comportamento anterior tenha criado risco de ocorrência de lesão. No entanto, no estudo de cada uma dessas hipóteses é possível submeter à incidência da criminalização a limites específicos.[vi]
É assim que prevê o § 2º, do art. 13, do Código Penal, quando em sua parte inicial assim dispõe: “a) omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Portanto, entendem-se como requisitos indispensáveis à caracterização dessa modalidade de crimes: “a) a abstenção da atividade que a norma impõe; b) a superveniência do resultado típico em vista a omissão; c) a ocorrência da situação de fato de que deflui o dever de agir”. Isto é, como esclarece Cirino dos Santos, “o tipo de omissão de ação imprópria exige, ainda, a produção do resultado típico como consequência causal da omissão da ação mandada”[vii]
A discussão recai sobre a formação da posição de garante do empresário, no momento de responsabilização penal, quanto a possíveis ofensas ou colocação em perigo de bens jurídicos de terceiros. Zaffaroni e Batista sintetizam três posições:
- a) no caso de um dever imposto por lei, como nos deveres de informação e advertência sobre a periculosidade de um produto, por exemplo, como consequência permitida ou como defeito posteriormente observado (art. 8º do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90), enquadra a posição de garantidor sem maiores questionamentos na hipótese do art. 13, § 2º, alínea “a” do Código penal;
- b) na hipótese da empresa que desenvolve atividades potencialmente perigosas em face de bens jurídicos de terceiros, dentro da legalidade (isto é, no âmbito pelo risco permitido), a posição de garante estaria integrada no critério material do controle de uma fonte de perigo, situação que seria abarcada pela assunção voluntária prevista no art. 13, § 2º, alínea “b” do Código penal; e
- c) quando se parte do pressuposto de que a empresa funciona na clandestinidade, não atendendo os requisitos legais e administrativos de licenciamento, razão pela qual seus produtos não autorizados ou perigosos em potencial acarretam a identificação da posição de garantidor com base na alínea “c” do art. 13, § 2º, do Código penal.[viii]
O incremento desta forma de imputação parte do pressuposto do Estado não mais comportar a regulação de todos os atos da vida econômica, passando ao particular, por meio da autorregulação. É clara a constituição de uma tendência a transferência da fiscalização sobre a observância de normas regulatórias aos próprios atores empresariais. [ix]
Tendo isso em mente, legisladores ao redor do mundo tradicionalmente aderem ao princípio societas delinquere non potest. Empresas podem, assim como seres humanos, possuir direitos e deveres de acordo com leis privadas, mas não podem ser tidas como portadoras de intenções que lhes possibilitem ser sujeitos ativos da lei penal, salvo, em delitos contra o meio ambiente, expressamente previsto na Constituição Federal e o artigo 3º, da Lei 9605/98.
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
É, no entanto, óbvio que as empresas possam causar dano substancial. Elas foram as condutoras da industrialização e da globalização da economia. Sua negligência resultou em graves lesões a indivíduos, grupos e ao meio ambiente, e seus deliberados abusos de poder têm destacado a sua aparentemente posição privilegiada em relação a outras pessoas e entidades.
O poder de algumas corporações modernas, especialmente empresas multinacionais, pode tornar difícil às autoridades públicas aplicar mecanismos de controle legal e diminuição de riscos. As dificuldades normalmente vão além da simples aplicação das influências políticas nos processos de tomada de decisão. Estruturas corporativas descentralizadas e procedimentos internos complexos podem, cada vez mais, impedir a identificação do garante dentro de uma empresa e a consequente aplicação da lei penal.
O estigma e sanções da legislação peal prometem maior dissuasão sobre a má conduta corporativa e mais oportunidades para a recuperação de ativos. Ao mesmo tempo, as peculiaridades de personalidade jurídica e as restrições colocadas por princípios do devido processo legal podem limitar a capacidade dos legisladores de punir a atuação das corporações empregando o Direito Penal.
Em suma, nas estruturas hierarquizadas das sociedades comerciais, os ocupantes dos cargos mais altos devem assumir um dever de exercer o devido controle sobre terceiros, os seus subordinados. Assumindo-o, podem vir a ser responsabilizados por não observá-lo. Esses deveres são classificados, normalmente, como de proteção ou de vigilância. Conforme explica SÁNCHEZ [x]
“[…] a posição de garantia dos administradores tem uma dupla dimensão: uma dimensão ad intra, orientada a evitar resultados lesivos para a própria empresa, que faz do administrador um garante de proteção; e uma dimensão ad extra, orientada a evitar resultados lesivos que se produzam sobre pessoas externas a partir da atividade dos membros da própria empresa, em razão da qual o administrador aparece como um garante de controle”.[xi] [xii]
Sob o pretexto e que este sistema de responsabilização traria inconvenientes à punibilidade de certos atos, principalmente no âmbito da autoria e das provas, pugna-se por um sistema de coautoria vertical, de cima para baixo, dos níveis superiores para os inferiores. Por esse modelo, busca-se primeiro nos superiores hierárquicos quem teria o dever de evitar o cometimento de crimes no interior da organização empresarial, invertendo se, assim, a lógica do razoável, com a intenção de perseguir “lacunas de punibilidade”. Isso facilitaria, pelo discurso manifesto, a análise de provas, haja vista o órgão acusador entender que os dirigentes deteriam maiores informações do funcionamento da atividade, para que possam colaborar com a justiça.[xiii]
Além da posição de garante dos mais altos membros da empresa, como sócios proprietários, acionistas, administradores e gestores, em geral, existe a outra ponta, dos colaboradores que não possuem poderes de direção comercial ou administrativa, pois executam ordens, e, por fim, os intermediários, que cumulam funções de subordinados e chefes-gerentes. Esses têm atribuições de simples execuções de tarefas, mas exercem decisões, dentro dos limites estabelecidos pelos diretores, por essa razão, podem responder penalmente por seus atos, em cumprimento de ordem superior, quando pelos atos daqueles subordinados que cumprem os seus comandos.
Isso decorre do fato de que, na grande maioria dos casos em direito penal empresarial, não será somente aquele que executa a ação o responsável pelo fato típico. Distingue-se, aqui, aquele que executa a conduta material ilícita de quem efetivamente será o responsável pelo delito, dado que a hierarquia própria do meio empresarial e a divisão de funções importam em cadeia de delegação, na qual se atribuem diferentes competências e responsabilidades.[xiv]
O garante pode delegar seu dever, como no caso do Compliance. No entanto, permanece, ainda que residualmente, dotado por alguma medida do dever de vigilância sobre o delegado. O respeito ao risco permitido e ao princípio da confiança, quando preenchidos seus requisitos, afastam a criação do risco e, assim, a responsabilidade. [xv]
Vê-se, portanto, que a posição de garante, no cerne da responsabilidade penal da pessoa jurídica, é extremamente complexa e requer, além do preenchimento dos pressupostos básicos do direito penal, como a individualização da conduta e o nexo de evitabilidade do resultado delituoso, análise da vinculação ao cargo dentro da sociedade empresarial. Todos os fatores, inclusive a delegação de parte da responsabilidade a demais membros da empresa, devem ser analisados para imputar ao garante responsabilidade pelo cometimento de condutas ilícitas.
[i] Advogado Sócio do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Conselheiro do IBDPE e Procurador da ABRACRIM do Estado do Paraná.
[ii] Advogada Associada do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal – ABDConst.
[iii] KAUFMANN, Dogmática de los delitos de omisión, op. cit., p. 84. Rocha arremata: “No âmbito do tipo objetivo dos crimes omissivos impróprios, a atribuição do resultado ao agente depende da evitabilidade do resultado em decorrência da execução (hipotética) da conduta ordenada pela norma penal. Essa é a essência da chamada teoria da evitabilidade, dominante na doutrina”. Cf. ROCHA, A relação de causalidade no direito penal, op. cit., p. 188.
[iv] ZAFFARONI, Eugênio Raul ; BATISTA, Nilo et all. Direito penal brasileiro. 2º v. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 350
[v] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017
[vi] Schünemann apresenta outro critério, partindo da premissa de que a grande maioria dos crimes por ação se caracterizariam pelo fato do sujeito ativo possuir domínio do fato. Tendo em vista a equiparação entre ação e omissão, seria correto, por meio de um raciocínio analógico, aproximar o critério do domínio do fato nos delitos ativos também para a omissão. É isso que faz ao propor o critério do “domínio sobre o fundamento do resultado”, que elege como elemento central da teoria da posição de garante
[vii] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Florianópolis: Conceito, 2012.
[viii] ZAFFARONI, Eugênio Raul ; BATISTA, Nilo et all. Direito penal brasileiro. 2º v. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 350
[ix] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017
[x] SILVA SÁNCHEZ. Jesús-María. Deberes de vigilância y compliance empresarial. In: Compliance y teoria delderecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p.80
[xi] Essa classificação não é pacífica, tem sofrido críticas da doutrina por não apresentar uma diferenciação clara do ponto de vista do fundamento material de cada posição, pelo que dela não se poderiam extrair consequências sistemáticas confiáveis. Diz-se que ambos os deveres obrigariam seu portador a guardar o bem jurídico da mesma forma. BERMEJO, Mateo. PALERMO, Omar. La intervención delectiva del compliance officer.
[xiii] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017
[xiv] COSTA, V. C. R. S. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017
[xv] SCANDELARI. Gustavo Britta. As posições de garante na empresa e o criminal compliance do Brasil: primeira abordagem. In: DAVID. Décio Franco. Compliance e Direito Penal. Atlas. 2015. p. 173
Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.
Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br.