Por: Adriana Maria Gomes de Souza Spengler[1] Felipe Socha Cordeiro[2]
RESUMO
Com o desenvolver da sociedade informativa e a posterior invenção e difusão das criptomoedas, faz-se necessário a discussão acerca da tipicidade de determinadas condutas criminosas diante da possibilidade de serem praticadas por meios. Como exemplo disso têm-se as condutas que podem se dar com as criptomoedas. Diante disso, o presente estudo tem como objetivo geral realizar uma análise acerca da tipificação do crime de evasão de divisas e seu (im)possível enquadramento se praticado através das criptomoedas. Para tal fim a pesquisa buscou-se realizar um estudo acerca das criptomoedas, criptoativos e do blockchain; analisar sob a perspectiva da doutrina e da jurisprudência a conduta tipificada no art. 22 da Lei 7.492/86 (Crime de Evasão de Divisas); e verificar, por fim, a (im)possibilidade de enquadramento da conduta praticada com criptoativos na tipificação trazida pela referida norma penal. A metodologia aplicada atenderá ao método dedutivo por meio de levantamento bibliográfico. A partir dos resultados, acredita-se ser possível compreender de maneira clara e precisa o funcionamento e o enquadramento legal das criptomoedas, bem como a conduta de Evasão de Divisas em seus aspectos dogmáticos de imputação.
Palavras-chave: Criptoativos. Evasão de divisa. Tipicidade.
1.DAS CRITOMOEDAS, CRIPTOATIVOS E BLOCKCHAIN
A invenção da internet, tida como uma das mais relevantes do século XX, é datada entre a década de 60 e 70, cujo primeiro objetivo era apoiar órgãos militares do governo e, posteriormente, realizar conexões entre diversas universidades norte-americanas, no intuito de facilitar o acesso à dados, pesquisas e o intercâmbio entre os universitários. A partir desse momento, conforme afirma LISBOA[3], começa-se a falar em sociedade da informação em substituição à antiga sociedade industrial, termo utilizado para se referir a inserção da máquina à vapor nas relações jurídicas e sociais.
Nesse sentido, LISBOA[4] afirma que: “a Sociedade da Informação, como se pôde verificar, é a sociedade posterior à revolução causada pela introdução do computador nas relações jurídicas”. Conclui, então, que diante da revolução causada, fez-se necessário o estabelecimento de uma nova economia com novas regras.
É nesse contexto que ocorre o surgimento dos criptoativos e criptomoedas. Segundo orientação emitida pela CVM[5] – Comissão de Valores Mobiliários – os criptoativos “surgiram com a intenção de permitir que indivíduos ou empresas efetuem pagamentos ou transferências eletrônicas diretamente a outros indivíduos ou empresas, sem a necessidade de intermediação de uma instituição financeira”. Trata-se, então, de uma tecnologia inserida no intuito de facilitar as transações entre pessoas, diminuir a burocracia e retirar a validação da transação pela instituição financeira. O resultado disso é maior acessibilidade e rapidez.
Ademais, conforme entendimento de DURAN, STEINBER E CUNHA FILHO[6] “as criptomoedas não são propriamente ‘moeda’ porque não detém o atributo jurídico do poder liberatório, ou seja, sua aceitação não é obrigatória de forma a liberar o devedor de sua obrigação jurídica”. Já em contraponto, ULRICH[7] alega que “O Bitcoin – uma das criptomoedas existentes – é uma forma de dinheiro, assim como o real, o dólar ou o euro, com a diferença de ser puramente digital e não ser emitido por nenhum governo. O seu valor é determinando pelos indivíduos no mercado”. Esse imbróglio é fonte do primeiro questionamento. As criptomoedas podem ser consideradas, para fins jurídicos, moedas?
Importante ressaltar o seguinte entendimento da Receita Federal[8] a respeito dos criptoativos, conforme se vê: “a alta volatilidade dos preços dos criptoativos indica que eles não são adequados para assumir duas das três funções de uma moeda oficial: unidade de conta e reserva de valor”
Conforme Orientação da Receita Federal[9], que diz respeito à declaração de imposto de renda, obtém-se que o órgão governamental entende que os criptoativos “muito embora não sejam consideradas como moeda nos termos do marco regulatório atual, devem ser declaradas na Ficha Bens e Direitos como “outros bens”, uma vez que podem ser equiparadas a um ativo financeiro.”
É diante de tal cenário que surge a necessidade de um estudo acerca da (im) possibilidade de cometimento do crime de evasão de divisas cujo objeto material seria a criptomoeda.
2.DA CONDUTA DE EVASÃO DE DIVISAS
A conduta de evasão de divisas é tipificada pelo art. 22 da Lei nº 7.492/86. O bem jurídico tutelado pela tipificação da conduta, segundo PRADO[10], é, no caput do artigo, as reservas cambiais, já no parágrafo único “a tutela dirige-se também ao Erário, em razão de que a saída de moeda ou divisa para o exterior ou a manutenção de depósitos não declarados à repartição federal competente acabam por lesá-lo, além de atingir a política econômico-financeira do país.
Ainda, o referido doutrinador evidencia que os objetos materiais para a prática dessa seriam: “a moeda, a divisa e os depósitos não declarados”. É neste ponto que reside a problemática das criptomoedas. Poderiam essas serem enquadradas em algum dos objetos materiais citados para fins de responsabilização penal caso praticadas as condutas tipificadas diploma legal?
Segundo o ensinamento de PRADO[11], “moeda é a representação concreta do dinheiro. Consiste numa terceira mercadoria, convencional e representativa do valor de troca dos bens e mercadorias”. Se levada em consideração somente a citada definição de moeda, conclui-se, prima facie, que os criptoativos poderiam ser considerados objetos materiais. Contudo, NUCCI[12], afirma que moeda seria entendido como “papel-moeda ou peças metálicas, representando o dinheiro nacional”. Nesse sentido, verifica-se a controversa acerca da possibilidade de enquadramento daquelas à moeda e, portanto, surge a problemática da tipificação da conduta.
Já no que diz respeito às divisas, PRADO[13] as conceitua como “letras, cheques, ordens de pagamento etc. que sejam conversíveis em moedas estrangeiras, e as próprias moedas estrangeiras de que uma nação dispõe, em poder de suas entidades públicas ou privadas”. NUCCI[14] conclui que se trata de “moeda estrangeira ou título que a represente”. Diante disso, não sendo os criptomoedas moedas, propriamente ditas, e por não possuírem garantia de nenhum país, entende-se que não poderiam ser enquadradas como divisas.
NUCCI[15] ainda afirma que “o termo depósito normalmente é utilizado para representar um montante em moeda entregue, para guarda, a um estabelecimento bancário. PRADO[16], nesse diapasão, alega que “Depósitos são quantias confiadas a um banco por uma pessoa ou empresa. Conforme já afirmado, as criptomoedas não estariam em bancos ou instituições financeiras, visto que possuem um sistema de registro e operacionalização próprios e, portanto, resta impossível o enquadramento como depósitos.
Desta forma, diante do exposto, ainda que decorrente de estudos iniciais, entende-se que resta impossível o enquadramento da conduta de evasão de divisas se ocorrida por meio de criptomoedas, pois seria enquadrada como crime impossível. Sabe-se que esse, presente no Código Penal por meio do artigo 17, ocorre quando há “o emprego de meios ineficazes ou o ataque a objetos impróprios inviabilizam a produção do resultado, inexistindo situação de perigo ao bem jurídico penalmente tutelado[17]”. Diante disso, a priori¸ conclui-se que a conduta de evasão de divisas praticadas com criptomoedas pode ser enquadrada como crime impossível, diante da impropriedade absoluta do objeto.
Contudo, importante ressaltar que a conduta praticada pelo agente pode ser enquadrada em algum outro tipo penal, a depender do contexto fático, bem como está sujeita a alterações de entendimentos tanto por parte da CVM como da jurisprudência pátria.
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto entende-se pela impossibilidade de enquadramento da conduta tipificada como crime de Evasão de Divisas se o objeto material da conduta forem as criptomoedas, visto que inexiste previsão legal, bem como, a princípio, tratar-se-ia de crime impossível, já que tais ativos não são considerados moedas. Insta relembrar que se faz possível o enquadramento em algum outro tipo penal a depender do contexto fático-probatório.
Ainda, sabe-se que vigora no ordenamento jurídico penal brasileiro como princípio reitor, o da Legalidade, expresso no Código Penal no art. 1º, restando ilegal considerar determinada conduta, sem lei anterior que assim o defina como crime, bem como a proibição da analogia in malam partem.
Conclui-se, portanto, que os estudos a respeito da temática devem aprofundar-se, bem como faz-se necessário que o legislador, conjuntamente com a Receita Federal e o Banco Central, enfrentem a questão e busquem uma regulação e normatização dos criptoativos e criptomoedas para que se possa firmar entendimento a respeito de seu enquadramento jurídico visando à segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: <https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/a lerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21
Duran, CV; Steinberg, D.; Cunha Filho, M. C. Criptoativos no Brasil: o que são e como regular? recomendações aos Projetos de lei 2060/2019 e 2303/2015. Faculdade de Direito da Universidade de São’Paulo, 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/banco-central-regular-moedas virtuais/apresentacoes-em-eventos/CamilaDuranProfessoraDoutoradaUSP.pdf>. Acesso em: 06.12.20.
LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMA CAO>. Acesso em: 16. Fev. 21.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019
ULRICH, Fernando. Bitcoin- a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2014. p. 106>
[1] Advogada criminalista, Doutoranda em Ciências Criminais, professora de Direito Penal e Criminologia na UNIVALI. E-mail: adrianaspengler@univali.br
[2] Acadêmico do 8º período do curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: felipesochacordeiro@hotmail.com
[3] LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMACAO>. Acesso em: 16. Fev. 21
[4] LISBOA, Roberto Senise. Direito na sociedade da informação. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/341219107_DIREITO_NA_SOCIEDADE_DA_INFORMACAO>. Acesso em: 16. Fev. 21
[5] CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: < https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/alerta_CVM
_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21
[6] Duran, CV; Steinberg, D.; Cunha Filho, M. C. Criptoativos no brasil: o que são e como regular? recomendações aos Projetos de lei 2060/2019 e 2303/2015. Faculdade de Direito da Universidade de São’Paulo, 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade legislativa/comissoes/comissoes- temporarias/especiais/56a-legislatura/banco-central-regular-moedas-virtuais/apresentacoes-em- eventos/CamilaDuranProfessoraDoutoradaUSP.pdf>. Acesso em: 06.12.20.
[7] ULRICH, Fernando. Bitcoin- a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwing von Mises Brasil, 2014. p. 106
[8] CVM, Comissão de Valores Imobiliários. Criptoativos. série alertas. Brasil. 2018. Disponível em: < https://www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/Alertas/alerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf> . Acesso em: 16. Fev. 21
[9] BRASIL, Receita Federal. Imposto sobre a renda – pessoa física. Perguntas e Respostas. Brasil, 2019.
[10] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[11] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[12]NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[13] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. vol. 2. 8.ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[16] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[17] MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.