Marion Bach[1] e Isabela Maria Stoco[2]
O tempo, como se sabe, é um dos fatores que mais frustra a eficácia do processo penal. Seja o trâmite mais célere ou mais lento, há, sempre, um intervalo de tempo a permitir que ocorram eventos que afetem diretamente a utilidade – e, consequentemente, a justiça – do (futuro) provimento jurisdicional.
Na intenção de minorar os riscos advindos da passagem do tempo, o processo penal lança mão das chamadas medidas cautelares/assecuratórias. “São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte e não realize, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa.[3]”
As medidas cautelares, no âmbito do Processo Penal, são divididas em (i) medidas cautelares pessoais; (ii) medidas cautelares probatórias; e (iii) medidas cautelares reais. Quanto à última hipótese – que a estas linhas interessa -, a legislação processual prevê três distintas hipóteses: sequestro, hipoteca legal e arresto. Existem, porém, outras medidas constritivas previstas em leis extravagantes, como por exemplo – e sem a pretensão de esgotá-las -: (i) Lei nº 11.343 de 2006 (Lei de Drogas); (ii) Lei nº 9.613, de 1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro), (iii) Lei nº 13.260 de 2016; (iv) Decreto-lei nº 3.240 de 1941; (v) Lei nº 11.346 de 2006 e (vi) Lei nº 13.322 de 2016.
As medidas assecuratórias reais – ou patrimoniais -, através da limitação da disponibilidade de bens, têm como objetivo assegurar a execução dos pronunciamentos patrimoniais de qualquer classe que possa constar da sentença condenatória[4]. Leia-se: buscam assegurar a reparação do dano ao(s) ofendido(s), o pagamento das despesas processuais[5], de eventuais penas pecuniárias e multas e, ainda, garantir o perdimento caso comprovada a origem criminosa dos bens e valores.
Tais instrumentos podem ser deferidos tanto na fase inquisitorial quanto já durante a Ação Penal.[6]
Não é demais afirmar que as medidas assecuratórias reais vêm ganhando significativo espaço nos últimos anos, no Brasil.
A previsão do art. 91 do Código Penal – sobre os efeitos secundários genéricos da condenação – ganhou novos contornos em 2008, com a obrigatoriedade de fixação de indenização mínima pelo juiz sentenciante, nos termos do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal.
Mais recentemente, com a Lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime), notadamente com a inserção do artigo 91-A do Código Penal – o qual reconhece o instituto da perda alargada do patrimônio incompatível com a renda do condenado -, adveio a permissão para o Estado adentrar no patrimônio não diretamente relacionado com o fato delitivo. Tornou-se possível, então, promover o confisco de (todos os) bens de posse do acusado, desde que, para tanto, o Ministério Público demonstre que tal patrimônio é incompatível com seu rendimento e, ao final, requerê-lo.[7]
Aliado a isto, o Pacote Anticrime incluiu o artigo 133-A no Código de Processo Penal, o qual autoriza a utilização dos bens apreendidos, sequestrados ou sob o regime de qualquer outra medida cautelar pelos órgãos públicos. Criada, então, a custódia provisória de bem apreendido – o qual, após o trânsito em julgado, poderá ser transferido definitivamente ao órgão que realizava tal custódia.
Em razão dos severos impactos na esfera individual econômica dos investigados, parece redundante afirmar que os valores e/ou bens assegurados deveriam limitar-se ao valor incontroverso nos autos, sempre obedecendo os pressupostos do fumus comissi delicti e periculum in mora[8], e, em caso de coautoria no cometimento do crime, que cada um respondesse na medida de sua culpabilidade. Não é, porém, a lógica que vem operando nos tribunais brasileiros.
A regra que atualmente impera é: se determinado crime – cometido em coautoria – produziu o prejuízo X ou permitiu o ganho ilícito no valor de Y, o Poder Judiciário automaticamente autoriza a constrição dos bens/valores no valor X ou no valor Y, na íntegra, de cada um dos corréus.
Veja-se, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 4º Região, no julgamento dos autos n. 5014604-14.2019.4.04.7000[9], ao entender que “a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes de atos ilícitos, até a liquidação, é solidariamente compartilhada por todos aqueles que os praticaram ou deles se beneficiaram” e, por consequência, “enquanto não definida a responsabilidade de cada coobrigado, a medida cautelar deve atingir os respectivos patrimônios das pessoas físicas e jurídicas, de forma simultânea e pelo montante integral correspondente ao valor mínimo estimado para o dano”.
A lógica que parece guiar os pedidos ministeriais e os deferimentos judiciais é: se o crime foi causado por (por exemplo) dois réus e causou um prejuízo total (e atualizado) de R$ 100.000,00 (cem mil reais) à vítima, defere-se o bloqueio do valor total de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus. Assim, caso não haja sucesso em localizar e bloquear bens/valores de um deles, o outro suprirá (e, depois, ambos que se resolvam na esfera cível, em ação de cobrança regressiva…).
Tal lógica, porém, faz algum sentido[10] no momento da autorização/determinação das medidas cautelares reais. Porém, realizadas as cautelares, e supondo que foi, sim, localizado e constrito o valor integral de R$ 100.000,00 (cem mil reais) de cada um dos réus, como justificar – de modo razoável e proporcional – que tais valores sigam constritos? Se os valores declaradamente buscam garantir a restituição do prejuízo – o qual, por sua vez, está claramente delineado nos autos, em cem mil reais -, como justificar a manutenção do bloqueio do dobro do valor até o fim do processo?
Há situações em que o prejuízo causado (e atualizado) é de R$ 100.000,00 (cem mil reais) – em um crime licitatório, imagine-se – e são dez réus denunciados. Há, por anos a fio, a manutenção do bloqueio de R$ 100.000,00 (cem mil reais) no patrimônio de cada um dos réus, o que faz com que o Estado constrinja, por anos e anos, o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para garantir, desde sempre, o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Veja-se que, ao final, mesmo que advenha a condenação dos réus, injustiça já há. Isso porque cada réu perderá – na medida da própria culpabilidade apurada – parte do valor que estava constrito, e terá a si restituída a outra parte. Sobre essa parte restituída, o prejuízo é significativo, posto que foram valores que ficaram sem movimentação, sem investimento, sem a devida valorização.
Recentemente, as subscritoras presenciaram, em processo que atuam, a seguinte situação: três pessoas físicas – integrantes da mesma pessoa jurídica – foram denunciadas por crime licitatório. Tal crime teria causado um prejuízo de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) ao erário, em benefício da referida pessoa jurídica. O Ministério Público pugnou e o Poder Judiciário deferiu medidas cautelares reais no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para cada uma das três pessoas físicas denunciadas.
A pessoa jurídica – supostamente beneficiada pelo crime licitatório -, então, ofereceu o depósito judicial de (exatamente) R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para garantia do processo, pugnando, em troca, a liberação dos valores das pessoas físicas. O Ministério Público se manifestou contrariamente, alegando que há solidariedade entre as pessoas físicas. Ora, qual o sentido? O valor do prejuízo já não está garantido, na íntegra? Independentemente de qual réu – ou de quantos – seja condenado, há o valor assegurado, na íntegra. Ou seja, a medida assecuratória cumpre satisfatoriamente o seu papel.
Tal situação se agrava de modo contundente quando se verifica que, no campo do direito penal econômico, é bastante usual que haja medidas assecuratórias deferidas no âmbito penal e, exatamente pelos mesmos fatos, no âmbito do direito administrativo sancionador.
Pense-se, assim, em determinado fato que causa o prejuízo total ao Estado de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Este mesmo fato é considerado um ilícito penal e um ilícito administrativo. Por consequência, o juízo penal deferirá cautelares patrimoniais na intenção de indisponibilizar R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) de cada coautor denunciado, bem como haverá o (mesmo) deferimento no âmbito do administrativo sancionador.
O resultado é: para garantir a restituição de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) – advinda do prejuízo causado por apenas um fato -, torna-se indisponível R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) de cada coautor do crime (sendo dez coautores, o Estado está indisponibilizando, por anos, R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) para salvaguardar um total de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) (!).
Não se olvida da justificação constitucional das medidas cautelares patrimoniais, as quais se destinam a concretizar e harmonizar direitos fundamentais em conflito, tampouco se olvida da importância de seu manejo para a garantia de um processo penal justo. Porém, caso sejam mantidas cegamente tais relatadas práticas, a cautelar passará a configurar, antes, uma inaceitável pena – sem processo – para o acusado.
[1] Advogada Criminalista. Doutora em Ciências Criminais pela PUC/RS. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professora de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Contato: marion@marionbach.com.br.
[2] Advogada Criminalista. Pós-graduanda em Direito Penal Econômico (PUC/MG) e Compliance (FAE). Contato: isabela@marionbach.com.br.
[3] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.
[4] ARAGONESES MARTINEZ, Sara; OLIVA SANTOS, Andrés; HINOJOSA SEGOVIA, Rafael; TOMÉ GARCIA, José Antonio. Derecho Procesal Penal. 8ª ed. Madrid: Ramon Areces, 2007, p. 429.
[5] NICOLITT, André. Processo Penal Cautelar: prisão e demais medidas cautelares. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 130.
[6] “O legislador visa assegurar o interesse público ou o direito da vítima ou de seus sucessores em relação à futura reparação do dano proveniente do ilícito penal, podendo as medidas cautelares de sequestro, arresto e hipoteca legal serem propostas, visando assegurar a reparação do dano, durante a investigação criminal ou a ação penal, tendo como limite o trânsito em julgado desta ação” (LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164).
[7] MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei anticrime – a (re)forma e a aproximação de um sistema acusatório. 1.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 85-86.
[8] Há doutrinadores que entendem que referidos requisitos são fumus boni iuris e periculum in mora. Vide: LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 164. No mesmo sentido: AgRg no REsp 1861850/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 15/09/2020. Estamos, porém, com Marta Saad ao afirmar que “não se deve exigir a presença do fumus boni iuris, como na seara civil. Isso porque um juízo de probabilidade implicaria numa previsão da resolução final do processo, o que não se admite no âmbito criminal. Deve-se apenas fazer um juízo a respeito da materialidade delitiva e autoria, ainda que indiciário, sem prévia consideração da culpabilidade” (fumus comissi delicti). No que refere ao periculum in mora, entendido como o perigo causado pela demora inerente ao processo garantista, bem como o perigo da ocorrência de algum evento que dificulte ou impossibilite a efetividade da decisão, embora o Código de Processo Penal silencie a respeito da exigência de comprovação do risco efetivo de dano, que é necessário no âmbito do processo civil, não se pode dispensá-lo. Assim, devem ser colhidos elementos que tenham o condão de concretizar o dano temido, tais como indícios de que a situação patrimonial do investigado ou acusado sofrerá alterações no caso da não decretação de medidas patrimoniais.” SAAD, Marta. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 36 e ss.
[9] Neste sentido: TRF4, ACR 5014604-14.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relator DANILO PEREIRA JUNIOR, juntado aos autos em 28/08/2019. Ainda no mesmo trilhar: TRF4, ACR 5008589-29.2019.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 21/08/2019.
[10] Diz-se “algum sentido”, pois como se sabe, à lume da codificação civil brasileira – a qual tanto se apega o regime cautelar do processo penal -, a solidariedade das obrigações decorre da lei ou do contrato. Inexiste qualquer menção à solidariedade na lei penal e não há o que se falar em obrigação contratual da questão. “Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.”
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