Por: Iuri do Lago Nogueira Cavalcante Reis[1], Yuri Coelho Dias[2] e Leandro Barbosa da Cunha[3]
Introdução
No âmbito dos delitos perpetrados por organizações criminosas contra o Mercado Financeiro Nacional, dada a complexidade das relações jurídicas hodiernamente envolvidas, é comum que os agentes eventualmente infratores necessitem se manter em contínua comunicação através de aplicativos virtuais de troca de mensagens (como Whatsapp e Telegram, Facebook Messenger, por exemplo), a fim de estruturar o planejamento e a execução dos crimes, evidenciando que os registros das mensagens em seus celulares e aparelhos eletrônicos em geral podem se constituir como importantes elementos probatórios para subsidiar a persecução criminal e o consequente desmantelamento de tais organizações criminosas.
Entretanto, não se pode prescindir da observância da veracidade das provas obtidas por tais meios, porquanto as mensagens, muitas vezes, podem não apresentar a rigidez suficiente para lastrear uma hipotética condenação, vez que é relativamente simples alterá-las ou, de algum modo, modificar seus conteúdos a partir de softwares de edição ou de programação. Por isso, dada a importância do assunto, o presente texto propõe uma reflexão sobre a viabilidade jurídica do uso de provas obtidas por meio do Whatsapp no contexto dos crimes cometidos contra o mercado financeiro nacional.
A proteção do mercado financeiro contra as organizações criminosas e os limites do uso de provas obtidas por meio do espelhamento de conversas Whatsapp
A sociedade contemporânea é marcada pela enorme dinamicidade dos meios e dos veículos de comunicação, os quais, em questão de segundos, são capazes de transmitir um número muito elevado de informações entre os mais variados interlocutores. No entanto, não obstante os aparatos tecnológicos propiciem grandes avanços à humanidade, há de se ter em vista que determinadas pessoas, munidas de má-fé e de intuito delitivo, acabam por empregar a tecnologia em prol de atividades criminosas visando a facilitar a obtenção do produto do ilícito, ou ainda, a mascarar e a ocultar as operações realizadas.
Principalmente perante o mercado financeiro brasileiro, a fim de lograrem êxito na violação dos bens jurídicos tutelados, por exemplo, pela Lei n.º 7.492/1986, as mais complexas organizações criminosas se valem de esquemas muito sofisticados, os quais, na prática, não costumam ser descobertos pelos meios convencionais de prova, de modo que, por vezes, torna-se necessário celebrar um acordo de colaboração premiada com um dos membros integrantes da organização com intuito de obter mais informações[4], ou, até mesmo, realizar a quebra de sigilo para auxiliar na continuidade da persecução criminal instaurada.
De toda sorte, seja mediante delação premiada, seja através de revelações anônimas ou de outras vias, é comum que se busque comprovar a autoria dos crimes perpetrados contra o sistema financeiro nacional por meio de screenshots (ou prints) de conversas do Whatsapp (ou Telegram) que o suposto infrator manteve com outras pessoas, porquanto tendem a ser escassas as provas diretas da prática delitiva (dado que há um grande número de agentes intermediários, vulgos “laranjas”) e as montas de dinheiro ilícito são rotineiramente ocultadas pelo embranquecimento de capitais[5].
Afinal, os esquemas delitivos no mercado financeiro assumem um alto nível de estratificação hierárquica entre os membros da organização, de modo a praticamente blindar seus autores intelectuais contra a investigação policial. Por este motivo, as screenshots das conversas mantidas contribuem para revelar a dinâmica de funcionamento dos grupos, bem como o modo pelo qual se dava a distribuição das tarefas entre os integrantes, a identificação de seus coautores e partícipes, o modus operandi das atividades delitivas, dentre outros aspectos que são importantes para desmantelar a organização criminosa.
Não obstante, há de se ter em vista que prints e screenshots colhidos do Whatsapp nem sempre retratam algo verdadeiro. Isso porque é possível, por exemplo, manipular alguns tipos de conversa ao excluir certas mensagens, ou, até mesmo, empregar métodos bem mais engenhosos para modificar os códigos de programação do aplicativo objetivando alterar o conteúdo daquilo que efetivamente ocorreu. Sem contar que, por intermédio de softwares tais quais Photoshop, Paint, iPiccy, Photoscape – dentre outros –, é possível modificar de maneira praticamente ilimitada as screenshots já existentes na memória de um disco rígido.
Por outro lado, também não parece razoável desprezar por completo as provas obtidas por meio de conversas do Whatsapp tão somente pelo fato de que elas potencialmente podem ser manipuladas, haja vista que tal solução implicaria, em certos casos, na impossibilidade de se promover a persecução criminal, ou de condenar os agentes infratores que ocupam os postos hierarquicamente superiores nas organizações criminosas e que quase sempre se valem de terceiros para manter a prática delitiva no âmbito do mercado financeiro[6].
Analisando a situação retratada acima, no acórdão proferido no RHC n.º 99.735-SC em 27 de novembro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou no sentido de que a as screenshots obtidas por meio do espelhamento da ferramenta Whatsapp Web constituiriam prova ilícita, já que seria possível, em tese, tanto visualizar conversas que ocorrem em tempo real (tal qual numa interceptação telefônica), quanto editar, excluir ou enviar novas mensagens, de modo que se trataria de um meio de obtenção de prova híbrido que não foi expressamente adotado pelo Processo Penal Brasileiro.
Ademais, em recente julgado de 23 de fevereiro de 2021 no AgRg no RHC n.º 133.430/PE, a 6ª Turma da Corte Superior reiterou, por unanimidade, o entendimento de que provas obtidas por meio de screenshots da tela do Whastsapp Web seriam ilícitas devido ao fato de não apresentarem uma cadeia de custódia que possa ser verificada. No contexto, dois réus foram apontados por denúncias anônimas, juntamente com prints da tela do Whatsapp Web, de que ambos seriam corruptos. Em seguida, o relator, o até então Ministro Nefi Cordeiro, destacou que as screenshots seriam provas ilícitas e que deveriam ser desentranhadas, haja vista que o espelhamento realizado via Whatsapp Web permitiria a edição e a exclusão de mensagens, sem que isso deixasse qualquer vestígio.
De toda sorte, os referidos precedentes não inviabilizam o reconhecimento da licitude das provas obtidas por meio de screenshots do Whatsapp, mas tão somente daquelas que digam respeito ao espelhamento feito pela ferramenta do Whatsapp Web, dada a possibilidade de edição em tempo real. A autenticidade dos prints, portanto, deve ser aferida de acordo com o caso concreto, de modo que não é possível dissertar em abstrato sobre a viabilidade jurídica de tais meios de prova, sob pena de comprometer a investigação dos crimes de gestão temerária, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, dentre outros que se inserem nos complexos esquemas delitivos das organizações criminosas.
O emprego de ata notarial costuma ser um mecanismo bastante utilizado na prática jurídica hodierna a fim de garantir que as screenshots colhidas do Whatsapp não sofreram nenhum tipo de modificação visual por algum software. Entretanto, embora seja uma opção totalmente válida, não se pode negar que o tabelião somente narrará aquilo que ele de fato viu, o que não assegura por completo que, previamente, o print não tenha sofrido algum tipo de manipulação, ou ainda, que determinadas mensagens possam ter sido enviadas ou excluídas pelos destinatários, de modo a evidenciar que a ata notarial, não obstante seja útil, não é um instrumento capaz de garantir uma análise técnica do conteúdo do Whatsapp.
Conforme consta na norma ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013, a qual foi criada pela Organização Internacional de Padronização (ISO), cuja finalidade é a de preservar a evidência digital por meio da padronização dos procedimentos, há uma série de protocolos de coleta e de isolamento para garantir o máximo de integridade da cadeia de custódia das provas e, por consequência, que os dados preservados não venham a ser objeto de manipulações posteriores tal como poderia ocorrer no Whatsapp Web.
Ou seja, a princípio, somente um perito técnico, após aplicar diversos procedimentos metodologicamente estipulados, é que poderia assegurar se as mensagens que constam no aplicativo Whatsapp de um determinado smartphone efetivamente são verossímeis, ou se são fruto de algum tipo de edição, seja fotográfica, seja de programação. Do contrário, sem um exame profundo, ter-se-ia tão somente o registro descritivo daquilo que foi visto – que não necessariamente é real, conforme já explicado.
Contudo, na prática, é sabido que nem sempre as screenshots obtidas pelo Whatsapp podem ser submetidas a tempo a algum tipo de perito ou profissional informático, de modo que deixam de ser observadas as regras que constam da ISO/IEC 27037:2013. Apesar disso, não há uma implicação direta de que a cadeia de custódia da prova foi violada, haja vista que a análise da veracidade dos prints não pode se dar de maneira isolada, isto é, em detrimento do contexto fático-probatório envolvido.
Afinal, a presença de outras provas que corroborem para demonstrar no mesmo sentido aquilo que é retratado é um elemento nevrálgico para o julgador (RAMOS, 2021, p. 546), dado que passam a funcionar como uma espécie de conhecimento prévio acerca dos fatos, permitindo, neste caso, que o juiz pondere se as screenshots obtidas por meio do espelhamento de conversas do Whatsapp apresentam algum grau de correspondência biunívoca àquilo que foi exposto pela Denúncia, ou ainda, alguma correlação com os elementos de informação levantados durante o inquérito policial.
Ademais, também é de nevrálgica importância considerar o sentido no qual as palavras que constam nos prints foram empregadas, bem como o contexto em que se deu a conversa entre os interlocutores. Há, portanto, uma série de elementos que devem ser ponderados pelo Juiz a fim de analisar eventual ilicitude nas screenshots coletadas do Whatsapp, de modo que não se pode concluir que o desentranhamento é necessário em todas as situações existentes, vez que inexiste óbice legal ou jurisprudencial expressos quanto ao emprego de provas de tal jaez em sede processual penal.
Conclusão
A dinâmica da atuação das organizações criminosas no âmbito dos crimes contra o Mercado Financeiro Nacional, devido ao seu alto grau de sofisticação, tende a ocultar quem são os verdadeiros autores intelectuais dos delitos perpetrados – que quase sempre envolvem complexas técnicas de lavagem de dinheiro –, de modo que o espelhamento de conversas coletadas do Whatsapp pode colaborar para que se efetue o desmantelamento de tais organizações criminosas.
Entretanto, ante a impossibilidade de se reconhecer, em abstrato, o respeito à cadeia de custódia da prova, mostra-se imprescindível que o magistrado, quando da análise do contexto fático-probatório e dos elementos de informação existentes, busque sempre que possível o respaldo nos exames técnicos dos peritos a fim de averiguar a veracidade das screenshots, ou, no mínimo, que avalie o caso concreto em conformidade com as outras provas já existentes nos autos, visando a atestar se são lícitos os prints que foram coletados por espelhamento das supostas conversas que ocorreram no Whatsapp, pois, ao revés, deverão ser desentranhados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações criminosas: Aspectos penais e processuais da Lei 12.850/2013. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.
RAMOS, Vitor de Paula. Da Necessidade de Corroboração Probatória para a Reconstrução de Sentidos em Diálogos Obtidos por Interceptações Telefônicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 537-566, jan.-abr. 2021.
CALLEGARI, André Luís. WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014.
[1] Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento no IDP. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9273-4748, iuri@cavalcantereis.adv.br.
[2] Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento no IDP. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9995-8824, yuri.dias@cavalcantereis.adv.br.
[3] Graduando em Direito pelo UniCEUB. Endereço: QL 18, Conj. 06, Casa 19, CEP nº 716.50-065, telefone: (61) 9 9644-4745, leandro@cavalcantereis.adv.br.
[4] Sobre a engenhosidade das organizações criminosas, confira-se: SILVA, Organizações criminosas, p. 53 e ss.
[5] Um exemplo claro disto é a recente Operação Circus Maximus, na qual dezessete pessoas foram denunciadas por provocar um prejuízo patrimonial de mais de 348 milhões de reais ao Banco de Brasília (BRB).
[6] No mesmo sentido: CALLEGARI; WEBER, Lavagem de Dinheiro, p. 25 e ss.