Por Rodrigo de Castro Sardenberg

O artigo 4º, parágrafo 16, da Lei n˚ 12.850/2013 determina que não serão proferidas “com fundamento apenas nas declarações do colaborador” quaisquer decisões que decretem medidas cautelares, receba a denúncia, nem a prolação de sentença condenatória.

Para o que se propõe este trabalho, nos basearemos em um caso hipotético envolvendo o dispositivo acima e o colocando sob os argumentos de Charles Taylor em “Seguir Uma Regra”, capítulo da obra Argumentos Filosóficos1. Por esta perspectiva da filosofia da linguagem, propõe-se que o saber ou o conhecimento são resultado de um processo de compreensão a partir de regras preestabelecidas, em abstrato, formando um pano de fundo basilar.

Ações inseridas em determinados contextos regulados por regras, como a analogia do jogo ou do direito, devem ser valoradas sob a constelação de regras e princípios em abstrato. Isto porque, é este pano de fundo que preenche o sentido do movimento e norteiam as finalidades do próprio jogo ou do processo judicial. Ou seja, só faria sentido um drible em direção oposta ao gol se a finalidade é buscar a melhor jogada para levar o time ao ataque.

O caso em análise conta com uma pessoa imputada por um delator no âmbito de um acordo de colaboração premiada como premissa fundamental. O Ministério Público oferece denúncia pelos crimes atribuídos pelo colaborador, contudo, as provas de corroboração apresentadas são poucas e não o vinculam. Sabe-se que o acordo ocorre no âmbito de uma ação penal originária, que o delator responde como acusado e o imputado figura como testemunha. Assim, a colaboração premiada ocorre num ambiente de produção anterior de prova, trazendo novos elementos a partir do acordo.

Portanto, há um histórico de provas já produzidas, inclusive a testemunhal pelo imputado, e, neste contexto, a colaboração premiada vem a somar, mas, oferecendo provas de corroboração que em nada confirmam as declarações. Celebrado o acordo, não foram realizadas novas investigações para confirmar ou negar a veracidade das palavras do delator. Há aqui, portanto, forte relação com a justa causa para a ação penal contra o terceiro imputado, isto porque, para o recebimento da denúncia contra si devem haver elementos indiciários de autoria e prova da materialidade do delito atribuído.

Assim, se percebe a importância do termo empregado pelo legislador na redação do parágrafo 16 do artigo 4º, caput, da Lei 12.850/13. Se nenhuma denúncia pode ser recebida com base apenas nas declarações do colaborador nem se pode condenar alguém sob este único fundamento, é preciso, portanto, entender o que significam as declarações do colaborador.

Para a compreensão do dispositivo legal e suas repercussões, é necessário, portanto, entender qual o alcance do sentido que o termo empregado pelo legislador pode oferecer. Esta tarefa pressupõe observar definições que deem concretude ao termo, para que ele possa se referir a uma conduta física ou jurídica que dela são geradas consequências igualmente físicas ou jurídicas.

Desta forma, de declarações do colaborador pode-se extrair sentidos diversos. Por exemplo, pelo termo se pode entender que o legislador atribuiu determinadas consequências considerando os depoimentos prestados pelo colaborador na fase de celebração do acordo, portanto, as suas palavras e declarações. Outro sentido diverso é compreender que suas palavras, num contexto de um acordo de colaboração premiada, são inúteis ou sem valor se desacompanhadas de provas de corroboração, uma determinação do artigo 3º, §4º, da Lei n˚ 12.850/2013.

Assim, a depender de como se entende o que são as declarações do colaborador, a denúncia pode ser recebida e a ação penal pesar sobre terceiros imputados e o próprio colaborador e também condenar um terceiro imputado. A relevância se dá justamente no que difere o sentido.

Se por declarações entende-se apenas as palavras do colaborador, as consequências podem se satisfazer a partir das afirmações, mas não somente. Desta forma, exige-se que as palavras estejam ligadas a quaisquer outras fontes de prova, podendo ser, inclusive, os elementos de corroboração trazidos pelo colaborador. O que parece ser razoável, considerando que estes elementos são indispensáveis para o acordo.

Por outro lado, se se entende que são a narrativa do colaborador e o material probatório que a acompanha que constituem o elemento mínimo da fundamentação do juiz para as decisões elencadas, surge o dever de que os documentos de corroboração trazidos pelo colaborador estejam conectados a outros elementos de prova colhidos pelo órgão de persecução obtidos através de outras fontes.

Assim, tem-se um critério de fundamentação mais rigoroso e, ao mesmo tempo, a garantia de que para a suficiência e efetividade do acordo frente a terceiros não estarão amparadas apenas no que foi colhido pelo acordo. Também, exige o esforço cognitivo da decisão em elencar expressamente a conexão entre estes elementos colhidos pelo acordo e externos a ele, e, sugere, ao mesmo tempo, a necessidade de o órgão de persecução realizar novas investigações que confirmem a veracidade das informações prestadas pelo colaborador.

Ou seja, o sentido do termo empregado pelo legislador pode-se mostrar como um elemento do próprio sistema, cujo rigor na maneira como se lida com seus instrumentos depende do que é levado em conta para atribuir consequências jurídicas do próprio instituto. Portanto, se é fundamental definir o que é preciso considerar para se decretar as decisões elencadas no artigo 4º, §16, da Lei n˚ 12.850/2013, é igualmente indispensável entender a adequação da colaboração premiada ao sistema processual penal brasileiro.

Desta maneira, para se entender o sentido do termo declarações usado pelo legislador num contexto de delimitação dos efeitos de um acordo de colaboração premiada, percebe-se o pano de fundo como o sistema acusatório, que orienta o processo penal constitucional brasileiro.

Este pano de fundo são princípios construídos ao longo de séculos de esforços acadêmicos e de política-criminal que subverteram a ordem de um processo penal inquisidor. Este conjunto de regras, que definem o sistema sob uma concepção progressista de Estado de Direito, cria limites importantes para o exercício punitivo do Estado. Estes princípios, positivados no texto constitucional e implícitos, como a presunção de inocência e o ne bis in idem, respectivamente, formam um arcabouço interpretativo principalmente para os casos de conflito de interpretação de normas. Exemplo breve disto é a discussão da possibilidade ou não da execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória violar o princípio e a norma da presunção de inocência.

Portanto, tem-se uma prática social, um processo constituído por etapas e normas que atinge uma finalidade, cujo pano de fundo é concebido por uma constelação de regras que limita o poder de ação do Estado, que orienta o sentido das ações concebidas neste sistema.

Desta forma, a colaboração premiada é uma ação, concebida sob a ideia de um conjunto de atividades normativamente regulados que gozam de determinado sentido e finalidade no contexto que é praticada. Se o sentido das ações é oferecido pelas regras ou pelas práticas sociais, são elas que orientam as motivações e preenchem as finalidades das ações e, ao mesmo tempo, às contextualizando no campo em que são praticadas.

Assim, é fundamental atribuir ao termo “declarações” do artigo 4º, §16, da Lei n. 12.850/2013 um sentido que corresponda às regras do jogo. Ou seja, se as palavras do colaborador não têm qualquer valor sem os documentos que as corroboram, e que há regra expressa que a colaboração premiada não é o único meio de prova suficiente para surtir repercussões, portanto, não há sentido em permitir decisões com fundamento apenas na conexão entre afirmações e documentos apresentados pelo colaborador. Exige-se mais, que tanto palavras quanto documentos apresentados sejam expressamente na decisão conectados a elementos externos, já produzidos e posteriores que confirmem.

Noutras palavras, faz sentido exigir do juiz que realize um juízo de valoração sobre a conexão do que foi fornecido pelo colaborador em palavras e evidências com outras fontes de prova produzidas pela investigação. Esta é a importância de precedentes do Superior Tribunal de Justiça como o AgRg no RHC 128.000/PR, de relatoria do Ministro Felix Fischer, julgado pela 5ª Turma em 15/12/2020, que sedimenta a impossibilidade de recebimento da denúncia pela mera conexão entre declarações e provas de corroboração, uma vez que, sem conectar-se com elementos externos não têm valor probatório.

Contudo, para isto, é necessário exigir um juízo de cognição que efetivamente descreva e valore a conexão entre as declarações, as provas de corroboração e os elementos externos, não sendo suficiente uma afirmação genérica. Caso contrário, fosse admitida a mera afirmação de conexões entre o conteúdo do acordo e elementos externos, sem menciona-las e valora-las, viola-se a justa causa e, também, cerceia o exercício da ampla defesa.

Para além das repercussões à decisão, esta compreensão também pode sugerir que os órgãos de persecução partes do acordo não se satisfaçam com o que foi obtido com a colaboração premiada, mas que, ainda, realizem o esforço de obter a confirmação da veracidade das informações fornecidas. Ainda, tem-se, também, um preenchimento de sentido sob a justa causa contra terceiros imputados por colaborador, delimitando seus critérios em tais hipóteses.

Desta maneira, o sentido do termo declarações alcança uma harmonia com pressupostos do sistema acusatório, limitando o poder de punir do Estado a partir de controles conferidos pela interpretação da norma, respeitando e reforçando as finalidades do processo.

Finalmente, quanto a um controle jurídico sob a persecução penal, pode-se também observar a instrumentalização desta interpretação da norma observando o julgamento do Agravo Regimental em Recurso em Habeas Corpus n˚ 138.014/RJ, em 23.11.2021, em que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou o problema dos efeitos do acordo em face de terceiros imputados.

Naquela oportunidade, a unanimidade dos Ministros reforçaram a vedação da denúncia apresentar como elemento de prova único a colaboração premiada. Ademais, naquele julgamento, também se fixou a imprescindibilidade da realização de diligencias investigativas complementares para checagem e confirmação das declarações do colaborador quando as provas de corroboração apresentadas são imprecisas ou questionáveis, portanto, sob um juízo de valoração da conexão entre os elementos de prova em paralelo à justa causa e à redação do artigo 4º, p. 16, da Lei n˚ 12.850/13.

O acórdão reforçou a necessidade de um controle objetivo dos efeitos da colaboração premiada, que ocorre, sabidamente, na prolação da sentença, mas, antes de sua declaração definitiva quanto aos efeitos para terceiros imputados. No julgamento do AgRg em RHC n˚ 138.014/RJ a 6ª Turma do STJ discutiu se o acordo naquele caso era ou não o único elemento de prova, tendo o Ministro Rogério Schietti entendido que ele estava acompanhado de outras provas. Contudo, a definição foi pela importância das diligências investigativas de confirmar a veracidade da colaboração e sua relação com a justa causa para oferecimento da ação penal contra terceiros imputados.

Assim, ainda que o artigo 4º, caput, §11, da Lei n˚ 12.850/13 aloque na sentença a apreciação da eficácia em definitivo no momento da sentença, pode haver na justa causa e no recebimento da denúncia um controle que reconheça os efeitos, a veracidade e verossimilhança da colaboração premiada frente a terceiros imputados. Ainda, põe-se sob um mesmo juízo de valoração quanto à conexão expressa com elementos de prova externos já produzidos e outros posteriormente obtidos para confirmação ou verificação.

Desta forma, além do controle de legalidade e eficácia da persecução penal, passa-se a exigir à composição da justa causa, nestas hipóteses, seus critérios clássicos vinculados a elementos de prova já produzidos e posteriores de confirmação da veracidade das declarações, preenchendo os sentidos da norma do parágrafo 16 do artigo 4º, caput, da Lei n˚ 12.850/13 e do artigo 395, caput, inciso III, do Código de Processo Penal.

BIBLIOGRAFIA

LOPES, Jose Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito – o direito como prática.Barueri: Atlas, 2022.

TAYLOR, Charles. “Seguir uma regra”. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.


Rodrigo de Castro Sardenberg é Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (2016). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pelo convênio entre o Instituto Europeu de Direito Penal Econômico (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (PT) com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) (2017). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (2019). Especialista em Compliance pela Legal, Ethics and Compliance (LEC) (2019); pelo Insper (2019 e 2021);


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