Por Guilherme Brenner Lucchesi[i] e Ivan Navarro Zonta[ii]
A constante evolução dos meios de comunicação digital e formas de interação virtual — para fins pessoais, negociais, financeiros etc. — é acompanhada pelo constante surgimento de novas formas de prática de atos delituosos. Recentemente, tem-se visto que a criminalidade contemporânea não se reduz à criminalidade violenta “das ruas”.
Hoje, ao contrário, trata-se com cada vez maior atenção a crimes que se manifestam em formas complexas, desde a corrupção nos órgãos da administração pública, passando por operações ilícitas em sede de atividade empresarial, até toda sorte de fraudes virtuais e desvios de valores por meio de sistemas eletrônicos de transação.
Nesse contexto, vê-se também uma alteração significativa no tocante à investigação e às provas atinentes a tais fatos delituosos. O que antes tomava a forma de coleta de vestígios físicos em locais de crime, perícias médicas e/ou em objetos diversos e inquirição de testemunhas (dentre outras formas “clássicas” de investigação), hoje se substitui cada vez mais pela apreensão e análise de dados digitais. Isso se dá, naturalmente, por meio da apreensão dos aparelhos e mídias que contém tais dados, como celulares, computadores, notebooks, HDs externos e pendrives etc.
Vê-se comumente, portanto, operações policiais que resultam na apreensão de um sem número de aparelhos de eletrônicos de órgãos públicos, pessoas jurídicas e pessoas físicas, sob o fundamento da necessidade de acesso e análise de dados virtuais. E mais: via de regra, os aparelhos apreendidos são aqueles de cujo uso diário dependem frequentemente os “alvos” dessas investigações. Por exemplo, a investigação da prática de crimes de corrupção envolvendo empresas resultará justamente na apreensão dos aparelhos eletrônicos por meio dos quais a empresa realiza suas atividades. No tocante à pessoa física investigada, isso por vezes é ainda mais preocupante: não somente sua “vida profissional”, mas principalmente toda sua intimidade e sua vida pessoal se encontram “gravadas” nos dados digitais de um aparelho celular apreendido.
Não é rara, portanto, a contraposição de dois objetivos legítimos: (i) a aquisição e análise dos dados digitais relevantes à investigação, de um lado, e (ii) a restituição dos aparelhos eletrônicos apreendidos com a finalidade de obtenção de provas (excetuados, por exemplo, os casos de apreensão de bens que consistem em objeto ou produto de crime, ou sujeitos a perdimento).
O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, nessas situações, comumente adota estratégia ótima que concilia a aquisição e análise de dados digitais com o respeito ao direito de propriedade dos investigados: a devolução dos bens após a realização do “espelhamento” do conteúdo de dados — ou seja, cópia integral dos dados e meta-dados da mídia eletrônica. A título exemplificativo, tem-se voto do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto:
Em relação aos aparelhos telefônicos também não visualizo a necessidade de que continuem apreendidos por prazo tão dilargado. Com efeito, o simples espelhamento resolve a questão dos dados armazenados que porventura interessem ao processo. A parte não pode ser penalizada pela demora na realização da perícia sem sequer ter contra si a denúncia formalmente ofertada pelo Ministério Público Federal. Nessa linha, tenho que assiste razão ao requerente ao postular a devolução do numerário e dos aparelhos telefônicos apreendidos. Assim, determino a imediata devolução dos valores apreendidos ao postulante. Em relação aos aparelhos celulares, a fim de evitar prejuízos às investigações em andamento defiro o prazo de 30 dias para que o espelhamento seja realizado. Após o decurso desse prazo, porém, devem ser restituídos ao requerente. (TRF4 – 8.ª T. – ACR n.º 5027313-97.2018.4.04.7200 – Rel. p/ acórdão Des. Fed. João Pedro Gebran Neto – em 20 dez. 2019)
Mesmo no âmbito da Operação “Lava Jato”, a Corte já decidiu que “a restituição de equipamento de informática apreendido, conjugada com a fixação de um prazo razoável para a prévia realização de cópias pela autoridade policial, configura a medida mais adequada para compatibilizar o interesse público (eficiência da persecução penal) e o interesse particular (direito de propriedade e o exercício das atividades profissionais)” (TRF4 – 8.ª T. – ACR n.º 5005448-41.2015.4.04.7000 – Rel. Juiz Federal Nivaldo Brunoni – em 23 fev. 2016).
O entendimento do Tribunal parece ser o correto. Em se tratando de “evidência digital” — “informações ou dados, armazenados ou transmitidos em forma binária, que podem ser invocados como evidência” —, há norma brasileira pouco conhecida e especialmente importante, consistente na norma NBR/ISO 27073:2013, elaborada no Comitê Brasileiro de Computadores e Processamento de Dados (ABNT/CB-21) pela Comissão de Estudo de Técnicas de Segurança. A norma está vigente desde 9 de janeiro de 2014, e “fornece diretrizes para atividades específicas no tratamento de potenciais evidências digitais”, conforme os processos (etapas) de “identificação, coleta, aquisição e preservação”.
A compatibilização da investigação das evidências digitais com a devolução dos aparelhos eletrônicos apreendidos aos legítimos proprietários parece não encontrar impedimento direto na referida norma, que conceitua o processo de “aquisição” justamente como o “processo de criação de cópia de dados em um conjunto definido”.
Já em 2014, anos antes da inclusão de diversos dispositivos acerca da cadeia de custódia da prova nos arts. 158 e seguintes do CPP, a NBR/ISO 27073:2013 já descrevia este procedimento como “documento, ou uma série de documentos relacionados, que detalha a cadeia de custódia e os registros de quem foi o responsável pelo manuseio da potencial evidência digital, seja na forma de dado digital ou em outros formatos”.
A despeito da mencionada reforma no Código e de julgados tais quais os acima indicados, a complexidade técnica e a relevância das evidências digitais no cenário atual da persecução penal não são adequadamente acompanhados pelo refinamento técnico da jurisprudência e da atividade ministerial e advocatícia. Cabe aos operadores do direito penal, frente a esses desafios, abandonar o falso conforto do “lugar comum” das análises exclusivamente jurídicas a fim de especializar-se no que já é importante componente do direito penal: o mundo dos dados digitais.
[i] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Presidente do IBDPE. Doutor em Direito pela UFPR. Master of Laws pela Cornell Law School. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Contato: guilherme@lucchesi.adv.br
[ii] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Associado ao IBDPE. Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Contato: ivan@lucchesi.adv.br
Algumas informações sobre a NB/ ISSO 27073:2013:
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