Por: Richarde Pereira da Silva Júnior[1]
Os sistemas jurídicos, tais como o anglo-saxão (common law) e o românico-germânico (civil law) destinam-se há tempos como fontes basilares para a construção jurídico normativa de diversos países ao redor do mundo (Brasil, Espanha, Portugal, Singapura, EUA, Inglaterra). Considerando a multiplicidade de litígios que despontam rapidamente em um universo repleto de mudanças sociais e a dificuldade de enfrentá-los, o ordenamento jurídico brasileiro tem adotado, comumente, as teorias jurídico-penais surgidas no common law cuja aplicação corresponde à possibilidade de punibilidade ante conflitos jurídico-penais complexos, como o de lavagem de capitais. Tal fato é reflexo da sensação de insegurança crescente e dos novos riscos que chamam o Estado a solucionar. [2]
À vista disso, pouco se discute no país, com raríssimas exceções, a problemática profunda acerca da importação de uma dessas teorias, qual seja, a chamada cegueira deliberada (willful blindness doctrine). A teoria, em alguns casos judiciais, vem sendo reiteradamente utilizada pelo judiciário brasileiro, sendo equiparada ao dolo eventual.
Já bem difundida no sistema da common law, mais especificamente nos EUA, por influência do caso inglês Regina vs. Sleep – 1861. Nos Estados Unidos menciona-se que, embora não se saiba ao certo qual foi a extensão da sua aplicabilidade pela Corte, tem-se que a teoria foi discutida, inicialmente, no litígio United States vs. Spurr – 1899.[3] No primeiro caso, na Inglaterra, o imbróglio diz respeito ao desvio de bens do Estado e no segundo, nos Estados Unidos, à emissão de cheques sem fundos em um Banco de Nashville, capital do Estado de Tennessee.
Usualmente conhecida como cegueira deliberada (willful blindness doctrine), ela se traduz pelo desconhecimento fático, deliberado (racional) em relação aos indícios ou práticas de determinada ação delituosa que haveria a capacidade de se ter consciência, caracterizando-se, ainda, como a pretérita viabilidade de determinado agente de ter tido o conhecimento sobre o cometimento de um delito e a sua diligência (ativa ou passiva) quando do momento de tal conhecimento. Em outras palavras: seria a ignorância voluntária em relação à prática criminosa em contrariedade a determinado tipo penal, o escolher não ver.
Dito isso, a linha defensiva do artigo é o de que: (i) o sistema românico-germânico (civil law) que estrutura o ordenamento jurídico no país é inviável para se aderir a uma tipificação penal subjetiva (no caso de lavagem de capitais) como a da cegueira deliberada, cunhada no sistema jurídico da common law, logo, diverso ao brasileiro que se irrompeu, em verdade, apenas para solucionar uma lacuna de imputação existente entre o conhecimento (knowledge) e o descuido (recklessness). Ao passo que: (ii) já há no país arcabouço dogmático o suficiente para uma possível imputação subjetiva, sendo desnecessária a importação da teoria. E que: (iii) inexiste até o presente momento, tampouco existiram ou quiçá está em passos de desenvolvimento quaisquer critérios mínimos, objetivos ou razoáveis que sistematizam, dogmaticamente e logicamente, a aplicação da referida teoria pelos Tribunais brasileiros.
Em breves linhas, a discussão se irrompeu, de início, quando o Poder Judiciário Federal do Ceará a adotou para sentenciar réus por lavagem de dinheiro no caso do furto ao Banco Central no ano de 2005.[4] Embora a sentença tenha sido reformada por instância superior posteriormente (TRF5), foi a partir daí que a teoria se introduziu na jurisprudência brasileira. Posteriormente, notabilizou-se novamente na Ação Penal 470, nacionalmente conhecida como “mensalão”, esquema de pagamento de vultosos valores a parlamentares que apoiassem politicamente o governo federal. À época, o Ministro Celso de Mello decidiu aplicar a teoria no crime de lavagem de capitais, bem como a Ministra Rosa Weber que também decidiu utilizá-la. E mais recentemente, foi novamente discutida e adotada em algumas ações penais no âmbito da chamada “Operação Lava Jato”.
Quando o artigo defende a impossibilidade da importação da referida teoria há que se falar, naturalmente, da sua adoção na Espanha, país cujo ordenamento também se baliza no civil law, motivo pelo qual alguns dos defensores da implantação da teoria no ordenamento brasileiro defendem a sua adoção. Entretanto,“há peculiaridades e vicissitudes inerentes aos respectivos sistemas de imputação criminal de cada país, notadamente a delimitação do conceito legal de dolo, presente no Brasil, mas ausente na Espanha”, como bem assinala Lucchesi.[5] O ponto central, portanto, é “que a simples menção da legislação estrangeira não referenda e não é tão simples para justificar o pretendido, pois o seu teor é diverso do que, no Brasil, se encontra.”[6]
Como se vê, o ordenamento jurídico brasileiro não deve se escorar no ordenamento jurídico espanhol pretendendo justificar a importação da teoria, porquanto mesmo que os sistemas dos dois países procedam da semelhante estrutura romano-germânica, isto, por si só, não justifica a importação da “willful blindness”; eis que: (i) a delimitação dolosa presente na Espanha distingue-se da brasileira e, naquele país, também carece de interpretação unânime e (ii) o Brasil já possui arcabouço normativo o suficiente para imputação subjetiva nos moldes em que se destina a cegueira deliberada e (iii) ainda é inútil para o sistema penal continental “nos moldes em que formulada no âmbito do common law”, conforme, neste caso, bem defende Lucas Pardini.[7]
No que se refere à imputação subjetiva no direito penal brasileiro, especificamente no crime de lavagem de capitais, entendido como aquele que busca dar vistas de legalidade a valores e bens de origem ilícita, temos que a sua concretização só se daria por meio da modalidade dolosa, pois inexiste modalidade culposa. O dolo, portanto, seria identificado por meio do conhecimento de bens ou valores visando “ocultar ou dissimular sua natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade, ou com a assunção do risco de produzir um ou mais desses resultados”.[8] E uma imputação possível, em tais casos, seria por meio do já conhecido dolo eventual, que “com a possibilidade de se imputar a prática de lavagem a título de dolo eventual, seria possível viabilizar uma resposta penal julgada apropriada para esse feixe de casos”,[9] o que dispensaria, logo, a importação da cegueira deliberada.
A enorme vagueza da teoria traz sérios riscos quando da sua aplicação no crime de lavagem, porque acaba por adotar termos que ainda inexistem critérios objetivos que os tipifiquem, tais como: “adquirir”, “vender”, “oferecer”, “ter em depósito”, “transportar”, “trazer consigo” ou “guardar”, termos cabíveis no crime de tráfico de drogas – casos em que se aplica a teoria nos EUA – que diferem-se dos termos usualmente utilizados para a imputação do crime de lavagem de capitais, tais como o de ocultação e dissimulação.[10] Fato pelo qual “qualquer que seja a teoria adotada em relação ao elemento subjetivo, o dolo no direito pátrio sempre exige, ao menos, conhecimento acerca dos elementos objetivos da norma incriminadora”,[11] o que implica, necessariamente, ao menos a mínima sistematização, sem vagueza vocabular, para a imputação no caso do crime de lavagem de capitais.
Logo, conclui-se que a figura do dolo, dotada de critérios de objetividade no ordenamento jurídico brasileiro, não é equiparável à teoria da cegueira deliberada. Ademais, que nos casos do crime de lavagem de capitais, ainda inexiste objetividade nas imputações por conta da enorme vagueza vocabular existente em nosso ordenamento, motivo pelo qual é urgente o desenvolvimento da figura dolosa pela doutrina e jurisprudência nos casos em que se tem em pauta o conhecimento do agente, e não de importação da teoria da cegueira deliberada cuja elaboração se deu para resolver, exclusivamente, um problema de lacuna de imputação existente no ordenamento anglo-saxão (common law).
[1] Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Intern at – Tauil & Chequer | Mayer Brown (Corporate e Securities – Energy | Oil & Gas)”. Membro da Equipe de Competição e Estudos em Arbitragem da UFRJ – ECEArb. Membro Alumni da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB).
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[2] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 19.
[3] PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Direito – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019, p. 22.
[4] Processo crime n. 2005.81.00.014586-0.
[5] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 63-64.
[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, 2016.
[7] PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Direito – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019, p. 29.
[8] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 54.
[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 65.
[10] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017, p. 66.
[11] HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 163.
BIBLIOGRAFIA
HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Tese em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017.
PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Direito – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, 2016.
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