Por Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar[i]

 

Nada demonstra melhor a dicotomia e a corda-bamba em que vive o Direito Penal do que a metáfora da espada e da balança, de Christine Van den Wyngaert[ii]. O direito penal, em sua relação com os direitos humanos, possui uma função de proteção e um poder de violação, a depender, como todo medicamento, da dose aplicada. Um direito penal – e, nesse ponto, deve ser concebido conjuntamente com o Processo Penal, em sua instrumentalidade – que não alcança condutas violadoras de bens jurídicos fundamentais é ineficaz e potencial ofensor de direitos humanos. Entretanto, a sua chancela a um poder estatal ilimitado e imoderado – ao sabor de um Estado absolutista – que sujeite os seus súditos a sanções e males ao seu alvedrio, sob o argumento sempre atrativo da ordem e do respeito, e que preencha as lacunas de punibilidade, a título de proteção de direitos “dos cidadãos”, na verdade mais os infringe do que os protege.

Nadar contra a correnteza é tentar demonstrar essa dualidade e a necessidade de conter o poder estatal, na notável expressão de Isaiah Berlin[iii]. Isso se torna especialmente problemático em um mundo – não é um fenômeno exclusivamente brasileiro – em que se fala em uma sociedade de risco[iv] e na qual, como bem delineado por Silva Sanchez, é mais fácil ao sujeito comum se empatizar com a vítima do que com o autor do delito[v], ainda que a esfera de criminalização de novos interesses – como direitos autorais, ambientais e tributários – torne grande parte da sociedade agentes de condutas criminosas, ou, em um labelling approach– “delinquentes”[vi]. Não mais se olha para o punido pelo Estado como um de nós, mas como aquele que mereceu, mesmo em tempos de crescente menção a ideias cristãs – uma interpretação livre em que a prostituta, no final das contas, mereceu e, por isso, deve ser apedrejada.

Retornando à dicotomia das funções ofensiva e defensiva do Direito Penal, ela se torna mais evidente em crimes violentos e grandes – aquele núcleo de um chamado Direito Penal Tradicional – em que os delitos, de resultado, violam diretamente interesses de importância vital para vítimas determinadas, com nome e sobrenome. É o caso do homicídio. Seja tentado ou consumado, há uma vítima – in memoriam ou no banco do Judiciário – a reclamar de toda a sociedade que se puna o sujeito acusado. Frise-se que até mesmo essa diferença entre acusado e culpado parece cada vez mais distante da opinião comum, como se o flagrante substituísse todos escritos e avanços da processualística e atestasse a culpa de forma irrevogável, apesar da comoção geral que causa um filme como À Espera de um Milagre.

Torna-se evidente, comprovada a prática do homicídio ou do estupro – que haja um sistema apto a repelir os crimes, já que, a despeito das críticas – como a visão agnóstica de Zaffaroni[vii] – a nossa legislação optou pelas ideias de repressão e retribuição[viii]. Partindo da legislação e mesmo de uma respeitável posição doutrinária pela função preventiva da pena[ix], a punição dos crimes violentos é uma necessidade que ressoa da valoração paralela da esfera do profano[x], se possível a analogia, sem necessidade de nenhum recurso a fundamentos jusfilosóficos.

Ocorre que a espiritualização do Direito Penal, com a tutela de bens jurídicos cada vez mais coletivos, sem uma vítima individualizada, começa a retirar aquela sensação popular de que crime é uma coisa grave e a causar confusão social – “Mas eu já paguei a multa ambiental, por que existe esse processo de novo?” – sobre os limites e a própria função das normais penais. Na criminalidade econômica isso se torna bastante evidente, já que as vítimas estão pulverizadas e os interesses são mais difusos.

Não se quer dizer, com isso, que condutas como a lavagem de dinheiro, que trouxe um esforço da comunidade internacional para a harmonização do direito interno e do internacional[xi], não mereça repressão penal, mas sim que a correlação entre proteção de bens jurídicos por meio da restrição de liberdades públicas se torna ainda mais abstrata e de difícil apreensão. De todo modo, há uma necessidade de garantia da liberdade econômica e, mais do que isso, um interesse social nítido de atração de investimentos – como sói acontecer em um país que se diz em desenvolvimento – o que, claro, deve levar a uma análise econômica dos riscos de incriminação de dirigentes da pessoa jurídica no caso de sua atuação no território brasileiro[xii]. Como realce do paradoxo, um direito penal inefetivo torna possível a inserção de capital proveniente de atividades criminosas, inclusive do rentável tráfico de entorpecentes, desequilibrando o mercado com o sacrifício da livre concorrência[xiii].

É nesse ponto que se torna interessante a crítica doutrinária sobre a concepção jurisprudencial brasileira de domínio do fato, a qual levaria a uma punição por um domínio pela posição, ou seja, a possibilidade de punição de alguém pela posição que ostenta em determinada corporação, como se lhe fosse obrigatório conhecer e coibir qualquer prática delitiva nas suas estruturas, sob pena de responder pessoalmente pelo ocorrido[xiv]. A ideia é deveras sedutora, mormente quando se pensa na seletividade penal que impera no país, com as condutas das camadas mais pobres sendo punidas de forma mais dura e mais frequentemente levadas ao Judiciário, ou, como destacam com maestria Zaffaroni e Batista, a punição da “obra tosca”[xv] – nossos ramos de polícia investigativa, sem a estrutura necessária, acabam por desvendar quase sempre o crime praticado de forma menos sofisticada e, por isso, mais evidente aos olhos,  o que torna esse tipo de delito quase a totalidade das punições efetivadas pelas agências oficiais.

Entretanto, a seletividade penal deve levar a discussões que tornem todos igualmente responsabilizáveis nos limites da lei, e não encarcerar a todos para demonstrar que há uma igualdade na exclusão de direitos, ao método Simão Bacamarte, que, com a genialidade machadiana, demonstra os perigos de procurar encontrar traços de desvios em cada indivíduo.

Daí advém a crescente crítica doutrinária de se imputarem os fatos cometidos na empresa aos seus dirigentes a partir de um domínio pela posição ocupada. É evidente a necessidade de punição de atos cometidos por meio de estruturas empresariais, em que o indivíduo que decide praticar condutas nocivas à sociedade se esconde em estruturas hierárquicas complexas e burocráticas, a justificar, inclusive, em uma coculpabilidade às avessas, uma individualização da pena que lhe enseje uma punição com rigor maior do que ao autor da “obra tosca”, de parcos recursos, que atenta contra o mesmo bem jurídico[xvi]. Entretanto, tal punição deve passar por toda a análise dogmática, por meio da majoritária visão tripartite de delito, com a imputação do resultado caso a conduta represente sua conditio sine qua non, filtro inafastável pela previsão da cabeça do artigo 13, que pode, claro, ser aperfeiçoada (e restringida) pela avançada teoria da imputação objetiva.

Partindo-se da imputação do resultado ao agente, aí sim é possível lançar mão da teoria do domínio do fato, que busca diferenciar autores e partícipes, e não aumentar o âmbito de imputação de resultados típicos. Ainda que nosso Código Penal não diferencie abertamente autores e partícipes, o artigo 29, em seus parágrafos, refere-se à participação, o que não deve ser interpretado como se o legislador utilizasse palavras inúteis[xvii], partindo-se da presunção de palavras em sentido não jurídico, e não o contrário. Deve-se partir da conceituação dada pela ciência jurídica, sob pena de os termos se tornarem inúteis e a legislação comportar qualquer interpretação[xviii]. Não se argumenta que o artigo 29, em seu caput, não deixou aberta a possibilidade acolhimento de uma concepção unitária de autoria. O que se pode depreender dos parágrafos do artigo 29, no entanto, é uma referência à participação, o que deveria levar a doutrina e a jurisprudência a se dedicarem a uma diferenciação técnica entre as figuras, com a desejada aplicação do artigo 66 do Código Penal, encampador da atenuante genérica, como válvula de escape legislativa para hipóteses em que a pena aplicada não otimizaria em grau adequado o princípio da individualização.

A agravante genérica, portanto, pode ser aplicada a todos os partícipes, como forma de diferenciar o seu tratamento dos autores, inclusive quando os dirigentes das pessoas jurídicas apresentam conduta acessória, sem demonstrar a configuração de verdadeira coautoria, o que não pode decorrer nem de uma responsabilidade pela posição ocupada, muito menos de uma correção a fórceps da seletividade penal. Lado outro, a coautoria, por meio do domínio funcional, ou mesmo a autoria no âmbito do domínio da vontade, por meio de aparato organizado de poder – ambas especificações da teoria do domínio do fato, devem ser analisadas com base nos seus requisitos científicos, sob pena de uso de rótulos sem conteúdo, malversação de teorias específicas[xix] e desconsideração do princípio da culpabilidade.

A autoria dos dirigentes por meio de aparatos organizados de poder deve enfrentar a argumentação a respeito da necessidade ou não de a organização ser apartada da sua ordem jurídica, requisito imposto pelo maior estudioso do tema, Claus Roxin[xx]. Ainda que se conceba ser possível eliminar tal requisito, adotando posição doutrinária diversa daquela defendida pelo autor alemão, é preciso, ainda, enfrentar o tema da fungibilidade dos executores, um dos requisitos necessários para se conceber a existência de um autor por trás de outro autor, ambos responsáveis por seus atos[xxi]. Em organizações empresariais cada vez maiores e mais complexas, a fungibilidade pode esbarrar na especialização dos funcionários, como no caso do contador que consegue mascarar ganhos e ocultar bens derivados da sonegação tributária, o que, segundo o entendimento jurisprudencial pátrio, pode configurar o crime de lavagem de dinheiro. Quando maior a especialização do funcionário e o maior know-how por ele detido, mais difícil se torna a argumentação a favor de sua fungibilidade na execução típica[xxii].

Já sob o manto da coautoria é possível analisar a conduta do sujeito que, do alto comando de uma pessoa jurídica, determine a prática de condutas delitivas aos subordinados. A punição do sujeito como autor teria a crítica da ausência de execução, por si mesmo, de atos típicos ou, em outros termos, seu envolvimento direto na fase executória. Interessante, nesse campo, a visão de Muñoz Conde, para quem seria possível analisar o domínio funcional na perspectiva de uma coautoria, mesmo que um dos agentes não participe da execução propriamente dita. Em outros termos, o jurista espanhol defende a aplicação de uma concepção de coautoria desvinculada das amarras da coexecução típica, como uma “realização conjunta”, interpretação mais adequada ao direito penal econômico, em que as condutas não são delineadas como nos crimes tradicionais, como no homicídio, com estruturas mais facilmente compartimentáveis[xxiii].

Já em linhas conclusivas, o que se deve buscar é uma melhor fundamentação técnico-científica da punição, o que garanta previsibilidade e, assim, segurança jurídica, com limites nítidos entre a atividade empresarial de risco e atividades ilícitas cometidas por meio de estruturas organizacionais. Se os anseios de um direito penal liberal, limitado em nome da convivência democrática, não comovem muito, quem sabe a necessidade econômica, cuja voz ressoa mais forte, possa demonstrar a adequação de se estabelecerem limites técnico-científicos mais rígidos entre a gestão empresarial, que necessariamente abrange riscos, e a atividade delitiva, sobre a qual a coerção deve ser eficaz até mesmo pela garantia da livre concorrência. Em uma sociedade avessa aos riscos que o seu próprio afã de desenvolvimento cria, essas externalidades devem ser punidas com observância de todo um aparato dogmático-legislativo, custo necessário para que a segurança jurídica impere nas atividades econômicas, protegendo o seu livre exercício e punindo apenas o que o ordenamento jurídico realmente permita, na correta medida de sua culpabilidade.


[i] Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas e em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa. Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Juiz Federal.

[ii] TULKENS, Françoise. The paradoxical relationship between criminal law and human rights. Journal of International Criminal Justice, vol. 9, no. 3, July 2011, p.577-578.

[iii] CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 113.

[iv] BECH, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, passim.

[v] SILVA SANCHEZ, Jesús María. La expansión del Derecho penal. 3ª ed. Madrid: Edisofer S. L., 2011, p. 46-57.

[vi] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Reva, 2001, p. 85-100.

[vii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro, volume I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 74.

[viii] Artigo 59, caput, do Código Penal.

[ix] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral e parte especial. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 267-269.

[x] Em sentido diverso do empregado, mas com a origem aceita da expressão: MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de Estudio. Parte General. Traducción de Conrado A. Finzi. Santiago: Ediciones Olejnik, 2019, p. 204.

[xi] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 4ª ed. Navarra: Arazandi, 2015, p. 110-205.

[xii] POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 450-467.

[xiii] BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro. Aspectos Penais. In: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais; comentários à Lei 6.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2019. 82-85.

[xiv] LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros. Os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 145-151.

[xv] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Batista, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro, volume I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 3ª reimp., 2017, p. 46-51.

[xvi] MOURA, Grégore Moreira. O princípio da Co-culpabilidade no Direito Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2006, passim.

[xvii] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 91.

[xviii] GRAU, Eros. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e princípios). 7 ed. refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo, Malheiros, 2016, p. 90-94.

[xix] GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no Direito Penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 19-45.

[xx] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Peña (Director), Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Thomson Reuters, 2008, p. 111-125.

[xxi] GRECO, Luís; ASSIS, Adriano. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 102-106.

[xxii] MUÑOZ CONDE, Francisco. Problemas de autoría y participación en el derecho penal económico, o ¿cómo imputar a título de autores a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia económica empresarial? In: Manuales de formación continuada, n. 14, 2001, ISBN 84-89230-81-1, p. 80.

[xxiii] MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. Cit., p. 93-94.


Este artigo reflete a opinião de seus autores e não necessariamente a opinião do IBDPE.

Este espaço é aberto aos Associados do IBDPE! Para submeter seu artigo, envie uma mensagem para contato@ibdpe.com.br