Por Beno Brandão[1] e Felipe Américo Moraes[2]

 

 

O Tribunal Regional Federal da 4º Região, mais especificamente sua 8ª Turma, debruçou-se recentemente sobre os acordos de não persecução penal[3], quando tratou diversos aspectos jurídicos do novo instituto, especialmente sua inspiração no plea bargain estadunidense e sua “identidade genética” com a transação penal.

Dentre os temas, destaca-se a parte que fala da confissão. Afirmou ser indispensável mesmo nos casos já sentenciados, nos quais os condenados deveriam rever sua estratégia processual. Mesmo assim, esclareceu que não se trataria de uma coação ilegítima realizada pelo Estado, eis que o acordo de não persecução penal possuiria feições de negócio jurídico processual, assim como a colaboração premiada. Segundo o julgado, “as partes ponderam aquilo que, sob o amparo do contraditório e da ampla defesa, lhes será mais conveniente e transigem conforme seus interesses”. Foi salientado, também, que a participação obrigatória de um advogado rechaçaria toda e qualquer possibilidade de coação.

Chama atenção que esse primeiro julgado do Tribunal Regional Federal sobre a matéria possui estranha identidade com o primeiro que houve pela Corte Federal estadunidense sobre o plea bargain, ainda em 1970[4]. A mesma afirmação de liberalidade do acusado e assistência da defesa foi colocada como evidência da ausência de coação para confissão (mesmo que, naquele caso, a pena a ser submetida fosse de morte). E será que a experiência norte americana, ao longo de mais de 50 anos, mostrou que isso é verdadeiro?

Essa dúvida tem razão de ser diante do expressivo número de acordos que passaram a ser realizados nos EUA, que chegou a alcançar 97% na justiça Federal daquele país[5]. O que se constatou foi que o plea bargain estimula que inocentes confessem crimes que não praticaram. Estudo conduzido pelo Innocence Project americano revelou que mais da metade dos participantes admitiram falsamente um crime para obter algum benefício[6]. Aventou-se que a motivo seria menos jurídico e mais psicológico. Dervan e Edkins[7]colocaram em prática o raciocínio. Durante uma prova acadêmica, um professor aplicou o teste e deixou a sala de aula. Foi pedido a um dos alunos, previamente combinado, que solicitasse uma “cola” a seus colegas. Os que aceitaram foram colocados na condição de “culpados”, enquanto os que não aceitaram ou não foram solicitados, na condição de “inocentes”. Quando o professor retornou, disse que ficara sabendo da fraude e fez a seguinte proposta: àqueles que admitissem culpa ficariam sem nota naquela prova, entretanto, para os que nada falassem, teriam que comparecer posteriormente junto à coordenação do curso, em uma data à ser agendada, onde seriam ouvidos ambos os lados e dado um parecer que poderia resultar na perda da bolsa de estudo que possuíam. O resultado fora de que 56.4% dos inocentes aceitaram a barganha.

Com precisão técnica, estudo conduzido por Michael Finkelstein[8], cujo resultado rendeu uma publicação neste ano de 2020, comparou o número de pessoas que aceitaram acordos na justiça americana até o ano de 1975 com o número dos que aceitaram entre os anos de 2013 a 2017. O número passou de 63% para 89%. Foi reconhecido de que raras vezes há um equacionamento racional pelo acusado na escolha entre enfrentar o processo e cumprir uma pena. Nesses casos, prevaleceu a aversão ao risco, eis que os acusados se sentem ameaçadas com processos considerados injustos, a serem julgados por um sistema de justiça que carece de segurança. Decorrente disso, constatou-se que um terço dos inocentes confessavam para obter o benefício. Ou seja, há evidências de que no plea bargain estadunidense inocentes confessam crimes que não cometeram. Há, em alguma medida, coação pelo Estado.

Antes de falar do panorama brasileiro, necessário falar do sistema alemão. Isso, pois a primeira aparição do instituto no Brasil, através da Resolução nº 181/2017[9], também se inspirou no sistema daquele país. Diferentemente do modelo estadunidense, no plea bargain alemão (Absprachen) não há encerramento do caso com a mera admissão da culpa. Isso decorre especialmente do fato de os acordos serem realizados durante o processo criminal e conduzidos pelo juiz do caso. Além disso, lá vigora o princípio inquisitorial, de modo que o juiz alemão possui o dever de investigar a verdade material[10], dispondo de ferramentas para aprofundar sua busca independentemente da provocação das partes. Ou seja, até mesmo uma completa confissão feita pelo acusado não exime o juiz de descobrir a verdade.[11]

No ano de 1997, quando a Corte Federal alemã foi chamada pela primeira vez para avaliar a constitucionalidade do instituto, foi expresso, dentre outros princípios, a impossibilidade de pressionar um acusado a confessar um crime[12]. Mesmo assim fala-se que existe coação. Aliás, segundo Turner[13], é tão notória que possui nomenclatura: Sanktionsschere, em tradução livre “tesoura da sanção”, que significa o cálculo feito pelo acusado da diferença entre a pena a ser recebida caso condenado e a que receberia caso houvesse um acordo. Esta é normalmente um terço daquela, patamar muito semelhante ao praticado no Brasil[14]. Ou seja, desnecessário que a pena seja de morte para se falar em coação, bastando que seja superior.

Feitos tais esclarecimentos, remanesce a dúvida: por que isso seria diferente no Brasil? Aqui também estamos sujeitos à mesma “tesoura da sanção”. Recusar o acordo pode resultar em uma pena três vezes mais alta, a ser julgada por um judiciário cuja segurança frequentemente é alvo de criticas. Assim, a decisão se torna mais econômica do que jurídica. Somente o fato de ter que enfrentar um processo criminal (e consequentemente ter que dispender maiores honorários advocatícios), aliado ao risco de ser injustamente condenado, acaba por ser motivo suficiente para fazer um inocente confessar.

E delegar a responsabilidade pela guarda da coação do acusado a seu advogado não parece ser suficiente. Bastaria pensar: o que poderia fazer o advogado quando seu cliente inocente, conhecendo suas chances de absolvição, mesmo assim opta por fazer um acordo? Deveria o advogado impedir? Assim como na medicina há o consentimento informado, o advogado não pode se desincumbir de informar as nuances do processo criminal a seu cliente, mas, também, de prover-lhe a defesa que ele quer para si, e não a que entende (paternalisticamente) ser a juridicamente mais adequada. Se o acusado, ciente da sua inocência, opta por aceitar o acordo para evitar um longo e tortuoso processo criminal, não deve o advogado subtrair-lhe a possibilidade de assim agir. Em outras palavras, o advogado não é filtro da coação do Estado nos acordos de não persecução penal.

O que acertou em essência o julgado do TRF-4, mas não em conteúdo, é que o nosso acordo de não persecução penal guarda inspiração no plea bargain, mas não se trata (ou ao menos não deveria) de uma fiel reprodução. Como dito, sua identidade genética é da transação penal, na qual inexiste necessidade de confissão ou admissão de culpa. Então, qual seria o motivo de haver a necessidade de confessar “formal e circunstancialmente” o crime?

Pode-se cogitar que a exigência fundamentaria o dever de reparar o dano à vítima (art. 28-A, I, CPP), inexistente na transação penal. Entretanto, a reparação do dano é prevista para a suspensão condicional do processo, instituto que igualmente não resulta na admissão de culpa ou necessita de confissão.

Há quem entenda que a necessidade de confissão fora importada do sistema alemão[15]. Tendemos a acreditar que não. Quando Rodrigo Cabral, autor da redação da Resolução do nº 181/2017 do CNMP, falou sobre a forte inspiração nesse sistema, percebe-se que sua referência se deveu tão somente à origem extralegal dos acordos alemães[16]. Entende-se, portanto, que a confissão fora uma importação malfeita do plea bargain estadunidense.

Para sanar essa incompatibilidade, TRF-4 equiparou o acordo de não persecução penal à colaboração premiada, afirmando ser também um negócio jurídico firmado entre as partes, das quais haveria liberalidade de aceite ou renúncia. Ocorre, entretanto, que a lei que trata dos acordos de não persecução penal prevê, ao contrário da lei que trata das colaborações premiadas, a participação ativa do Juiz, devendo ele, além de verificar a voluntariedade e legalidade, avaliar se existem condições inadequadas ou abusivas no acordo (art. 28-A, § 5º, CPP).

Ademais, o controle de legalidade, também existente para as colaborações premiadas, aqui vai além: somente poderá haver acordo de não persecução penal quando não for caso de arquivamento. Em outras palavras, quando for caso de denúncia e, portanto, estiverem presentes os indícios de autoria e materialidade de um crime. E o magistrado deve fazer esse detido controle sobre a legalidade, adequação e abusividade do acordo de maneira muito mais próxima do instituto alemão, e menos do estadunidense. Concordando com isso, o STF, em voto proferido pelo Ministro Luiz Fux, na ADI nº 6.299, já afirmou que o juiz poderá não homologar o acordo ou devolver os autos para que o parquet quando verificar a necessidade de complementar as investigações.[17]

            Vale destacar que a interpretação para a transação penal é idêntica. Nesse instituto, que também possui previsão de que somente será oferecido quando não for caso de arquivamento, o FONAJE editou o enunciado nº 73, o qual afirma que o juiz, para homologar, deve verificar a existência de justa causa. Há, portanto, um dever de atuação do Juiz em avaliar se o fato possui a materialidade e indícios de autoria suficientes. Não é ele, como na colaboração, mero homologador.  

Há, também, problemas materiais em se exigir o acordo. Na situação em que dois acusados inocentes são investigados, mas um deles já aceitou a transação penal, o que o impede objetivamente de realizar o acordo, como ficaria a situação do outro que poderia aceitar? Ele poderia confessar crime que não cometeu, como estratégia de defesa segundo entendeu o TRF-4, mas como ficaria para a defesa do coinvestigado? Seria uma espécie de colaboração premiada. Ou pior, uma falsa colaboração premiada. O descompasso é evidente.

O que parece, portanto, é que exigir a confissão dá ao Direito Penal, clandestinamente, uma nova ferramenta não somente para evitar uma sobrecarga de processos criminais, mas também evitar a necessidade de investigação de crimes. Entretanto, o acordo de não persecução penal não pode ser utilizado para eximir a responsabilidade da polícia de investigar, do Ministério Público de fazer uma profunda análise das provas que estão nessa investigação, e do Juiz em, subsidiariamente, fazer detido controle sobre a legalidade, dos quais igualmente cumpre verificar a existência dos indícios de autoria e materialidade, adequação e abusividade do acordo.


[1] Sócio fundador da Beno Brandão Advogados Associados. Advogado Criminalista.

[2] Mestrando em Direito Empresarial. Especialista em Direito Penal Econômico. Advogado Criminalista na Beno Brandão Advogados Associados.

[3] Correição Parcial nº 5009312-62.2020.4.04.0000, TRF4, 8ª Turma, Rel. Des. Federal João Pedro Gebran Neto.

[4] US SUPREME COURT. Brady v. United States, 397 U.S. 742 (1970).

[5] CHEESMAN, Samantha Joy. Comparative Perspectives on Plea Bargaining in Germany and the USA. 2014.

[6]DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa A. The innocent defendant’s dilemma: An innovative empirical study of plea bargaining’s innocence problem. J. Crim. L. & Criminology, 2013.

[7] DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa A. Ob. Cit.

[8] FINKELSTEIN, Michael O.; LEVIN, Bruce. Why plea bargains are a bad deal for some. Significance, 2020.

[9] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP. CONJUR, 2017.

[10] §257c e § 244 do StPO.

[11] JACKSON, John D.; LANGER, Máximo (Ed.). Crime, Procedure and Evidence in a Comparative and International Context: Essays in Honour of Professor Mirjan Damaska. Bloomsbury Publishing, 2008.

[12] JACKSON, John D.; LANGER, Máximo (Ed.). Ob. Cit.

[13] WEIGEND, Thomas; TURNER, Jenia Iontcheva. Ob. Cit.

[14] Eis que nosso instituto prevê a redução da pena de um a dois terços.

[15] FRANCO, José Henrique Kaster. O papel do Juiz no acordo de não persecução penal em Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. p. 287-301.

[16] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Ob. Cit.

[17] STF. ADI nº 6.299/DF. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. em 22 jan. 2020.


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