Por: Lucas Rosa Zyngier

Na seara dos delitos omissivos impróprios, a doutrina discute sobre a possibilidade da configuração da posição de garante do compliance officer, o qual desempenha importante função nas grandes corporações. Diante desta problemática, surgem diversos questionamentos, dentre os quais podemos destacar o seguinte: “No caso de não haver a delegação de funções executivas ao oficial de compliance, poderá ele ocupar uma posição de garantidor?”.

Sabe-se que as funções destes profissionais não possuem contornos homogêneos, isto é, elas serão distintas conforme as peculiaridades de cada empresa1. Apesar desta heterogeneidade, mostra-se possível citar tarefas que costumam ficar ao encargo dos sujeitos em questão (funciones estândar), como: promoção de normas de conduta; análise prévia dos riscos penais envolvidos nos procedimentos da empresa; confecção de canais de denúncia, entre outras. Geralmente, as incumbências destes indivíduos se referem ao desenvolvimento e à manutenção da vigência de políticas e procedimentos internos ordenados com o fim de minorar os riscos de a empresa e seus funcionários praticarem ilícitos na persecução dos objetivos sociais empresariais2.

Relativamente à posição do encarregado de cumprimento no âmbito corporativo, frisa-se que ele ocupa um espaço imediatamente subordinado aos órgãos de direção, similar ao de um alto gerente. Além disso, ele possui independência em termos organizativos, econômicos e materiais, ainda que careça de faculdades executivas3.

Costuma-se afirmar, inclusive, que este profissional será eficaz quando a sua atuação se der com suficiente autonomia em relação à companhia, mas tendo, simultaneamente, apoio total dos recursos desta4. Em suma, o setor de compliance se constitui, apenas, em mais um órgão auxiliar5.

No que toca aos deveres do compliance officer, impende frisar que estes lhe são atribuídos por delegação. Brevemente: os deveres de garante pertencem, originariamente, ao empresário, uma vez que sua liberdade empresarial é acompanhada, necessariamente, pelo dever de cuidar para que a pessoa jurídica não lesione bens jurídicos de terceiros6.

Quanto à referida delegação de funções, pertinente demonstrar como ela se concretiza. Inicialmente, o empreendedor delega a coordenação e a execução de tarefas a determinadas pessoas (gerentes financeiros, de produção, de qualidade etc.). Deste modo, o seu dever de garante, referente às instalações e às atividades de risco, sofre uma mutação, transformando-se em um dever de supervisão e vigilância da atividade dos funcionários citados7.

Em um segundo momento, o empresário, atualmente titular do dever de supervisão e vigilância, realiza nova delegação, sendo que, desta vez, em face do compliance officer. Destarte, a obrigação do proprietário do empreendimento deixa de ser a de supervisão ativa (desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais), passando a ser de supervisão passiva (comunicar-se com quem executa materialmente os encargos de vigilância e controle, assim como tomar providências quando restar configurada determinada situação de perigo a bens jurídicos)8. Depreende-se, portanto, que o oficial de compliance passa a ostentar o dever de supervisão ativa.

Imprescindível realçar que o indivíduo analisado foi contemplado com a responsabilidade de desenvolver atividades de vigilância e controle sobre quem executa

as tarefas empresariais. Vale dizer, portanto, que não houve a delegação de funções executivas. Eis aqui o ponto nevrálgico para a análise da suposta posição de garantidor aqui debatida.

Nos delitos omissivos impróprios, o ponto de partida para a realização do juízo de equivalência entre ação e omissão diz respeito à possibilidade de agir para evitar o resultado. Tal exigência se deve ao fato de que seria ilógico exigir-se uma obrigação de agir quando não há capacidade de atuar conforme o dever objetivo de cuidado.

No caso do oficial de cumplimiento, frisa-se que ele não define as decisões a serem tomadas pela companhia, uma vez que a sua funcionalidade precípua é a de alertar sobre os riscos evidentes e inerentes às decisões9. De modo a fomentar ainda mais o debate, destaca-se que, na maioria das estruturas administrativas, o profissional ora analisado não possui conhecimento das decisões tomadas pela alta administração e, muito menos, poder de veto para barrar tais condutas10.

Diante disso, questiona-se: “como cogitar a imputação de um resultado delitivo, a título de omissão imprópria, a um sujeito que não teria meios de evitar o resultado?”. Como resposta, poder-se-ia dizer que, para que se configure o domínio para fins de evitação do resultado, o indivíduo deverá ter capacidade de administração e decisão dentro da empresa ou, ao menos, poder de veto/suspensão das condutas dos administradores. Sem que haja a delegação de tais poderes ao compliance officer, torna- se significativamente questionável a configuração da sua posição de garante, especialmente pelo fato de que o “poder agir” é pressuposto lógico e inarredável do “dever agir”.

 


Lucas Rosa Zyngier: Advogado. Graduado em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8964930798072864


1 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 168.

2 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 168.

3 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

4 McCONNELL, Ryan; MARTIN, Jay; SIMON, Charlotte. Plan Now or Pay Later: The Role of Compliance in Criminal Cases. Houston Journal of International Law. Houston: University of Houston Law Center, v. 33, n. 03, 2011, p. 55.

5 PLANAS, Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321.

6 PLANAS, op cit., p. 322.

7 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. La responsabilidad penal individual en los delitos de empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al (org.). Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Dykinson, 2018. p. 124.

8 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo (org.); MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 175.

9 COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Compliance e o julgamento da APn

  1. 470. Revista Brasileira de Ciências São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 22, 2014. p. 223.

10 COSTA; ARAÚJO, op cit., p. 223-226.


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