Por Bibiana Fontella[1]
Tradicionalmente a doutrina nacional entendeu aplicável ao tipo penal de corrupção passiva (art. 317, CP[2]) a exigência do ato de ofício prevista no crime de corrupção ativa (art. 333, CP[3]). Assim, se a vantagem recebida indevidamente pelo funcionário público não estivesse vinculada a um ato de ofício, não haveria nem corrupção ativa nem corrupção passiva. Justamente neste sentido foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307, que rejeitou a denúncia em face de Fernando Collor de Mello, haja vista a ausência da vinculação de ato de ofício à vantagem indevida no crime de corrupção passiva.[4]
Em 2003 os crimes de corrupção – ativa e passiva – sofreram alteração legislativa, pela Lei n. 10.763, com reflexos tão-somente na sanção penal. A descrição típica permaneceu inalterada.
Contudo, o entendimento jurisprudencial começou a ser alterado na Ação Penal 470 (Caso Mensalão), sendo, ainda, mantida a exigência de vinculação a ato de ofício, mas flexibilizou a determinação no momento das ações de solicitar e receber.[5]
A legislação brasileira conta apenas com dois tipos de corrupção – passiva e ativa – sem qualquer especificação quanto a função exercida pelo funcionário público, podendo ser um guarda de trânsito ou parlamentar. Neste ponto residem os problemas de política criminal, se o ato de ofício for exigível no momento do recebimento ou da solicitação da vantagem indevida, seriam punidos apenas os ilícitos de menor gravidade e aquela corrupção considerada sistêmica permaneceria ilesa.[6]
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em nova interpretação do tipo de corrupção passiva, entendeu pela desnecessidade da subsunção entre o específico ato de ofício e as vantagens indevidas, bastando apenas a subsunção causal entre as atribuições do funcionário público e as vantagens indevida, passando a atuar em prol de interesse particular, desvirtuando a função pública.[7]
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.745.410[8], de relatoria da Ministra Laurita Vaz, interpretou o termo “em razão da função” de forma inédita, alargando ainda mais a esfera de abrangência do tipo de corrupção passiva (art. 317, CP). Assim, entendeu-se que a expressão em razão da função não é equiparável ao ato de ofício da corrupção ativa (art. 333, CP), sendo admitida a condenação ainda que as ações ou omissões indevidas não estejam dentro das atribuições formais do funcionário público. [9]
Concretamente, dois dos recorrentes teriam sido denunciados pelo crime de corrupção passiva – dentro outros – em razão de terem, aceitado promessa de vantagem indevida, oferecida por terceiro, consistente no valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Assim, caberia aos aeroportuários esperar o desembarque do estrangeiro em vôo que chegava ao Brasil e no corredor de desembarque recebê-lo e escolta-lo até as áreas restritas do aeroporto. Além disso, estaria dentro da promessa de vantagem indevida o acompanhamento do estrangeiro até que fosse possível a passagem furtiva pelo serviço de imigração.
O Juízo sentenciante entendeu pela atipicidade do crime de corrupção passiva, haja vista a ausência de competência dos funcionários públicos para permitir a entrada de estrangeiro em território brasileiro. Desta forma, não haveria nexo causal entre a promessa de vantagem indevida e o ato praticado. Assim, entendeu-se na sentença pela desclassificação para o crime de introdução irregular de estrangeiro em território nacional (art. 125, XII, da Lei n. 6.815/1980).
Ministro Sebastião Reis Júnior, relator originário do RESP 1.745.410, fez diferenciação entre os tipos de corrupção ativa e corrupção passiva. Sendo que na forma ativa há a exigência legal da existência de determinado ato de ofício e na forma passiva há apenas a descrição típica da solicitação, aceitação ou recebimento de promessa indevida em razão da função ocupada pelo funcionário público.
Embora o tipo de corrupção passiva não faça menção ao ato de ofício, há a expressão “em razão dela”, representando o necessário vínculo entre a vantagem indevida e a função exercida pelo agente. Neste sentido, para Sebastião Reis Júnior é indispensável a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente público e a realização de ato funcional de sua competência. Para corroborar colacionou-se diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça[10] no sentido a necessidade do nexo causal entre as competências funcionais e a conduta do agente público no ato de corrupção passiva.
Entretanto, a Ministra Laurita Vaz abriu divergência parcial ao voto do Ministro Relator, quanto aos requisitos da configuração do crime de corrupção passiva.
O entendimento da Ministra Relatora foi no sentido de que a opção legislativa teria sido direcionada para ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, se comparada ao tipo de corrupção ativa. Desta forma, a proteção ao bem jurídico – probidade da administração pública[11] – seria potencializada.
Neste sentido, proferiu voto pelo parcial provimento do recurso especial a fim de reconhecer a prática do crime de corrupção passiva.
O legislador brasileiro optou por dois tipos penais diversos de corrupção, com contornos diferentes. Inegavelmente a modalidade ativa possui a restrição da vinculação do ato de ofício. Por algum tempo o entendimento doutrinário e jurisprudencial foi no sentimento de aplicação extensiva do requisito do ato de ofício à corrupção passiva. Contudo, tal entendimento foi sendo transformado jurisprudencialmente, chegando ao passo de completa desnecessidade de subsunção da vantagem indevida ao ato de ofício. Entretanto, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça passou de entender pela desnecessidade de vinculação causal da vantagem indevida às atribuições do funcionário público.
[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Penal. Advogada Criminal. Secretária-geral do IBDPE.
[2] Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa
[3] Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
[4] QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (org). Crime e Política – Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 53 – 76.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Neste sentido: STF, AP 695, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/09/2016.STF, Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018.
[8] STJ, RESP 1745410, Relatora para Acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma. DJE 23 de outubro de 2018.
[9] Neste sentido: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; GRECO, Luis. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018. Acessado em 10 de setembro de 2020.
[10] STJ, HC 135.142/MS, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJE 04/10/2010. STJ, RESP 440.106/RJ, Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 09/10/2006. STJ, HC 13.487/RJ, Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, DJ 27/05/2002.
[11] Definição atribuída por Laurita Vaz.
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