Por Bibiana Fontella[1]
A doutrina e a jurisprudência admitem o reconhecimento da excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa no crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, CP[i]), quando demonstrado que as dificuldades financeiras foram de tal monta que impossibilitou o recolhimento do tributo.[ii]
O tema acaba por não ser objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça em razão de ser matéria com necessidade de reexame fático-probatório, isto sob o velho argumento de óbice na Súmula n. 7 do STJ, de modo que, os recursos especiais não são, sequer, admitidos.
Para delimitar a aplicabilidade da referida excludente de culpabilidade os Tribunais Regionais Federais afirmam a necessidade de excepcionalidade da situação financeira da empresa, não sendo justificável qualquer dificuldade de pagamento, mas a real impossibilidade de recolhimento dos tributos. Isto deve ser demonstrado pela defesa técnica (nos termos do artigo 156 do Código de Processo Penal), em especial pela prova documental[iii], sendo admitido em alguns casos a prova testemunhal desde que corroboradas por outros elementos de prova. [iv]
Além da necessidade probatória, a jurisprudência convencionou quais critérios seriam utilizados para fins de reconhecimento da excludente de culpabilidade. Sendo uma situação específica vivenciada pela sociedade empresária é imprescindível a análise do caso concreto, portanto, não seria uma argumentação genérica da crise econômica em decorrência do COVID-19 que seria suficiente para a exclusão do crime. É necessário mais: demonstrar que, no caso de recolhimento da contribuição previdenciária, estariam comprometidos outros pagamentos imprescindíveis à sobrevivência da própria empresa.[v]
Apenas a título de exemplo, em julgamento no TRF2, entendeu-se pelo reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, pois se o administrador realizasse o recolhimento da contribuição previdenciária comprometeria verbas imprescindíveis à alimentação do agente e seus funcionários.[vi]
Da leitura do entendimento jurisprudencial dos Tribunais Regionais Federais, notadamente do TRF4, não são suficientes, para demonstrar a impossibilidade de recolhimento da contribuição, a existência de execuções fiscais, notas promissórias, débitos previdenciários, avisos de cobranças e parcelamentos fiscais, os quais são considerados comuns no meio empresarial.[vii]
Assim, é necessária a demonstração de crise econômica excepcional que impediria ao empresário agir de outro modo, no entendimento do TRF4, a comprovação da redução de quadro de funcionários, a necessidade empréstimos e até mesmo falência de outras empresas do grupo empresarial.[viii] Além disso, no caso concreto julgado pelo TRF4, testemunha arrolada pela defesa afirmou que a empresa não teria condições de honrar com todos os seus compromissos, tendo priorizado o pagamento dos funcionários, energia elétrica e fornecedores para evitar o enceramento das atividades. [ix]
Desde o final do ano passado, vivencia-se no Mundo uma pandemia, a qual chegou ao Brasil no começo do corrente ano, conta-se com milhões de pessoas ao redor do mundo infectada pelo novo coronavírus. O método mais eficaz para conter o contágio é o isolamento social, haja vista que até o momento não há vacinas e medicamento eficazes para a população. Com isto, as medidas tomadas pelos governos de vários países foi fechamento do comércio, permanecendo abertas apenas as chamadas atividades essenciais.
No Brasil a orientação do Ministério da Saúde não foi diferente. Assim, ficou a cargo dos Governadores dos Estados e Prefeitos Municipais, sendo determinado inicialmente a chamada quarentena, com fechamento de comércio local, shoppings, restaurantes (em especial os self-service), teatros, cinemas, escolas, faculdades, bem como o cancelamento de qualquer atividade que gere aglomeração de pessoas. No Judiciário os prazos foram suspensos por aproximadamente 30 dias e os funcionários, juízes e promotores começaram a operar por teletrabalho, sendo prorrogado até o momento. As audiências e sessões de julgamento também foram suspensas e retornaram pelo meio virtual, a partir de plataformas on-line.
Várias atividades profissionais, quando é possível, operam por home office. Não restam dúvidas que, inevitavelmente, teremos drásticas consequências de ordem econômica. Pois, além do fechamento do comércio, o recado que ecoa em todos os meios de comunicação é: FIQUE EM CASA. Com isto, a frequência de compras por parte da população é significativamente menor. Já é efeito disto o fato de que há algumas empresas que dependem exclusivamente da movimentação de pessoas nas ruas que podem ter tido queda de faturamento de 90%, como é o caso de cafés e confeitarias. Apenas a título de exemplo, cita-se o encerramento das atividades do PolloShop, shopping localizado em Curitiba há 25 anos, que com o surto da COVID teve a crise completamente estabelecida.[x]
O Governo Federal tomou algumas medidas econômicas – bastante contidas – de auxílio às empresas e à população, as quais não serão suficientes para o grande desastre econômica que está por assolar o Brasil pelos próximos anos.
Neste cenário, como já aconteceu em outras situações de crise econômica, muitos empresários estarão em situação de ausência de receita para cumprir todos os seus compromissos essenciais, podendo incorrer, em casos de extrema gravidade, no crime previsto no artigo 168-A do Código Penal.
Com isto, inevitavelmente, a discussão e os parâmetros para inexigibilidade de conduta diversas no âmbito do crime de apropriação indébita previdenciária serão objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, devendo a presente situação econômica e social ser sopesada diante da singular crise vivenciada no Brasil e no Mundo.
[1] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais, Advogada Criminal e Professora de Direito Penal. Secretária-Geral do IBDPE.
[i] Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
[ii] TRF4, Apelação Criminal n. 5010322-95.2017.4.04.7001/PR, Relator Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, julgamento em 09/10/2019.
[iii] Neste sentido: TRF3, Apelação Criminal n. 0007761-66.2008.4.03.6181, Relator Desembargador Federal Nino Toldo, julgamento em 30/01/2020.
[iv] Neste sentido: TRF2, Apelação Criminal n. 0000593-06.2013.4.02.5004, Relator Juiz Federal Convocado Gustavo Arruda Macedo, julgamento em 11/09/2019.
[v] TRF2, Apelação Criminal n. 0000703-81.2004.4.02.5513, Desembargador Federal Abel Gomes, julgamento em 04/12/2019.
[vi] Idem.
[vii] TRF4, Apelação Criminal n. 5002010-97.2017.4.04.7012/PR, Relator Desembargador Federal Luiz Canalli, julgamento em 17/03/2020.
[viii] TRF4, Apelação Criminal n. 5010322-95.2017.4.04.7001/PR, Relator Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, julgamento em 09/10/2019.
[ix] Idem.
[x]https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/04/20/polloshop-encerra-atividades-comerciais-apos-crise-financeira-em-curitiba.ghtml
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