Por: Monique Pena Kelles[1]
A aproximação entre a sanção do Direito Administrativo Sancionador (DAS) e do Direito Penal (DP) vêm gerando debates em torno dos limites punitivos a cada área do direito. O diagnóstico do presente texto é que há um problema em se imiscuir áreas tão diversas como se fossem um só assunto, especialmente quando a direção que se observa é para o uso excessivo da função repressiva das sanções.
Iniciando o debate, partimos da ideia de que o direito é um só, portanto, também é a aplicação da sanção. Sobre isso, esclarece Nelson Hungria:
A única solução lógica está em fixar-se a premissa de que ilicitude e penas administrativas e ilicitude e penas criminas são substancialmente análogas, não passando a separação entre o poder penal administrativo e o poder penal comum de um critério meramente oportunístico ou político.
(…) A separação entre um e outro atende a critério de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço (p. 24 – 30, 1945)
Hungria nos ensina que, escolher um ou outro ramo do direito para aplicação de uma sanção, parte, apenas e tão somente de uma escolha de conveniência e oportunidade, e não de uma obediência estrita à esfera administrativa ou penal.
Partimos aqui, da premissa de que uma das primordiais funções do direito penal (dentre tantas outras) é a proteção de bens jurídicos relevantes para o homem em sociedade, o exemplo mais palpável disso, é a proteção vida, que é, inegavelmente, um valor em comum a todos os indivíduos.
Outro ponto que merece destaque em diferença na aplicação de sanções entre as esferas, é que, no direito administrativo, por ser uma esfera ligada diretamente às atividades do Estado, é natural e compreensível que, à medida que o Estado se agiganta, deve também o direito administrativo seguir o mesmo curso.
Sobre isso, temos, ao menos desde a década de 90, um fenômeno conhecido como “agencificação do Estado”[2], entendido como um dos efeitos do crescimento do Estado, que vem se notabilizando pelo aumento de agencias autônomas e reguladoras, que, por sua vez, competem com a autonomia do Estado.
O mesmo não vale ao direito penal. Em verdade, é o contrário que se faz presente no contexto do direito penal. Ou seja, o DP não é instrumento político, e não é dado ao Estado fazer uso desse severo campo de repressão a partir do agigantamento do Estado.
Nunca é demais mencionar que o direito penal é regido por princípios básicos com vistas ao limite do poder punitivo estatal. Trata-se dos princípios da presunção de inocência e intervenção mínima, ou, ultima ratio. Claro que os princípios são vários e todos tem sua importância no ordenamento jurídico. Ocorre que esses dois princípios se sobressaem em relação a outros quando se discute a relação do DAS e DP.
Isso porque no DAS, esses princípios, por mais que também aplicados, não tem a mesma carga valorativa que no DP. Afinal, não se ocupam de privar de liberdade nenhum indivíduo, nem poderiam, mesmo que haja previsão de limitação de direito também graves, como a perda do cargo/função na Administração Pública.
O conceito de bem jurídico, conhecido em ambas as áreas, ocupa um lugar diverso em cada uma. No âmbito do DP, o bem jurídico é central no debate da função do DP numa sociedade. Nos arriscamos a dizer que sua importância se faz mais premente no DP do que no DAS, afinal, é no primeiro que inúmeros teóricos se debruçaram a delimitar o que é um bem jurídico e como protegê-lo adequadamente através do uso do direito penal. Ao passo que, no DAS, em linhas gerais, o bem jurídico é tido como um valor relevante ao interesse público, merecedor de tutela pela Administração Pública.
Entendemos que uma boa conceituação do bem jurídico é de especial importância para o presente debate. É através de um bem jurídico bem delimitado e de incontestável relevância para o homem, que o legislador, através do direito penal, e orientado pelos princípios que o rege, bem como pela Constituição, elabora normas, os tipos penais, que demarcam ações e omissões que, quando praticadas, geram ao agente uma sanção.
Por isso, nos filiamos a conceito de bem jurídico pessoal, elaborada e defendida pelo jurista alemão Winfried Hassemer, o qual estabelece que o bem jurídico no âmbito penal só é válido se for visivelmente direcionado à proteção do homem individualmente concebido, ou, mesmo que coletivamente, ainda assim, deve se afunilar para o homem em sua dignidade plena.
O mesmo grau de conceituação já não se verifica no ramo do DAS. Toda, ou quase toda direção das funções do direito administrativo estão envoltas ao interesse público, algo bem diverso da lógica da aplicação do direito penal, na medida em que, no DP, as garantias fundamentais são evidenciadas em todo ordenamento penal, inexistindo um “in dubio pro societatis”, ao contrário do que afirmam vozes esparsas e pouco informadas usando essa expressão no DP.
É importante frisar que a solução de conflitos penais por meio de acordos não é a solução primeva no processo penal, vez que escapa da lógica de garantias individuais. Caso diverso é o que ocorre na esfera administrativa, a qual tem como uma das funções, o controle da administração pública, mas não tem na sanção seu principal instrumento de controle. Por mais que o termo “sancionador” sugestione o uso de penas e medidas repressivas, mais do que o direito penal, o direito administrativo sancionador tem na resolução pacífica de conflitos um grande aliado para o aprimoramento da máquina pública.
Outra marca distintiva do âmbito penal é justamente a natureza dos acordos firmados em cada esfera. Ao praticar uma infração administrativa, o administrado, mesmo que conte com as mesmas garantias individuais previstas para o direito penal, está-se falando em uma condição de maior igualdade entre as partes acordantes. Isso se dá pela função que desempenha o administrado, afinal, o indivíduo é útil à máquina pública, e sua punição desagua também na eficácia da administração.
Aliás, o DAS não tem como epicentro a aplicação de sanção, afinal, a punição é cara e gera pouco ou nenhum incentivo ao administrado[3], exigindo assim, muito mais dispêndio de energia da administração pública do que a correção das possíveis falhas do sistema com programas que investem na prevenção de infrações pelos funcionários da administração.
Vigora em nosso ordenamento a regra da “independência entre as instâncias”, a qual determina que cada esfera do Direito é independente em sua atuação, incluído no que concerne a elaboração de ilícitos e aplicação de sanção.
Disso decorrem inúmeras consequências, da qual, a mais importante para o presente debate é a frequente incorrência no chamado bis in idem, ou seja, a dupla (ou múltipla) punição ao mesmo sujeito pelo mesmo fato.
Trata-se, portanto, não de um efeito secundário ou sem importância, e sim, de um efeito que gera rusgas no próprio Estado Democrático de Direito, vez que a possibilidade de punição, ou mesmo persecução sobre um ilícito em diversas esferas jurídicas vai na contramão da limitação ao poder punitivo.
Nas palavras de LOBO DA COSTA, “causa estranheza permitir que o Estado sancione um mesmo fato incontáveis vezes” [4]. Concordamos com a estranheza da autora bem como com sua proposta de solução da problemática, a qual passa por o princípio da proporcionalidade em destaque, vez que
(… ) impõe que o Estado, por meio de seus subprincípios, indica que se deve adotar a solução mais idônea à finalidade estritamente necessária a seu atingimento e cujos meios não se revelem desproporcionais ao atingimento de seu fim. (2013, p. 214)
O que notamos é que o movimento em direção à punição, por muito tempo (e ainda hoje), fez parte do DP, mas, agora, assume também protagonismo em outras esferas, como no DAS. Para estudiosos do DP, sabemos que a punição por si só não é mecanismo capaz de melhorar o sistema, nem mesmo a sociedade em si.
Sabemos também, que, as ditas funções da pena, como a preventiva e a retributiva, não tem aderência na realidade. Ou seja, acreditar que a penalização é instrumento de contenção da prática de ilícito, é acreditar que quanto mais severa a pena, menos delito haverá, cenário esse, sabidamente inexistente.
É nesse sentido que defendemos que a ideia de “independência entre as instancias seja revista para um sentido mitigado daquele que é aplicado hoje em nosso ordenamento. [5]
Com isso, é dever dos estudiosos estarem atentos para as causas e consequências dessas novas investidas em ambos os ramos, a fim de prevenir possíveis danos ou rusgas ao ordenamento jurídico como um todo.
Referências
COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Administrativo sancionador e direito penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. Luiz Mauricio Souza e Laerte Marzagão Júnior (coord). In: Direito Administrativo Sancionador. São Paulo. Quartier Latin, 2014.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª edição. Forense. Rio de Janeiro. 2020
HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. 1945
MENDES, Gilmar; BUONICORE, Bruno Tadeu. A vedação do ne bis in idem na relação entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador e o princípio da Independência mitigada. Boletim IBCCRIM ano 29 março 2021
OSÓRIO. Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 7ª ed. São Paulo. Thomas Reuters Brasil. 2020
[1] Advogada e mestranda em direito pela Pontifícia Universidade Católica
[2] Termo cunhado pela professora Maria Sylvia Di Pietro. In: DI PIETRO. Inovações do Direito Administrativo Brasileiro. Revista Opinião Juridica. p.202- 222, ano 5. 2005. O termo dá conta de que há um movimento em curso no país que envolve uma crescente onda de criação de agencias reguladoras, que acabam por se incluir nas atividades típicas do Estado, como o serviço público; polícia administrativa; fomento e intervenção.
[3] Sobre isso: VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador. Um olhar pragmático a partir das contribuições da análise econômica do direito. Revista de Direito Adm. Rio de Janeiro. V. 278, p. 107-140. Jan- abril, 2019
[4] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Administrativo sancionador e direito penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. Luiz Mauricio Souza e Laerte Marzagão Júnior (coord). In: Direito Administrativo Sancionador. São Paulo. Quartier Latin, 2014. P. 113 – 114
[5] Sobre isso, já se pronunciou o Min. Gilmar Mendes da Suprema Corte, inclusive com decisão proferida na Reclamação 41.557/SP. Explicação In: MENDES, Gilmar e BUONICORE, Bruno. A vedação do bis in idem na relação entre direito penal e direito administrativo sancionador e o princípio da independência entre as instancias. Boletim IBCCRIM. Março 2021 p. 4-5