Por: Nicole Trauczynski[1] eWanessa Assunção Ramos[2]

 

A partir da Constituição da República de 1988, o processo penal, cujo diploma principal é datado de 1941, deveria ter passado por uma reformulação ou ao menos por uma interpretação sistemática que fizesse efetivas as previsões ali previstas. Contudo, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, a jurisprudência ainda apresenta dificuldades em integrar às persecuções penais as garantias que asseguram ao acusado um Processo Penal Constitucional.

Dentre diversos problemas que a doutrina tem se debruçado a tentar apresentar soluções, encontra-se a negativa de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa em sede de resposta à acusação, a partir de interpretação equivocada do artigo 396-A do Código de Processo Penal. É nesse sentido que o presente artigo visa explicitar as previsões em tratados internacionais, os princípios constitucionais e demais motivos que evidenciam diferentes violações a partir da referida aplicação legal.

  1. O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.

O direito de ouvir testemunhas é pautado em tratados internacionais e em previsões constitucionais. É nesse exato sentido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI[3]), Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (art. 6, 3, ‘b’ e ‘d’[4]) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, ‘c’ e ‘f’[5]) dispõem. Ademais, a Constituição da República, especialmente em seu artigo 5º, caput e incisos LIV e LV[6], por meio dos princípios da igualdade, devido processo legal e contraditório e ampla defesa, também integram as previsões que tratam sobre a matéria.

Da mesma sorte, a doutrina é bastante enfática e clara ao afirmar que a o direito integral de defesa do acusado é parte indissolúvel do Processo Penal Constitucional. BADARÓ[7] leciona acerca da necessidade de um contraditório efetivo e pleno, com a real participação das partes (acusado e órgão acusador), concluindo que “é o que se denominou contraditório efetivo e equilibrado”. De igual forma, leciona MALAN, ensinando:

Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de inadmissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença[8].

Nesta toada, qualquer interpretação acerca do Código de Processo Penal, especialmente acerca do artigo 396-A do Código de Processo Penal, deve considerar as previsões amealhadas em tratados internacionais e na Constituição da República. Contudo, não é nesse sentido que a jurisprudência do Tribunal Federal Regional da 4ª Região encontra-se decidindo, conforme se pode depreender do recorte metodológico de pesquisa adotado neste estudo.

  1. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 396-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

O artigo 396-A do Código de Processo Penal prevê o conteúdo da resposta à acusação e dispõe sobre o depoimento testemunhal que nessa etapa é possível “arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.

Da leitura básica do artigo, evidencia-se que é necessário arrolar as testemunhas, isto é, indicar a necessidade de ouvi-las sobre aqueles fatos, qualifica-las, ou seja, apresentar os dados que são necessários para expedição do mandado de intimação[9], e requerer a intimação quando for necessário. Também é possível constatar que não é obrigatório apresentar nenhuma justificativa (eis que não há obrigação legal da defesa técnica de justificar a necessidade de uma prova que requereu tempestivamente) para requerer a intimação, basta realizar o pedido de maneira expressa na peça de resposta à acusação. O Código de Processo Penal faculta (não impõe um ônus) à defesa em requerer ou não a intimação das testemunhas arroladas. É nesse sentido que leciona LOPES JR.: “testemunha arrolada por qualquer das partes deverá ser intimada, exceto se expressamente for dispensada a intimação”[10].  Ora, não cabe ao d. juízo, nesta etapa, valorar o referido pedido, devendo apenas operacionaliza-lo.

Importante ainda rememorar que o dispositivo analisado entrou em vigor no ano de 2008, quando ainda estava vigente o Código de Processo Civil de 1973, que previa a intimação judicial das testemunhas, independente de frustração da convocação do advogado da parte. Desta forma, os princípios constitucionais que pautam o Processo Penal Democrático estariam preservados.

Contudo, em que pese toda a argumentação acima dispendida, não são nestes moldes que está ocorrendo a interpretação do dispositivo legal pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, o qual, reiteradamente, tem se manifestado que as testemunhas arroladas pela defesa devem comparecer à audiência independentemente de intimação, observando-se o princípio da celeridade processual, ou que a necessidade de intimação deve ser justificada e analisada a critério do juízo competente[11].

As violações dos tratados internacionais, dispositivos constitucionais e previsão infraconstitucionais são mais latentes quando mesmo após a justificativa da necessidade de intimação o juízo competente não considera crível e indefere a intimação judicial.

É de se considerar que os princípios da ampla defesa e contraditório podem ser violados em caso de não comparecimento das testemunhas (isto porque a defesa não teria outra oportunidade de inquiri-la), tendo em vista que a prova testemunhal advinda de seus depoimentos pode ser imprescindível. Ademais, não há como sobrepor economicidade, celeridade e eficiência da administração da Justiça aos princípios constitucionais que asseguram a defesa do acusado, violando-se o princípio constitucional do devido processo legal. Ainda, os particulares não possuem meios coercitivos eficazes que obrigam as testemunhas a comparecerem perante o juízo. Destaca-se, também, o princípio da paridade de armas, que deve ser preconizado, considerando que o órgão acusador pode se utilizar a intimação judicial das testemunhas.

Por fim, destaca-se que não é possível a utilização de dispositivos do Código de Processo Civil para fundamentação da decisão que indefere o pedido de intimação judicial das testemunhas arroladas pela defesa, eis que o diploma processual civil somente pode ser aplicado subsidiariamente ao Código de Processo Penal e estas devem, ainda, serem analisadas sob o prisma constitucional, não podendo limitar o direito de defesa.

  1. CONCLUSÕES

O ato de arrolar testemunhas é visto como um direito do acusado[12], especialmente porque visa combater os supostos indícios de conduta delitiva que foram apontados pelo órgão acusador. Neste sentido, qualquer tentativa de supressão deste direito viola tratados internacionais, princípios constitucionais e previsões infraconstitucionais, não podendo o entendimento jurisprudencial, por mais sábio que seja e o é, limitar um direito legal amparado por outras normas de maior hierarquia, tampouco criar ônus ao exercício da ampla defesa e do contraditório representados pela advocacia criminal.

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 29 ago 2021.

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm, acesso em 29 ago 2021.

LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019

MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309

BRASIL. Decreto nº 678. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm, acesso em 29 ago 2021.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos, acesso em 29 ago 2021.

OAS. Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4, acesso em 29 ago 2021.

PORTO ALEGRE. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 5051844-85.2019.4.04.0000.

BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 419.394/CE.

 


[1] Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidad Castilla-La Mancha, Toledo/Espanha. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de pós-graduação em diversas universidades. Coordenadora Regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM/PR) e do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do mesmo instituto. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Organizadora da atualização da obra “Crimes contra o sistema financeiro nacional”, de Manoel Pedro Pimentel. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e das Comissões da Mulher Advogada e de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. E-mail: nicole@tkiadvogados.com.br

[2] Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Vencedora do Prêmio Marcelino Champagnat por melhor desempenho acadêmico no curso de Direito em 2018. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Crimes, Gênero e Diversidade do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. E-mail: wanessa@tkiadvogados.com.br

 


[3] Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

[4] 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:

  1. b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
  2. d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório as

testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;

[5] 2.      Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

  1. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
  2. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

[6]     Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019

[8] MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciência Criminais. Vol. 96/212, p. 279-309

[9] Como por exemplo, nome completo e endereço completo. Vide-se que não é necessário, pela previsão legal, indicar telefone ou e-mail, costume que foi adotado a partir da pandemia do coronavírus considerando a adoção da intimação por meio aplicativos de mensagens instantâneas e e-mail.

[10] LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[11] Como exemplo, TRF4 5051844-85.2019.4.04.0000, SÉTIMA TURMA, Relatora SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, juntado aos autos em 18/02/2020

[12] Nesse sentido, vide-se habeas corpus nº 419.394/CE julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.


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