Hellen Luana de Souza e João Pedro Barione Ayrosa[1]

A melhor definição da função da ciência do direito penal é a que lhe atribui a orientação da produção legislativa e da prática jurídico-penal, de forma a possibilitar maior segurança e controle na concretização da “justiça penal historicamente situada”[1]. Realiza sua tarefa por meio de desenvolvimento de conceitos, fundamentos, limites e metodologia para a produção e realização do direito[2], que, em termos práticos, deve conduzir à resolução de determinado caso concreto enfrentado na jurisprudência. Em síntese, o direito penal é uma ciência normativa propositiva[3], devendo indicar caminhos.

A crítica dentro deste desenho é, por certo, bem vinda. Porém, se o cientista do direito penal se limita a apenas desconstruir, deixando para trás uma terra arrasada, não está cumprindo com a função atribuída à dogmática. Aqui, pode-se apontar o problema das críticas “historicizantes” (direito penal moderno x clássico, p.e.), que acabam se perdendo por difusas, não conseguindo enfrentar, na maior parte das vezes, um problema normativo específico[4].

Portanto, parece-nos mais produtivo uma ciência que enfrenta questões localizadas, atentando para sua função de racionalização, com o desenvolvimento de categorias cujo conteúdo, limites e consequências sejam claros e capazes de solucionar um caso problema localizado[5].  Olhemos agora para o objeto deste pequeno estudo, o direito penal econômico.

Há muitas discussões sobre a autonomia ou não do direito penal econômico[6], sobre sua fundamentação[7], limites etc. O que nos interessa aqui é encontrar a forma como esse ramo específico do direito penal se relaciona com a colocação acima apresentada da função da dogmática penal.

E esse elo é mais simples do que parece: se a função da dogmática do direito penal é a racionalização e indicação de caminhos para a resolução de problemas, a dogmática voltada para o direito penal econômico deve analisar o quadro normativo e jurisprudencial, sistematizar seus conceitos e apresentá-los de forma ordenada e útil para a prática. Com isso, encontram-se caminhos para a redução de complexidade dos problemas do direito penal dito econômico e possibilita-se o estreitamento entre os fundamentos da parte geral (regras e categorias) e os novos problemas oferecidos pelo desenvolvimento econômico-social, sem que se caia no erro da fuga do direito penal, reputando tudo como ilegítimo[8] – ou seja, a crítica que olvida a função da dogmática.

Buscando concretizar o que foi apresentado, vejamos um tópico importante do direito penal econômico e como ele pode ser enfrentado na hora do desenvolvimento dogmático.

O bem jurídico coletivo é apontado reiteradamente como o centro do que protege o direito penal econômico[9]. No entanto, a doutrina não se ocupa muito com sua conceituação, limitando-se a definir bens coletivos como aqueles bens jurídicos pertencentes à coletividade, o que não está errado, mas pouco esclarece[10]. Além disso, sobre eles pairam dois problemas destacados: em primeiro lugar, o bem jurídico coletivo facilita a vida do legislador porque, ao incriminar certa conduta para proteger um bem coletivo ao invés de um individual, consegue justificar uma consumação ou proibição antecipada, autorizando uma intervenção originalmente ilegítima[11]; em segundo, o problema do bem jurídico coletivo aparente, cuja diferença para bens jurídicos de fato coletivos muitas vezes não encontra instrumental claro na produção dogmática.[12]

Entretanto, conforme exposto no início deste estudo, não cabe ao cientista do direito apenas desconstruir e criticar, é preciso apontar caminhos para a resolução dos problemas, de forma a cumprir a função da dogmática. Conjugando isso com a problemática dos bens jurídicos coletivos protegidos pelo direito penal econômico e com a necessidade de “considerar em que casos a atividade económica pode comportar ataques intoleráveis a bens jurídicos relevante”[13], temos que a contribuição da dogmática deve ser a elaboração de critérios objetivos para identificar e diferenciar um bem jurídico coletivo legítimo de um falso bem jurídico coletivo.

Exemplo disso é o já referido estudo de Greco[14] que, após discorrer sobre os argumentos de ataque aos bens jurídicos coletivos, extrai três conclusões intermediárias sob a forma de regras/testes que funcionam como critérios para identificação de bens jurídicos coletivos, são elas: (a) teste de circularidade, pelo qual “o fato de que um dispositivo penal não seria legitimável sem um bem coletivo não fornece qualquer razão para postular um tal bem”[15]; (b) teste da divisibilidade, fundado no “fato de que um número indeterminado de indivíduos tem interesse em um bem não é uma razão para postular um bem coletivo”[16]; (c) teste da não-especificidade, segundo o qual “não é permitido postular um bem coletivo como objeto de proteção de uma determinada norma penal, se a afetação desse bem necessariamente pressupõe a simultânea afetação de um bem individual”[17]. Traçados os critérios, o passo seguinte é submeter a eles os bens jurídicos coletivos a fim de verificar se são de fato coletivos ou falsos, sendo; por exemplo, a saúde pública tutela pelo crime de tóxicos não passa pelo teste da não-especificidade[18].

No mesmo rumo, mas por outra via, está a definição do bem jurídico tutelado pelo direito penal econômico através do diálogo interdisciplinar entre direito penal e economia[19], o que nos parece, assim como os critérios acima descritos, um bom caminho, haja vista que, tanto no aspecto metodológico quanto em relação a sua função – proteção de bens jurídicos -, o direito penal necessita de outros saberes e ciências[20],, cujas categorias podem contribuir para o desenvolvimento do ferramental dogmático, impedindo uma “ultradogmatização” [21], na qual a ciência do direito torna-se mero relicário de teorias e categorias que não são manejáveis.

Disso se extrai que cabe à doutrina, de um lado, travar um diálogo com outros campos do saber que possibilite a aproximação das categorias dogmáticas com o objeto concreto de regulamentação; e, de outro, a criação de filtros próprios da dogmática penal – no caso, o filtro de controle da legitimidade do bem jurídico. Por meio desse procedimento, consegue-se racionalizar um conceito que originalmente poderia ser perigoso, restringindo seu alcance e extraindo suas eventuais virtudes. Também se preenche uma função crítica sem cair na “fuga do direito penal”, posto que há critérios claros para indicar uma criminalização ilegítima, abrindo espaço para o controle prévio (projeto de lei) e posterior (controle de constitucionalidade).

 

REFERÊNCIAS

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[1] Hellen Luana de Souza, graduanda do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina,

hellenluanas78@gmail.com

João Pedro Barione Ayrosa, graduando do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina, joaobayrosa@gmail.com.


[1] RUIVO, Marcelo Almeida. Quatro diferenças científicas fundamentais entre a criminologia e o direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 25, v. 137, p. 323-345, nov. 2017, p. 337

[2] Ibidem, p. 339-340

[3] Ibidem, p. 339

[4] GRECO, L. A criminalização no estágio prévio: um balanço do debate alemão. Revista do Instituto de ciências penais, vol. 5, dez./mai. 2020, p. 11 – 34. Belo Horizonte: Editora D-Plácido, 2020, p. 21-22; GRECO, L. Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos? Revista de Concorrência e Regulação, a. 2, v. 7-8, p. 349-374, jul.-dez. 2012, p. 350. ROTSCH, T. Concerning the hypertrophy of law: a plea for the harmonization between theory and practice. Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, v. 4, n.3, p. 89-96, 2009, p. 92-93.

[5] PUPPE, I. Ciência do direito penal e jurisprudência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 58, p. 105-113, jan-fev., 2006, p. 113.

[6] COSTA, José de Faria; ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e os princípios do direito penal económico. In: PODVAL, Roberto. Temas de direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 107; SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Fundamentos para uma parte geral do direito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 22, v. 111, p. 61-90, nov.-dez. 2014, p. 64, KALACHE, Maurício. Direito penal econômico. In: PRADO, Luiz Regis. Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor José Cerezo Mir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 393; TIEDEMANN, Klaus. El concepto de delito económico y de derecho penal económico. Nuevo Pensamiento Penal: Revista de Derecho y Ciencias Penales. Buenos Aires, a. 4, v. 5-8, p. 461-475, 1975, p. 464; DARCIE, Stephan Doering. Notas reflexivas em torno do direito penal econômico e do conteúdo material do ilícito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 95, p. 357-404, mar.-abr. 2012, p. 374; BATISTA, Nilo. Concepção e princípios do direito penal econômico, inclusive a proteção dos consumidores, no Brasil. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 33, p. 78-89, jan.-jun.. 1982, p. 89.

[7] SCHIMIDT, op. cit., p. 69; RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito penal econômico – É legítimo? É necessário? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 25, v. 127, p. 15-38, jan. 2017, p. 24-26.

[8] RODRIGUES, 2017, p. 35; BATISTA, op. cit., p. 82-84.

[9] RODRIGUES, op. cit., p. 33; KALACHE, op. cit., p. 397; COSTA; ANDRADE, 2000, p. 103; SCHIMIDT, 2014, p. 76; TIEDEMANN, 1975, p. 467; DARCIE, 2012, p. 372; SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Teoría del delito y Derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 20, v. 99, p. 327-356, nov.-dez. 2012, p. 330; DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal económico entre o passado, o presente e o futuro. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 22, n. 3, p. 521-543, jul.-set. 2012, p. 535.

[10] GRECO, 2012, p. 66

[11] Ibidem, 2012, p. 64-65.

[12] GRECO, 2020, p. 23-24.

[13] RODRIGUES, 2017, p. 33.

[14] GRECO, 2012, p. 66-72.

[15] Ibidem, p. 69.

[16] Ibidem, 2012, p. 71

[17] Ibidem, 2012, p. 72.

[18] Ibidem, 2012, p. 73.

[19] SCHIMIDT, 2014, p. 64.

[20] RUIVO, 2017, p. 335-337.

[21] Sobre: ROTSCH, op. cit.


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