Por Ronaldo dos Santos Costa[i] e Isabella Hecke[ii]

 

Na terça-feira próxima passada, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez, de maneira excepcional, admitiu que terceiros afetados por acordo de colaboração premiada questionem sua legalidade perante o Judiciário.

A posição anteriormente adotada pela Corte assentava a impossibilidade de impugnação dos acordos por terceiros delatados, uma vez que, “como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente sua esfera jurídica” (HC 127.483). Contudo, tal entendimento foi esboroado diante do caso concreto.

O fato inédito ocorreu no julgamento do HC 142.205, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, impetrado em favor de réus da Operação Publicano, que investiga delitos supostamente praticados por auditores da Receita Estadual do Paraná e empresários, contra a administração pública.

A decisão, no entanto, não foi unânime. O Relator foi acompanhado pelo Ministro Ricardo Lewandowski e divergido pelo ministro Edson Fachin e pela Ministra Carmem Lúcia que, no entanto, admitiu a impugnação do acordo por terceiros delatados, ao contrário de Fachin, mas entendeu que não houve ilegalidade no caso em testilha.

Diante do empate, prevaleceu a decisão mais favorável aos pacientes, nos termos do art. 146, parágrafo único, do RISTF.

Em síntese, o writ questionou a validade do acordo de colaboração premiada firmado com dois delatores, diante das flagrantes ilegalidades que sucederam após a celebração do negócio jurídico pela primeira vez, em maio de 2015.

Isso porque, aproximadamente um ano após a homologação da colaboração premiada, em 2016, o Ministério Público Estadual protocolizou pedido de rescisão, porquanto um dos colaboradores teria descumprido as cláusulas do pacto, uma vez que teria sonegado a verdade, ocultado fatos e cometidos novos crimes após a homologação do termo. Tais argumentos foram acolhidos e o Juízo da 3ª Vara Criminal de Londrina/PR rescindiu o negócio jurídico entabulado.

Ocorre que, no início de fevereiro de 2017, na audiência de interrogatório do então ex-delator, em uma das fases da operação, se negou a prestar sua versão dos fatos, sob o argumento de que os promotores manipularam suas declarações e ocultaram todas as gravações audiovisuais teoricamente existentes de seus depoimentos prestados de forma extrajudicial. Afirmou, também, que não foi acompanhado por seu defensor em diversas oportunidades. No mesmo sentido, inclusive, foi a narrativa do outro ex-delator, quando de seu interrogatório, que também teve seu acordo rescindido, corroborando as acusações gravíssimas lançadas contra os representantes do Parquet. Além disso, após o ato, a defesa dos ex-delatores requereu ao Juízo a expedição de mandado de busca e apreensão na sede do GAECO para obter as mencionadas gravações e corroborou as imputações difundidas em audiência.

No entanto, em um verdadeiro plot twist da vida real, de forma surpreendente, em uma clara tentativa de salvar os resquícios de uma perscrutação frustrada, foi juntado aos autos ADITIVO AO TERMO DE COLABORAÇÃO PREMIADA, subscrito em 22 de fevereiro de 2017, apenas alguns dias após o imbróglio ocorrido perante o Juízo.

Neste aditivo ao acordo ─ já rescindido judicialmente, ressalta-se ─ o órgão ministerial firmou nova colaboração, agora com melhores prêmios do que aqueles outrora fixados, desde que o colaborador ratificasse, integralmente, todas as declarações prestadas ao Ministério Público na fase de investigação preliminar realizadas no âmbito da Operação Publicano e se retratasse das acusações imputadas aos promotores de justiça do GAECO por ocasião de seu interrogatório alhures mencionado.

Na sequência, sobreveio a decisão do Juízo no sentido de homologar o termo aditivo apresentado pelo Parquet, porquanto seria, apenas, homologação de aditivo do acordo já homologado anteriormente, sem, contudo, analisar o preenchimento dos pressupostos materiais (cláusulas válidas, legais e que respeitem os princípios gerais do direito, a moral, a ordem pública e os bons costumes), de maneira fundamentada.

Ao contrário, o magistrado legitimou o pacto com alegações genéricas, sem enfrentar as peculiaridades das condições em que o acordo foi proposto.

Sobre a homologação leciona Vinicius Gomes Vasconcellos[iii]:

A função do juízo homologatório sobre o acordo firmado é, essencialmente, o controle dos seus aspectos formais, como seus pressupostos e requisitos, além dos demais elementos do termo e da negociação, voluntariedade do imputado e a legalidade das cláusulas propostas.

Diante do cenário teratológico, foi impetrado Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Paraná, com o intuito de cessar o constrangimento ilegal, para que o magistrado singular fosse compelido a enfrentar todas as circunstâncias que envolveram a elaboração do termo aditivo. Mas para tanto, foi requerido, em caráter liminar, a suspensão da ação penal, a fim de que os efeitos da delação fossem obstados até a decisão definitiva do writ. Ocorre, todavia, que a liminar foi indeferida pelo Desembargador Relator.

Diante da conduta da Corte Estadual, os impetrantes levaram a matéria ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça, nos mesmos contornos do anterior, atacando a ausência da análise da regularidade, voluntariedade e da legalidade do termo aditivo. Mais uma vez, no entanto, o pleito liminar não foi deferido, por decisão monocrática do Ministro Rogério Schietti, o qual se tornou, pois, a autoridade coatora do Habeas Corpus ora explanado.

A impetração na Corte Suprema, com requerimento de superação da Súmula 691, ressaltou as razões pelas quais o termo aditivo reveste-se de nulidade, permitindo sua impugnação, até mesmo por terceiros interessados.

Conforme já explanado, o termo de acordo de colaboração premiada firmado em maio de 2015 foi rescindindo pelo Juízo da 3ª Vara Criminal de Londrina, a pedido do próprio Ministério Público, desmantelando, por óbvio, qualquer efeito jurídico advindo deste, de modo que o magistrado singular teria considerado, portanto, a validade de um aditivo contratual de um acordo que não possuía mais efeito jurídico algum.

Ademais, conforme exaustivamente exarado pelos impetrantes, o órgão ministerial decidiu desfazer o pacto primitivo, visto que o então delator teria ocultado a verdade sobre os fatos investigados, bem como teria praticado crimes após a sua homologação. E, além de tudo isso, a nova negociação ocorreu logo após as acusações gravíssimas lançadas contra os representantes do Parquet em audiência pelos ex-delatores, o que é de se causar estranheza.

No entanto, conforme consta da impugnação, tais fatos foram totalmente ignorados pelo magistrado de piso, que sequer enfrentou a questões na análise da homologação do termo aditivo do acordo por ele próprio rescindido.

Vê-se, portanto, que os impetrantes não se insurgiram contra a possibilidade de realização de novo acordo com os mesmos delatores, mas sim a homologação do termo aditivo diante da nebulosa – e suspicaz – situação fática.

O Ministro Gilmar Mendes, em seu brilhante voto, asseverou que as práticas realizadas na Operação Publicano foram temerárias e questionáveis, colocando em risco, até mesmo, a efetividade da persecução penal, diante da atuação abusiva dos órgãos de investigação e acusação.

E, prefacialmente, diante da gravidade dos fatos narrados, entendeu ser o momento adequado para a reconsideração do posicionamento da Corte, em relação à impossibilidade de impugnação dos acordos por terceiros delatados.

O eminente julgador considerou que, muito embora o acordo rememore um contrato bilateral, que envolve interesses dos sujeitos envolvidos, não há como ignorar que o pacto é um meio de obtenção de provas, onde o Estado oferece benefícios a um acusado que tem como obrigação auxiliar a punir os outros imputados. Sustentou, ainda, que é evidente que acarreta gravoso impacto à esfera de terceiros delatados, seja pelo prejuízo à imagem pelo uso midiático das informações ou seja pelas decretações de prisões preventivas e/ou recebimento de denúncias com base nas declarações obtidas exclusivamente por meio de colaborações premiadas.

O Ministro afirmou, ainda, que a tese adotada anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal gerou uma incontrolabilidade dos acordos pactuados, uma vez que os únicos que poderiam os impugnar normalmente possuíam interesse completamente diverso e conflitante. Ademais, não se pode anuir com benefícios ilegais ou ilegítimos concedidos pelo próprio Estado a investigados. Assim, entendeu que os acordos de colaboração devem ser passíveis de controle judicial, em casos de ilegalidade manifesta, motivo pelo qual deve ser admitida sua impugnação por terceiros.

No caso concreto, o relator asseverou que diante das acusações apontadas aos membros do Parquet, tornou-se questionável e ilógica a possibilidade de que esses mesmos agentes sejam responsáveis por negociar e transigir sobre a pretensão acusatória de supostos fatos criminosos a eles imputados. Demais disso, não se revelou qualquer alteração fática a justificar a alteração de posicionamento em relação ao acordo e, portanto, não há coerência em requerer a rescisão de um acordo por ocultação de fatos e sonegação da verdade pelo colaborador e, posteriormente, sem qualquer fundamento, oferecer um termo aditivo, para abarcar os mesmos fatos anteriormente negociados e, teoricamente, mentirosos, oferecendo, ainda, prêmios mais vantajosos que aqueles constantes do acordo primitivo rescindido.

O Ministro, ainda, foi cirúrgico ao afirmar que é cediço que os elementos de prova produzidos a partir da colaboração premiada já possuem força probatória reduzida, em razão do lógico interesse do colaborador em delatar e receber, em compensação, benefícios, além dos problemas inerentes à própria lógica negocial no processo penal e, por óbvio, do princípio constitucional da presunção da inocência. É esperável, também, que o delator descreva versões dos fatos que o coloquem em uma posição mais favorável para negociar, nem sempre atreladas rigorosamente à realidade. No caso em tela, a fragilização das alegações dos colaborados tornou-se ainda maior, uma vez que descumpriram as cláusulas do acordo anterior e, posteriormente, assentaram novas negociações exatamente para rechaçar as acusações apresentadas.

Diante de todo o contexto, o Ministro, em seu voto, considerou que as declarações prestadas pelos delatores são imprestáveis a embasar qualquer sentença condenatória, em razão das ilegalidades que permearam a realização dos acordos de colaboração premiada em debate e ocasionaram inelutável desconfiança quanto aos atos realizados, impondo a atuação do Judiciário para resguardar os direitos fundamentais dos imputados, como a presunção de inocência e o contraditório.

Ainda, a decisão sustentou a importância do registro audiovisual sobre os atos da negociação e, especialmente, das declarações dos colaboradores, tomando como exemplo negativo o caso narrado e fazendo, até mesmo, um apelo ao legislador, sobre a obrigatoriedade da gravação.

Em relação à situação dos ex-delatores diante da nulidade do acordo, o Ministro considerou que o ocorrido sucedeu em razão da atuação abusiva da acusação e, por isso, os benefícios assegurados aos colaboradores devem ser mantidos, em observância ao princípio da segurança jurídica e em prol da previsibilidade dos mecanismos negociais no processo penal brasileiro.

No dispositivo, restou elencado que a ordem de Habeas Corpus foi concedida, de ofício -em razão da superação da Súmula 691-, para declarar a nulidade de acordo de colaboração premiada firmado pelos delatores. Por consequência, a decisão reconheceu a ilicitude das declarações prestadas e determinou a verificação, pelo Juízo de Origem, de eventuais provas contaminadas e de atos que devem ser anulados por estarem alicerçados nas alegações declaradas ilícitas, além da viabilidade de manutenção ou trancamento dos processos criminais aos quais estão submetidos os pacientes do writ. Entretanto, os benefícios oferecidos aos delatores pelo Ministério Público e concedidos pelo Juízo de piso foram mantidos pelos julgadores.

Depreende-se desse julgamento histórico, portanto, a revisão do posicionamento adotado anteriormente pela Corte Suprema, tendo em vista a admissão da possibilidade de impugnação de acordo de colaboração premiada por terceiros interessados, em casos de flagrante ilegalidade, para que terceiros prejudicados por atos manifestamente ilegais e inválidos possam resguardar seus direitos e garantias fundamentais. O caso é emblemático e, por o tema ter sido decidido em votação que restou empatada, bem como proferida por apenas uma das turmas do STF, certamente tornará a ser revisitado pela turma remanescente e, igualmente, pelo Plenário da Corte, que proferiu a decisão paradigma até então. Apesar de não definitivo, o precedente inaugura uma importante janela de argumentação em relação a uma questão que restava pacificada no sentido da absoluta impossibilidade jurídica de o terceiro interessado ─ e prejudicado ─ contrapor-se ao arbítrio de um acordo ilegal entabulado entre acusação e réu ou investigado colaborador, ao menos em casos teratológicos como o retratado neste habeas corpus. Avançamos, pois.


[i] Advogado Sócio do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Conselheiro do IBDPE

[ii] Advogada associada do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Brasileira de Direito Aplicado.

[iii] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Colaboração premiada no Processo Penal. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2017. (VASCONCELLOS, 2017, p.183)


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