Por: Ronaldo dos Santos Costa[1] e Andrelize Guaita Di Lascio Parchen[2]
A justiça consensual tem sido cada vez mais utilizada, e não seria diferente em matéria ambiental, com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC – Lei 7347/85), Conciliação Ambiental (Decreto 9.760/2019) nas esferas civil e administrativa e, recentemente, com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A, do Código de Processo Penal (incluído pela Lei 13.964/2019 – conhecida Lei Anticrime), na esfera penal.
O meio ambiente, como sabemos, deve ser entendido no contexto de desenvolvimento sustentável, uma vez que na Constituição da República de 1988[3] é catalogado como princípio da Ordem Econômica e, também, inserido no título da Ordem Social, devendo ser conjugado com o objetivo trazido pela Política Nacional do Meio Ambiente art. 2º Lei 6.938/81[4] , na qual o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente tem como escopo a prevenção do dano ambiental ou a sua reparação da forma mais rápida e integral possível[5] , ou seja, é neste contexto estão interligadas as esferas de responsabilização tripartida, de pessoas físicas e jurídicas, em matéria ambiental, visando a sua função social, a reparação do dano.
A questão que surge é qual o objetivo destes dois institutos -TAC e ANPP- em matéria ambiental. O TAC, com a responsabilização do infrator, já não possuiria força suficiente para garantir a recuperação da área ambiental degradada? Fazse, mesmo, necessária, a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) quando há eficiência na aplicação do TAC e na Conciliação Ambiental? Não seria bis in idem a aplicação dos dois institutos em conjunto, ao mesmo fato, quando a finalidade que se pretende é a mesma para todos, qual seja, reparação do dano ambiental?
Devemos destacar que o objetivo principal, em matéria ambiental, é a “punição” do infrator ambiental, materializada na obrigação de reparar o dano que causou, sendo as demais sanções, muitas vezes, de aplicação meramente secundária ao caso concreto, embora não se olvide que existam e são, por vezes, aplicadas. Fato é que o legislador concentra o enfoque na reparação ambiental, o que é facilmente verificado quando se analisam as principais normas que versam sobre o tema, seja em relação aos crimes ambientais, na Lei 9.605/1998[6] , seja no que pertine às infrações administrativas, no Decreto 6.514/2008[7] . A Doutrina de escol não diverge:
“A função do Direito Penal Ambiental, em tais hipóteses, residiria tão somente na tutela de funções próprias da Administração Ambiental. E tais funções não podem figurar como um bem jurídico desse subsistema punitivo. Se a missão do Direito Penal do Ambiente radica na proteção de um bem jurídico autônomo, aquela se veria totalmente comprometida se esse setor do ordenamento se ocupasse apenas em garantir a eficácia da normativa administrativa ou em punir os sujeitos que transgredissem o poder de planejamento e gestão ambiental da Administração Pública. O bem jurídico tutelado pelos tipos penais incriminadores assim configurados seria, portanto, ‘a capacidade de controle da Administração pública nessa matéria’” [8]
Já o art. 28-A, do CPP, disciplina que, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, desde que ao delito seja cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Aqui temos um problema de índole processual, que poderia ter sido resolvido pelo legislador, quanto à aplicação do instituto à pessoa jurídica investigada, sem que isso violasse o princípio da intranscendência da pena, para que não se confundisse a figura do ente imaterial com a pessoa do seu administrador, gerente ou outro representante legal, visto que isto não se admite no Direito Penal. Mas isto já é tema para debatermos em outra oportunidade.
A dinâmica do ANPP é que depois de discutidos os termos do acordo[9] entre as partes, em havendo consenso, os autos serão encaminhados ao Poder Judiciário para homologação do acordo. Vê-se, portanto, que tal qual ocorre com o TAC[10] , pode ser aplicado, via de regra, na esfera extrajudicial, quando há conclusão de inquérito (e/ou investigação), mas ainda não houve a instauração do processo criminal, nos casos em que o órgão ministerial opta pelo oferecimento do instituto, em vez do oferecimento da denúncia. Imperioso destacar que, em 22/9/2020, o Min. Gilmar Mendes, quando da relatoria do HC 185.913/DF[11] , afetou ao plenário do STF a discussão sobre a possibilidade de aplicação do art. 28-A, do CPP, também a processos em curso iniciados antes da vigência do Pacote Anticrime, a fim de se dar efetividade ao princípio da lei penal mais benéfica -trata-se de normal penal mista- e à teoria dos precedentes judiciais[12] em matéria penal.
A questão sobranceira tratada neste pequeno artigo é provocar à reflexão. Seria, mesmo, necessária a força do Direito Penal (Princípio da Fragmentariedade) para a efetividade do direito ambiental consensual? Acreditamos que não. Considerando que a finalidade que se busca com os institutos consensuais (TAC, Conciliação Ambiental e ANPP) é a mesma, qual seja, a reparação do dano (esta é a finalidade), estaríamos aplicando o consenso penal ambiental concomitantemente ao acordo administrativo/civil, ambos com desiderato de reparação. Ambos com desiderato de punição. Não há falar em independência das instâncias, princípio por todos conhecido, para a mantença da dupla punição. Como ensina Marion Bach[13]:
“Nova razão de aproximação entre o direito administrativo e o direito penal: o Estado, para gerenciar tais atividades percebe quão débil é, por vezes, o direito administrativo – escorado no poder de polícia e na autoexecutoriedade –, apelando, então, ao seu instrumento de maior força: o direito penal. E aqui já se antecipa, apenas na intenção de demarcação, o que as linhas que seguem abordarão com maior cuidado: o apelo ao direito penal como mero reforço ao direito administrativo pode se revelar bastante problemático. A utilização do direito penal como braço de apoio ao direito administrativo – e respectivas pretensões de controle das áreas da vida econômica – encerra perigos. (…) Parte-se, nesse tema, do seguinte pressuposto: o mantra constantemente repetido pela doutrina e pela jurisprudência de que “não há problema em cumular sanções penais e administrativas”, pois “há a independência entre as instâncias”, não mais é absoluto e incontroverso. Sim, pois no atual cenário, em que direito penal caminha em direção ao direito administrativo e direito administrativo caminha em direção ao direito penal, por vezes ambas as instâncias acabam por se sobrepor, indevidamente. Assim, a teoria e a prática revelam ser necessário – e urgente – estabelecer limites mais rigorosos e claros no âmbito punitivo do Estado (que engloba, naturalmente, direito penal e direito administrativo), inserindo essa tarefa no esforço de racionalização”.
A negociação é sempre a melhor solução para o litígio, por meio do termo de ajuste de conduta em matéria ambiental, meio mais célere e que dispensa a judicialização, morosa e estigmatizante, mas devemos nos utilizar de todos os meios de solução de conflitos disponíveis no ordenamento, nas diversas searas do Direito, aplicando as mesmas condições/sanções (ou muito semelhantes) para o mesmo fato e ao mesmo tempo? Não nos parece lógico, tampouco justo.
Comunga-se, neste ponto, do entendimento esposado por Édis Milaré (2005), quando afirma que por força do princípio da intervenção mínima, o juiz criminal, nos casos submetidos ao seu julgamento, deve verificar a presença do interesse de agir, como condição da ação penal. É o mesmo o raciocínio de Rômulo Moreira (2009), ao afirmar que, “lavrado o Termo de Ajustamento de Conduta, o ajuizamento de uma ação penal em razão do ilícito ambiental praticado, e objeto do acordo, perde completamente o sentido e, especialmente, a utilidade […]”
Trata-se da teoria da ausência de justa causa para a propositura da ação penal mediante a celebração do TAC ambiental, mesmo quando há lesão ou ameaça de lesão ao meio ambiente. Vê-se, pois, que nos casos em que o agente adequa inteiramente sua conduta às exigências legais, estaria ausente o interesse para a responsabilização penal e, consequentemente, a justa causa para o ajuizamento da ação penal.
E a doutrina é acompanhada por decisões esparsas do Superior Tribunal de Justiça, como se verifica no julgamento do HC 363.350, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, que assim afirmou: “(…) Tampouco é razoável se impor, no caso, as consequências de uma sentença penal condenatória a uma conduta que a seara administrativa é bastante, eficazmente, para solucionar a questão ambiental. Aí reside, exatamente neste ponto, a subsidiariedade do Direito Penal e, portanto, reforçado pelo princípio da insignificância, é que entendo pela atipicidade da conduta e pela necessidade de se trancar, definitivamente, a ação penal em desfavor dos pacientes(…).”[14]
A prática tem nos mostrado, destarte, a deturpação do princípio que estabelece a função social de tais institutos em matéria ambiental, uma vez que têm sido ofertados, para o mesmo fato ambiental, o TAC e o ANPP, concomitantemente.
“a ingerência penal deve ficar adstrita aos bens de maior relevo, sendo as infrações de menor teor ofensivo sancionadas administrativamente. A lei penal atua penal não como limite da liberdade pessoal, mas como sua garantia.(OCAMPOS, p. 89)[15]
Neste contexto, em matéria ambiental, a preservação e a recuperação ambiental mostram-se eficazmente atendidas com a utilização do TAC, sendo que o direito penal (no caso o ANPP) deve ser utilizado como a ultima ratio, ou seja, somente nos casos de descumprimento das cláusulas ajustadas[16] ou na recusa do agente em firmar o ajustamento é que deve ser ofertado o ANPP, quer dizer, quando todos os outros meios se mostrarem ineficientes para a proteção do meio ambiente, tudo em homenagem ao princípio da intervenção mínima.
[1] Advogado criminalista. Sócio de Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados.
[2] Advogada criminalista na Gilson Bonato, Ronaldo Costa e Advogados. Membro do IBDPE. Especialista em Ciências Penais e Direito Ambiental. Mestranda em Direito Profissional pela Universidade Positivo
[3] A matriz principiológica seguida pela Constituição Federal nos artigos 170, inciso VI, 174, 182, 186 e 225 é o Relatório Brundtland de 1987, também conhecido como “Nosso Futuro Comum” da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
[4] (…) tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana (…)”. Grifos nossos.
[5] REIS, Lucas Silvani Veiga. O Termo de Ajustamento de Conduta e o Princípio da Ultima Ratio. Direito Ambiental II, Publicação XXII Congresso Nacional do CONPEDI/UFPB, 2014. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=ae9e102b4f097883
[6] Art. 12; art. 14, II; art. 17; art. 20; Art. 28, I, II, IV e V.
[7] Art. 10,§8º; art. 21, §4º; art. 98-C,§2º; art. 128,§1º; art. 130,§4º; art. 141; art. 143, §1º; art. 146, VI.
[8] CARVALHO, Érika Mendes de. Limites e Alternativas à Administrativização do Direito Penal do Ambiente. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 92, 2011, p. 299-336.
[9] Aqui cabe um destaque. Como se trata de um acordo, as partes podem negociar os seus termos. Não sendo, de imediato, uma imposição cogente as condições ofertadas pelo ministério público.
[10] Porém, para este instituto não há necessidade de homologação judicial;
[11] STF – HC 185.913 – Decisão Monocrática – Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 22/9/2020. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344488197&ext=.pdf
[12] GALVÃO, Danyelle da Silva. Precedentes judiciais no processo penal. Tese, USP, 2019. Disponível em https://repositorio.usp.br/item/002964766
[13] BACH, Marion. Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador: quando a aproximação se torna temerosa. Disponível em: https://www.marionbach.com.br/wp-content/uploads/2018/08/direitopenal-e-direito-administrativo-sancionador-quando-a-aproximacao-se-torna-temerosa.pdf. Acesso em 21/7/2020.
[14] STJ – 5ª T. – HC 363.350 – Rel. Min. Ribeiro Dantas – DJe 16/2/2018. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1672819 &num_registro=201601889321&data=20180216&formato=PDF
[15] OCAMPOS, Juliana Buck Gianini. Justiça restaurativa e crimes ambientais de menor potencial ofensivo. Dissertação, Unisantos, 2016. Disponível em http://biblioteca.unisantos.br:8181/handle/tede/3302
[16] “comprovado o descumprimento das cláusulas do citado ajuste, como foi o caso dos autos, reclama-se a intervenção do direito penal como ultima ratio, nos dizeres de Édis Milaré, uma vez que as outras instâncias (administrativa e civil), menos gravosas, se mostraram insuficientes para coibir a conduta infracional, haja vista que as diversas tentativas dos demais órgãos para solucionar o problema (…)” STJ – 6ª T. – Resp 1.154.405 – Rel. Min. Rogério Schietti Cruz. J. 18/5/2017.
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