Por: Claudia da Rocha[1] e Marlus H. Arns de Oliveira[2]
Homenagem
Salve! Não foram poucas as passagens em que encontrei o advogado professor René Ariel Dotti. Cada uma delas foi única e marcante. Descrevê-las resultaria num capítulo de um enorme livro compartilhado por tantos alunos, advogados, juristas e todos que com ele conviveram e foram brindados com suas aulas e sua generosidade. Sucintamente, guardando o capítulo em meu coração, presto singela homenagem ao professor René, dizendo a ele que seguirei em frente com muita coragem e sempre com a medalha de Santo Ivo em meu paletó. Até sempre, professor René!
MEDIDAS CAUTELARES REAIS – REFLEXÕES QUANTO AO SEQUESTRO DE BENS NOS CRIMES COM PREJUÍZO À FAZENDA PÚBLICA – REVOGAÇÃO DO DECRETO-LEI Nº 3240/1941 – NECESSÁRIA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE
As medidas cautelares reais são disciplinadas no Capítulo VI do Código de Processo Penal sob a denominação de medidas assecuratórias. Dentre tais medidas, destacam-se a figura do sequestro de bens imóveis (arts. 125 a 131) e do sequestro de bens móveis (art. 132), que têm como finalidade assegurar o cumprimento do efeito da condenação consistente na perda do produto do crime, bem como a reparação do dano causado pelo delito.
Os artigos 125 e 126 do Código de Processo Penal estabelecem que poderão ser sequestrados os bens que sejam produto direto ou indireto do crime, bastando para tanto a “existência de indícios veementes da proveniência ilícita desses bens”.
O tema, já altamente controvertido e que reclama uma teoria geral das medidas cautelares patrimoniais, como bem asseverou Guilherme Brenner Lucchesi, em artigo neste mesmo Caderno Jurídico, alcança ainda mais polêmica quando estamos frente a crimes que resultem prejuízo para a fazenda pública.
Tal hipótese é regulada pelo Decreto-Lei nº 3.240/1941, cujo artigo 4º preceitua que, nesse caso, “O sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado, e compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave”.
Portanto, diferentemente do Código de Processo Penal, o Decreto-Lei não faz qualquer exigência quanto à necessária proveniência ilícita do bem, possibilitando o sequestro de todos os bens, inclusive os de origem lícita, impondo como requisito apenas a existência de indícios veementes da responsabilidade do sujeito, nos termos do art. 3º.
Devemos considerar como válido e legal o tratamento diferenciado conferido pelo Decreto-Lei nº 3.240/1941? É razoável submeter todo o patrimônio do investigado como garantia de ressarcimento ao erário mesmo que estejamos diante de bens adquiridos licitamente?
A título de exemplo, pensemos no cidadão que possui bens imóveis recebidos como herança. Anos depois, acusado de sonegação fiscal, mesmo não restando dúvida quanto à origem lícita do patrimônio, mostra-se possível nos termos do Decreto-Lei mencionado que o sequestro alcance os bens recebidos em inventário. Não nos parece que tal hipótese seja razoável.
A discussão merece análise e o primeiro ponto a ser observado é que o Decreto-Lei nº 3.240, de 08 de maio de 1941, é ainda anterior ao antigo e, em boa parte, inconstitucional Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941). Oportuna a conclusão de que o Decreto-Lei nº 3240 foi revogado pelo Decreto-Lei 3689, devendo ser aplicados os requisitos dispostos nos artigos 125 e 126 da Lei Processual Penal.
Entretanto, a jurisprudência adota entendimento de que estaria vigente e aplicável o Decreto-Lei nº 3.240/1941, possibilitando que o sequestro recaia até sobre os bens de origem lícita do sujeito. Nesse sentido, o julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:
PEDIDO DE LEVANTAMENTO DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL DE SEQUESTRO. IMPOSSIBILIDADE. BEM HERDADO E ADQUIRIDO DURANTE A CONSTÂNCIA DO MATRIMÔNIO, SOB REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS, SEM CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. BEM PERTENCENTE A AMBOS OS CÔNJUGES. ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE SEQUESTRO DO BEM, EIS QUE NÃO ADQUIRIDO COM PROVENTOS DA INFRAÇÃO PENAL, NOS TERMOS DO ARTIGO 125 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NÃO ACOLHIMENTO. DELITO PRATICADO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE SEQUESTRO DE BENS DE ORIGEM LÍCITA NOS TERMOS DO DECRETO-LEI 3240/41. (…) (TJ-PR, 2ª Câmara Criminal, Autos nº 0003963-36.2017.8.16.0119. Relator: Desembargador José Carlos Dalacqua, DJe: 22/07/2019 – grifou-se).
Apesar dessa visão oblíqua de boa parte da jurisprudência, somos categóricos no entendimento de que o Código de Processo Penal revogou o Decreto-Lei nº 3240/91, e comungamos do sentimento já exposto há muito tempo pelo querido e saudoso professor René Ariel Dotti (e que bem nos lembrou Guilherme Brenner Lucchesi em artigo publicado neste mesmo Caderno Jurídico), quanto à necessidade de uma teoria geral das medidas cautelares.
A revogação do Decreto-Lei nº 3.240/1941 pode também ser verificada sob o prisma dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade numa perspectiva constitucional.
O art. 282 do Código de Processo Penal, ao disciplinar as medidas cautelares pessoais impõe, em seu inciso II, a imprescindibilidade da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Trata-se de evidente manifestação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e apesar de sua previsão estar no título relativo às medidas cautelares pessoais não há justificativa para a sua não aplicação quanto às medidas cautelares reais, notadamente porque o próprio Codex, em seu artigo 3º, assegura que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica.
Não é razoável, tampouco proporcional, que os investigados por crimes, que supostamente foram praticados com prejuízo para a fazenda pública, sofram medidas mais gravosas que os demais investigados.
Ainda, e não menos importante, defende-se a necessidade de ser assegurado o contraditório, previamente à decretação de qualquer medida cautelar real, em obediência ao §3º, incluído pela denominada (equivocadamente) Lei Anticrime.
O art. 282, que trata das medidas cautelares pessoais, sofreu profunda alteração com o bem lançado § 3º que ressalvando “os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”, impôs ao juiz a necessária intimação da “parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias”, antes de decretar a prisão ou outra medida cautelar pessoal.
Ora, se para medida cautelar pessoal – evidentemente mais gravosa – é possível o contraditório, por que não o seria para a aplicação de medidas cautelares reais?
Finalmente, não nos olvidemos do artigo 5º, caput e inciso XXII, da Constituição Federal, que determina a inviolabilidade do direito à propriedade.
Diante de todos esses argumentos, e ainda do uso abusivo das medidas cautelares, tão bem ilustrada por Rafael Guedes de Castro em artigo deste Caderno Jurídico, é desarrazoada a possibilidade do sequestro atingir, de maneira irrestrita, a totalidade do patrimônio do investigado, posto que a suposta prática de crime, mesmo que dele resulte prejuízo à fazenda pública, não legitima o alcance de bens que não possuam qualquer relação (direta ou indireta) com o fato delituoso.
[1] Advogada, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDCC, em Direito e Processo Penal pela UEL, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pelo IDPEE/IBCCRIM, mestranda em Direito Negocial na UEL e professora de Processo Penal e Prática Penal no Centro Universitário Unifamma.
[2] Advogado e sócio de Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados e doutor em Direito pela PUC/PR.
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