Fonte: Assessoria de Comunicação do MPPR
Imagine sugerir a uma pessoa que praticou um assalto que forneça mensalmente alimentos à vítima e sua família como forma de reparar o crime. Pois esse foi um dos itens de acordo celebrado em Curitiba que, a partir da mediação do Núcleo de Prática e Incentivo à Autocomposição do Ministério Público do Paraná (Nupia), foi abordado por meio de metodologias de justiça restaurativa. O acordo foi homologado pela 9ª Vara Criminal de Curitiba e está em fase de cumprimento dos compromissos assumidos pelo réu.
O caso – Em abril de 2016, utilizando uma imitação de arma de fogo e na companhia de outra pessoa, ambos em uma motocicleta, João* abordou Ana*, que caminhava com suas duas filhas por ruas próximas à sua residência, e roubou seus telefones celulares. Algumas horas depois, policiais em uma viatura nas proximidades prenderam em flagrante os responsáveis e recuperaram os aparelhos. O autor do fato foi colocado em liberdade provisória e denunciado pelo MPPR por roubo majorado. Após o ocorrido, João tornou-se microempreendedor, abrindo uma pizzaria. Algum tempo depois, ele compareceu à casa das vítimas para pedir perdão pelo ato praticado, manifestando seu arrependimento e disposição para reparar o dano cometido.
Mediação – Ao identificar a possibilidade de o processo ser tratado a partir de uma perspectiva mais humana e responsabilizadora do que a comumente adotada na esfera criminal, a Promotoria de Justiça responsável pelo processo propôs que o caso fosse encaminhado para práticas restaurativas. Diferente do sistema de justiça convencional, que tem seu processo focado na identificação de culpados e a consequente imposição de penas, a justiça restaurativa busca, por meio do diálogo entre as partes, opções alternativas de responsabilização, reconhecimento e reparação das consequências dos crimes.
Com o apoio do Nupia, cuja equipe multidisciplinar é formada por assessores jurídicos e psicólogos com formação e experiência no tema, foi dado início ao estudo do caso e ao planejamento da abordagem. Foram realizados alguns encontros individuais do autor do crime e das vítimas com os mediadores, para que cada uma das partes pudesse expor sua visão sobre o ocorrido, serem apresentados à justiça restaurativa e avaliarem seu interesse em participar da proposta restaurativa. Com a concordância de todos os envolvidos –condição para que um processo ocorra no âmbito da justiça restaurativa –, foi então realizado o contato entre o autor e as vítimas, com a mediação dos profissionais do MPPR e na modalidade a distância, pela internet, em razão da pandemia de coronavírus.
Relações humanas – “Na justiça restaurativa, não ignoramos a existência do conflito, ao contrário, optamos por abordá-los e compreendê-los de forma aprofundada, em uma perspectiva que valorize dimensões das relações humanas que muitas vezes são deixadas de lado pelo mundo jurídico convencional”, explica o assessor jurídico do Nupia Mário Fischer, que atuou no caso. Mário destaca ainda o cuidado que a metodologia tem com cada pessoa envolvida, especialmente aquelas que sofreram a prática criminosa. “É o que aconteceu nesse caso, com o encaminhamento de uma das vítimas a atendimento psicológico, uma vez que, mesmo concordando em participar da mediação, ela demonstrava um quadro de estresse pós-traumático. Esse acolhimento é muito importante”, esclarece a psicóloga do MPPR Cecília Gagetti, que participou da mediação.
Na avaliação de Marcelo Rogoski Andrade, também psicólogo do MPPR, que atua desde 1998 na Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal e atualmente também no Nupia, a restauração muitas vezes apresenta desafios ainda maiores aos envolvidos. “Para muitos, é mais difícil passar por um processo de justiça restaurativa do que receber uma pena no sistema tradicional, pois é no espaço da mediação que as pessoas têm a oportunidade de lidar com sentimentos como medo, culpa e vergonha”. Marcelo ressalta o que considera uma das maiores vantagens dessa modalidade: “A justiça restaurativa permite que o autor do crime responsabilize-se de forma ativa pelo delito cometido, diferente de quando ele apenas recebe uma pena e a cumpre, passivamente, muitas vezes não concordando com ela”.
Proposta de reparação – Ao final da mediação, os envolvidos concordaram, como medida reparadora, com o fornecimento mensal de duas pizzas para a família das vítimas durante três meses, pela empresa de João, que faria a entrega pessoalmente. Além disso, foi acordado que ele pagaria mensalmente, durante seis meses, uma cesta básica destinada a uma paróquia da comunidade que realiza trabalhos assistenciais.
Justiça restaurativa – O caso, que tramita na 9ª Promotoria de Justiça de Curitiba, ilustra bem as vantagens e possibilidades de utilização de métodos restaurativos para a resolução de conflitos criminais, inclusive os que envolvem violência ou grave ameaça. Na metodologia, a vítima ocupa papel de protagonismo, sendo ouvida não apenas como narradora dos fatos, como geralmente ocorre no processo comum, mas como alguém que expõe suas necessidades e propõe alternativas para seu atendimento e responsabiliza o autor da ofensa. As principais normas que disciplinam a justiça restaurativa são a Resolução 2002/2012 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e a Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça.
Pioneirismo – O promotor de Justiça Willian Lira de Souza, que atua no Nupia, elenca alguns fatores pelos quais o caso pode ser considerado pioneiro no sistema de justiça brasileiro: “Trata-se de um acordo firmado em um crime de roubo, que é considerado grave, no qual houve grave ameaça às vítimas. Além disso, todo o processo de mediação foi conduzido diretamente pelo Nupia-MPPR, a partir de uma metodologia ainda pouco utilizada, que é a mediação vítima-ofensor”. Outra particularidade do processo foi a mediação autocompositiva haver ocorrido integralmente por meios remotos. O resultado obtido também é enfatizado pelo promotor. “Ser alimentado por alguém é algo que demanda uma relação de confiança, e acredito que exatamente por isso o caso simboliza bem os resultados positivos que a justiça restaurativa pode alcançar”.
A solução restaurativa foi comentada pelo promotor de Justiça Jacson Zilio, que atuou no processo: “O caso desconstruiu dois mitos recorrentes: primeiro, que as soluções conciliatórias não se aplicam às situações graves; segundo, que a resposta penal é sempre um caminho necessário, mesmo que inútil. Na verdade, a pena de prisão só reproduz desigualdade social e aumenta significativamente os conflitos sociais. Portanto, o uso da prisão, como regra, deveria ser evitado. A solução restaurativa, por outro lado, funciona como motor de resgate do sentido republicano das penas criminais: afinal, consegue reparar e recriar as relações cívicas danificadas pela injustiça social e pelo delito. O castigo, assim, precisa ter uma prática inclusiva. O regresso, portanto, ao mundo cívico normal pressupõe compreensão da ação realizada e dos danos que provocou na vítima. Está claro que esse comportamento do acusado, voluntário e consciente, repercute na culpabilidade, seja pela exclusão do juízo de reprovação, seja pela compensação. De qualquer modo, prestadas as condições pactuadas de forma livre, os fins das penas são excluídos ou amenizados”, afirmou.
Nupia – No Ministério Público do Paraná, a adoção de práticas restaurativas como forma de valorizar o papel das vítimas e possibilitar uma abordagem que privilegie as relações humanas dos conflitos é incentivada especialmente por meio do Nupia, desde 2018, quando o Núcleo foi criado (Resolução 7.105/2018). A unidade apoia as Promotorias de Justiça em todo o estado nos casos em que é identificada a possibilidade de uma resolução consensual dos conflitos, além de o próprio Núcleo poder atuar diretamente na mediação dos acordos. A procuradora de Justiça Samia Saad Gallotti Bonavides, coordenadora do Nupia, acredita que o caso é emblemático por ter sido alcançada uma solução consensual entre vítimas e réu em um crime no qual a ação penal é incondicionada (ou seja, o oferecimento de denúncia criminal por parte do Ministério Público independe de representação das vítimas). “Diferentemente de outros países, onde a justiça restaurativa é amplamente utilizada em processos criminais, no Brasil, a tendência é de que a metodologia seja mais empregada em casos de família ou de aplicação de medidas socioeducativas. Mas a realidade está aí para nos mostrar o quanto é possível esse outro olhar também para os crimes mais graves”, defende.
Samia Saad Gallotti Bonavides esclarece uma confusão que acredita ainda ser comum na aplicação da justiça restaurativa: “De maneira alguma deixa de haver a responsabilização do autor do crime. Mas, diferente da justiça convencional, que aplica uma pena que muitas vezes não satisfaz a vítima, a justiça restaurativa busca uma solução que seja suficiente para a reparação do dano causado e, o que é mais importante, em um processo com ampla participação dos envolvidos e no qual a vítima tem o protagonismo”.
Conclusão do processo – Com a homologação do acordo restaurativo, o processo fica suspenso para o cumprimento do ajuste firmado. Se integralmente cumprido, caberá ao Ministério Público e ao advogado de defesa proporem ao Juízo a solução jurídica para o processo, que poderá implicar desde uma atenuação da pena, em caso de condenação, até o próprio arquivamento da denúncia.
Semana – A propósito do tema, tem início hoje a “Semana da Justiça Restaurativa” uma campanha que acontece anualmente na terceira semana de novembro em diferentes países com a finalidade de divulgar e consolidar os princípios e ações da Justiça Restaurativa. No MPPR, o Nupia participa de atividades de capacitação e sensibilização em metodologias de justiça restaurativa.
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