Por: José Ewerton Bezerra Alves Duarte[1] Mayara de Lima Paulo[2] eMatheus Ribeiro Barreto Dias[3]

 

1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, enquanto ultima ratio do sistema jurídico, possui em seu cerne um propósito básico: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes e a eventual punição de ações que venham lesá-los, na esteira dos princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade (BITENCOURT, 2017).

Nessa esteira, o bem jurídico tributário se encaixa numa categoria especial – os ditos bens jurídicos institucionais de caráter coletivo (GUIRAO, 2005) -, que é correlacionado com determinadas atividades usualmente atribuídas ao Poder Público e imprescindíveis para a vida em sociedade (ALENCAR, 2006).

Logo, sendo a tributação um meio essencial para o funcionamento e a manutenção do Estado, chega-se à conclusão de que os tributos exercem uma função social voltada ao desenvolvimento individual e geral (PRADO, 2007), revelando, pois, a necessidade da tutela protetiva do Direito Penal, sobretudo, na vertente econômica (DIB, GUARAGNI, 2012), o que se encontra efetivado pela Lei nº 8.137/1990.

Na perspectiva do Direito Penal Econômico e ancorado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, os crimes contra à ordem tributária previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/1990 são delitos materiais, consumando-se com o lançamento definitivo do tributo, ou seja, é necessário um resultado consistente na redução ou na supressão do tributo, entendimento que se convencionou na súmula 24 do Supremo Tribunal Federal.

Convém, ainda, registrar que existem também os crimes formais, que constam do art. 2º da referida lei, de menor potencial ofensivo, o qual possui resultado, mas não é exigida a sua ocorrência para fins de consumação delitiva. Assim, o presente artigo tem por objeto a problematização das nuances e particularidades dos crimes materiais contra a ordem tributária a partir da aplicação do citado enunciado sumular, bem como debates correlacionados ao tema, por meio de uma revisão bibliográfica e documental, verticalizando-se numa análise doutrinária-jurisprudencial.

 

2 ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS DA REFERIDA SÚMULA

 

A súmula vinculante 24 surge em meio à discussão acerca da possibilidade de o Ministério Público propor ação penal por crime material contra a ordem tributária independentemente de outras questões de natureza processuais ou procedimentais, a exemplo da natureza da ação e do prévio debate em via administrativa para que seja definido a consumação desses crimes nos moldes do art. 1º da Lei nº 8.137/90 (MACHADO, 2013).

Estando, pois, a jurisprudência e a doutrina controvertidas quanto à questão do exaurimento prévio da via administrativa ou não para a proposição da ação penal em relação a esses crimes tributários, restou, assim, editada essa súmula, com o intuito de superar e unificar a interpretação normativa acerca da tipicidade material, assentando o entendimento de que, nos delitos materiais, o lançamento definitivo do crédito no processo administrativo é um dos fundamentais elementos para amparar o recebimento da ação penal, em que pese persistirem críticas dogmáticas sob a sua (in)aplicabilidade (MACHADO, 2013, pp. 112-113).

A par disso, alguns entendem que se trata de condição de procedibilidade para a configuração do tipo penal ou de um elemento normativo do tipo em tela, o que acarreta no não recebimento da inicial ou na rejeição da denúncia após a apresentação da defesa, conforme artigo 395, II, do Código de Processo Penal; enquanto outros afirmam que a inexistência da condição de definitividade do crédito tributário gera a falta de justa causa para o exercício da ação penal, prevista no inciso III desse mesmo dispositivo; de qualquer sorte, ambos levam à extinção do processo sem análise do mérito.

Os créditos tributários são comumente discutidos em sede de ações civis (anulatórias e embargos à execução). Nos casos em, no curso do processo-crime, houver a sua anulação com respectivo retorno à fase administrativa, o STF, no Agravo Interno em Reclamação 31.194/RS, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, entendeu não pela extinção da ação penal, mas pela suspensão do processo e do curso do prazo prescricional enquanto perdurar o novo processo administrativo, apegando-se, para tanto, aos princípios da celeridade processual e da eficiência.

Dessa forma, observa-se que a Suprema Corte tem flexibilizado a incidência desse enunciado de natureza vinculante, de modo que, a exemplo desse caso, valem as indagações: Se houve a desconstituição da dívida fiscal, por que apenas suspender se a prescrição? Seria justo impor ao indivíduo as consequências de uma condução anômala do processo administrativo pelo Estado, que é o credor, o legislador e o julgador ao mesmo?

Ademais, ela também foi alvo de inúmeras críticas, pois, a partir da interpretação desta, inexistiria o início do prazo prescricional (BORRI, SOARES, 2014). Há ainda alegações de que os processos administrativos fiscais serviriam apenas como exame de corpo de delito para verificação da materialidade, mas nunca como condicionante à configuração da infração penal (REALE JÚNIOR, 2013).

Isso porque o conceito de crime, a partir da teoria tripartite, requer o fato típico, ilícito e culpável. No que tange ao crime tributário, destacam-se, neste sucinto trabalho, esses elementos: o fato típico, que é composto pela conduta, resultado, tipicidade formal e material (ou ainda a conglobante de Eugénio Raul Zaffaroni) e nexo causal, e a culpabilidade, que é subdividida em imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa. Será que há tipicidade material quando o crédito tributário for de pequena monta? No Habeas Corpus 486.854/RJ, o Superior Tribunal de Justiça já aplicou o princípio da insignificância diante do ínfimo valor envolvido.

Assim, é preciso registrar que a peça acusatória deve ser dotada de justa causa, sob pena de adoção de uma responsabilidade penal objetiva e de respectiva violação do Estado Democrático de Direito, que, conforme Maria Thereza Rocha de Assis Moura (2001, p. 276), requer, sob seu aspecto material, a certeza da materialidade e a presença de indícios suficientes de autoria. Inclusive, nos autos do Habeas Corpus 106.152/MS, de relatoria da Ministra Rosa Weber, o STF entendeu que a exigência da súmula 24 não se aplica à fase investigatória.

Outra discussão decorrente dessa súmula, consiste na possibilidade de tramitação de inquérito policial junto à Polícia Judiciária ou de procedimento investigativo criminal pelo Ministério Público sem a constituição definitiva do débito tributário. À primeira leitura, considerando ser este um procedimento investigativo para reunir elementos probatórios acerca da existência da infração penal (materialidade) e da (co)autoria/(co)participação hábeis à configuração da justa causa para o início da ação penal (JORGE, 2011), entender-se-ia que, se não há materialidade por meio do lançamento definitivo do tributo, não há como instaurar ou permitir o prosseguimento dessa investigação.

 

3 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Dessarte, como expõe Decomain (2008), nota-se que os crimes contra a ordem tributária não violam tão somente o tributo fiscal enquanto objeto jurídico indisponível, mas atinge, outrossim, uma complexa rede de valores que permeiam o mercado econômico-financeiro, perpassando pela exigibilidade dos pagamentos dos tributos, o relacionamento com o fisco, a questão da idoneidade do contribuinte, a (in)competência da seara administrativa-cível de apuração das condutas, dentre outros aspectos.

Os seres humanos, no mundo globalizado, são complexos, assim como suas relações jurídicas. E, neste contexto, onde o Direito e o Estado regularam uma infinitude de áreas de atuação das pessoas físicas e jurídicas, não se pode perder de vista que a seara criminal é a ultima ratio e os entendimentos podem ser revisitados e aperfeiçoados no decurso do tempo.

Entretanto, é preciso sempre observar os ditames que sustentam o Estado (Democrático) de Direito, que tem princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, erigidos na Constituição Federal.  Assim, é salutar refletir sobre a interpretação e a aplicação desses enunciados sumulares, a fim de evitar que, na tentativa de avançar, viole-se as premissas constitucionais, mormente quando a vítima direta é a fazenda pública enquanto credoras e implique-se em responder investigação criminal ou ação penal, que, por si só, já acarretam agruras pessoais e sociais aos indivíduos.

 


4 REFERÊNCIAS

 

ALENCAR, Romero Auto de. Crimes contra a ordem tributária: legitimidade da tutela penal e inadequação político-criminal da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. MS thesis. Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva Educação SA, 2017, Cap. 1.

 

BORRI, Luiz Antonio, e SOARES, Rafael Junior. A relativização da competência nos crimes tributários. Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Boletim Informativo IBRASPP – Ano 04, nº 07 – ISSN 2237-2520 – 2014/02.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 106152. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília, julgado em 29/03/2016, publicado em 24/05/2016.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 486854. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília, julgado em 22/10/2019, publicado em 18/11/2019.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 31194. Relator: Ministro Roberto Barroso. Brasília, julgado em 29/11/2018, publicado em 03/12/2018.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2009].

 

DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

 

DIB, Natália Brasil e GUARAGNI, Fábio André. O princípio da insignificância e os crimes contra a ordem tributária: linhas críticas à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jurídica 1.28 (2012): 378-405.

 

GUIRAO, Rafael Alcácer. La protección del futuro y los daños cumulativos. Revista Electrónica de Ciência Penal y Criminologia, n. 04-08, p. 25, 2002.

 

JORGE, Estêvão Luís Lemos. O contraditório no inquérito policial à luz dos princípios constitucionais. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2011.Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98938/jorge_ell_me_fran.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 27 abr. 2021.

 

MACHADO, Hugo de Brito. A irretroatividade da súmula vinculante 24 e a prescrição impeditiva da ação penal. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v.33, n.1, 2013.

 

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para ação penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

REALE JÚNIOR, Miguel. Restrição ilegal. Boletim do IBCCRIM, nº. 245, abril de 2013.

 


[1] Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Pós-graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal de Campina Grande. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Futura de São Paulo (2021). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2019). Especialista em Direito Público pela Faculdade Legale de São Paulo (2020). Bacharel em Direito pela Faculdade São Francisco da Paraíba (2017). Pesquisador do GEDAI/UFC. Servidor Público Efetivo na Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social da Paraíba. E-mail: ewertonduartecz@gmail.com

[2] Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (2012). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça (NUDIJUS/UFC) e do GEDAI/UFC. Membro do Conselho Jovem da OAB/CE. E-mail: mayaralp.adv@gmail.com

[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do GEDAI/UFC. Pesquisador do Laboratório Internacional de Investigação em Transjurisdicidade (LABIRINT), vinculados à UFPB. Estagiário junto ao MPF-PB. E-mail: matheusbarreto14@hotmail.com


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