Por: Monique Pena Kelles[1]

 

O presente texto busca analisar o conceito do bem jurídico sob o prisma do direito penal econômico, ramo do direito penal que tem ganhado cada vez mais destaque nos debates acadêmicos; certamente por se tratar de um sintoma da expansão do direito penal em direção a áreas que, historicamente, não constituem o direito penal clássico.

É natural e desejável que o direito penal se expanda de forma a abarcar condutas lesivas ou potencialmente lesivas para a sociedade em geral, afinal, se o homem está intervindo em novas áreas a partir da evolução da tecnologia, também o direito como um todo tem que se ocupar em lidar com os problemas advindos dessas investidas.

O que se observa, porém, é que há uma expansão em demasia do direito penal sobre essas novas atividades. Devido ao espaço delimitado do texto, centrar-se-á à expansão na área de atividades econômicas, o que não significa que seja a área de maior importância, mas apenas uma das áreas das quais o direito penal vem intervindo de forma questionável. É o que será discutido.

Sob o enfoque da teoria do bem jurídico, pode-se dizer que ainda hoje há muitas discordâncias entre os estudiosos que se debruçam sobre o tema. Mesmo se tratando de um conceito elaborado no século XIX com Bierbaum e Franz Von Litz[2], com alterações ao longo do tempo, o debate em seu entorno não cessou e se mantém relevante para compreendermos os limites e funções do direito penal na sociedade.

Uma vez que a função do direito penal é limitar o poder de punir estatal, e que seus instrumentos de punição são, por natureza, flexibilizadores de direitos e garantias fundamentais, tem-se por certo que os princípios penais são de fundamental importância para que se alcance um direito penal comprometido com a democracia e o bem-estar social, de maneira que não extrapole suas funções constitucionalmente estabelecidas.

Daí porque há uma crescente preocupação entre os penalistas de se adentrar o campo econômico sem limites bem definidos de intervenção. Afinal, como se nota na construção dos tipos penais na seara econômica, há uma formulação tão ampla quanto pensar numa proteção da democracia por meio da legislação penal.

Isso porque, como um todo, os delitos contra a ordem econômica acabam por englobar uma gama de atividades indetermináveis, e precisam, em sua maioria, de complementos em outras áreas do direito como administrativo, econômico, tributário, financeiro, comercial, entre outras.

Nessa toada, o conceito de bem jurídico nesse ramo do direito, como “ordem econômica” revela uma expressão altamente ampla, abrindo espaço demasiado abrangente para encaixar comportamentos delitivos dos mais diversos. Como consequência, o direito penal, que tem seus instrumentos próprios de atuação, se torna ineficaz no objetivo de regular ou penalizar condutas dentro do sistema econômico e áreas correlatas.

A pergunta que se analisa é: pode-se tutelar a “ordem econômica” como bem jurídico no âmbito penal? A resposta seria um direto “não”. Mas, para aprofundarmos no tema, além de abordarmos o pensamento e a construção de Hassemer, a base da negativa está, em essência, no respeito aos princípios penais construídos a partir de conquistas civilizatórias, que limitam sua atuação, e não o contrário. Em suas palavras:

O direito penal, em seu formato de um estado de Direito Liberal, é um instrumento flagrantemente inadequado para apoiar objetivos políticos, controlar situações problemáticas ou promover à ampla prevenção de situações perigosas. Ao contrário, seu instrumental é pesado, anacrônico e desigualmente fraturado em suas possibilidades de produzir efeitos. [3]

A tendência que se nota é a de flexibilização de conceitos sólidos e bem delimitados, em nome da segurança, ou, sensação desta. Ou seja,

O ideal antropocêntrico, particularizado, com referencial individual, voltado ao erigimento de um elemento crítico limitador da gravosa intromissão juridico-criminal nos direitos fundamentais do cidadão apenas em situações imprescindíveis para harmônica convivência social, passa assim a ser abandonada em nome de outro modelo, qual seja, de gerenciamento de riscos, isto é, de pretensa segurança social. [4]

 

Não se trata de negar os avanços civilizatórios, nem ao menos de se apegar a conceitos tradicionais por mero receio do que se pode colher de tamanha flexibilização. A preocupação parte das consequências negativas que já se materializaram no mundo moderno da punição com base em proteção jurídica alargada.

O direito penal certamente não foi e não é formulado para dar conta de fenômenos dessa magnitude (a dita proteção da “ordem econômica”), e sim, se ocupa em tutelar os interesses e direitos individuais, para tanto, é imperativo que sejam bem delimitados por meio do bem jurídico. Eis o esforço de parte da doutrina em se voltar para um direito penal que seja capaz de enfrentar os problemas aos quais se propõe.

Pensado na legislação brasileira, poderíamos exemplificar esse alargamento com diversas lei e tipos penais, mas, talvez os delitos contra a ordem econômica da Lei 8.137/90, a qual pretende proteger por via da lei penal, a ordem econômica, tributária e relações de consumo, bem como a Lei 7.492/86, que trata dos delitos contra o sistema financeiro, deem conta de exemplificar bem o problema que se está pontuando.

Grande parte do desafio que essa legislação nos coloca é a busca por compreender o que é a ordem econômica e como o direito penal pode protegê-la, ou, punir o indivíduo que a lesiona. Porém, os tipos penais formulados por essas legislações nos convocam a chamar outros ramos do direito para conseguir compreender qual matéria e qual comportamento de fato se pretende punir.

Por outro lado, no plano constitucional, é perfeitamente cabível utilizar-se de termos e valores mais abrangentes, afinal, o constituinte tem o papel de estabelecer os valores pelos quais preza, cabendo ao legislador ordinário delimitar a maneira que se dará a proteção, justamente nesse ponto que o legislador penal se furtou em delimitar.

Como descreve REGIS PRADO (2003), o legislador deve se preocupar em considerar os valores fundamentais, sem desfigurar, através das tipicidades penais, o sentido que lhes foi atribuído[5]. Além do mais, ao transportar um valor socialmente relevante para o âmbito de proteção penal, deve-se fazer uma adequação desse dito valor, ao que o direito penal está encarregado.

Na mesma linha, HASSEMER (2009), nos alerta que (…) essa tendência produz bem jurídicos universais com uma semântica muito vaga. Permitem ao legislador penal a criminalização de quase todo tipo de conduta desviada e roubam ao conceito de bem jurídico seu potencial controle[6].

Por se tratar de delitos que potencialmente lesam um grupo grande de atividades, atingem também, um grupo grande e indeterminável de sujeitos. O que se atinge é a coletividade como um todo, ou, em casos específicos, lesiona-se uma atividade econômica. Como poderia, portanto, uma área que se ocupa da proteção dos direitos fundamentais do indivíduo frente ao poder de punir estatal, tutelar a ordem econômica com seus instrumentos tradicionais de sanção?

O que se observa, no mais das vezes, é que o fato delituoso advindo de grandes corporações estatais ou privadas, não nos permite, com clareza, chegar a um indivíduo que deu causa ao fato, e sim, uma gama complexa e conjunta de atos, envolvendo ações, omissões, diferentes níveis hierárquicos, até mesmo, permissões e entraves contratuais com empresas internacionais sob o manto de um sistema jurídico diverso.

Além do mais, há órgãos que se ocupam de observar a higidez das atividades econômicas, como exemplo, podemos citar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Banco Central (BACEN), Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). Cada um conta com expertise para lidar com as atividades econômicas, incluindo maior amplitude de atuação e possibilidade de comunicação com Ministérios e demais órgãos que se façam necessários para a busca de aprimorar a atuação dos órgãos econômicos no país, o que não é possível pela via judicial penal, com intervenção limitada a regras propositalmente rigorosas.

Os órgãos mencionados, em especial o CADE, pode lançar mão de alternativas menos gravosas, porém mais eficazes e céleres no combate aos ilícitos econômicos, como o caso de aplicação de medidas cautelares, proibição de participação em processos licitatórios, interdição de direitos, e demais medidas mais condizentes que a natureza da prática lesiva cometida.

Não se está dizendo, é importante ressaltar, que o direito penal deva sair de cena por completo, e sim, que talvez a resposta até então oferecida, através das tradicionais medidas penais, não seja a melhor resposta, vez que não tem ferramentas apropriadas.

Em suma, os delitos contra a ordem econômica, têm a comum característica de se pautar numa proteção que o direito penal não é capaz de oferecer, vez que se trata de um ramo do direito que chega “depois”, ou seja, apenas depois que a prática lesiva já ocorreu, servindo para a punição do agente infrator de forma individual, contando, necessariamente, com todas as garantias penais e processuais penais.

Pensando numa norma capaz de proteger de fato a boa condução da administração pública, poder-se-ia elaborar normas com o cunho de proteção e tutela antecipada, prevenindo que o dano ocorra. Não é, portanto, através da norma penal que se pode prevenir condutas lesivas, sob pena de tornar o direito penal meramente simbólico.

O que se nota no Brasil é a administrativização do direito penal não campo econômica, ampliando a zona cinzenta de atuação de cada ramo do direito. Ou seja, acaba por se tornar uma via pela qual se busca solucionar os mais diversos assuntos, instrumentalizando, assim, a via penal, visto que consagradora de ilegítima utilização deste gravoso meio de intervenção do Estado.[7]

Com isso, pensar numa delimitação do conceito de bem jurídico é, não só relevante, como extremamente útil para que nos atentarmos às finalidades do direito penal na sociedade, sem banalizar a intervenção por meio desse gravoso meio de punição. Afinal, qualquer instrumento de poder requer que seja utilizado com cautela e apenas em casos que se demande uma solução repressiva.

Delimitar os meios de intervenção penal pode, portanto, ser um passo em direção a uma construção racional do direito penal que está em favor da sociedade e suas demandas, e não em favor de um abuso do poder sem observar os devidos contornos estabelecidos conforme a Constituição.

 

Referências:

 

BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo. Quartier Latin. 2014.

HASSMER. Winfried. Direito penal: fundamentos, estruturas e política. Organização: Carlos Eduardo de Oliveira. Tradução Adriana Meirelles. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2008.

HASSEMER, Winfried. Sobre a arquitetura de um Direito Penal da Segurança. Tradução de Tito Lívio Cruz. Revista Direito Público nº 14 outubro – novembro, p. 73 – 85, 2009.

PRADO, Luis Regis. Bem jurídico e Constituição. Revista dos Tribunais. 3ª edição. São Paulo, 2003.

SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico – Fundamentos, Limites e Alternativas. São Paulo. Quartier Latin, 2012.

[1] Advogada e mestranda em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

[2] Sobre isso: BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silvia. Bem jurídico-penal. São Paulo. Quartier Latin. 2014

[3] HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estruturas e política. Porto Alegre. 2008 p. 227-228

[4] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico. Fundamentos, Limites e Alternativas. p. 162

[5] REGIS PRADO, Luiz. Bem jurídico e Constituição. P. 95

[6] HASSEMER, Winfried. Sobre a arquitetura de um direito penal da segurança. P. 74

[7] SOUZA, Luciano Anderson de. Op cit. p. 169