Thaise Mattar Assad[1]
O fenômeno da globalização ou mundialização, tendentes a um pensamento único, apresenta-se como uma realidade rompendo com as fronteiras, principalmente, em prol das relações comerciais, viabilizando o surgimento do radicalismo, fruto do (neo) liberalismo, que se presta a negar a própria essência do pensamento liberal, seus princípios e postulados, para agora, então, mirar o inimigo a ser combatido, que era e continua sendo o excesso de igualdade que permeia o estado de bem-estar social[2].
Toda essa perspectiva, de forma inevitável, ao tratar a sociedade, tal como, uma ilusória sociedade deliberadamente planejada pela razão utilitarista, como se fosse um sujeito hegemônico (grande sociedade), acaba por eliminar totalmente todas as individualidades dos sujeitos integrantes e, consequentemente, toda pluralidade cultural[3].
Com base na doutrina de Friedrich Hayek[4], critica-se o modelo de democracia por ele entendida como ilimitada, que esteja fora dos preceitos por ele estabelecidos para liberdade individual (percebam o ataque à ideia democrática de igualdade). Critica a razão, ao denominá-la como arrogante por abrir mão da abstração para o domínio do processo social[5].
Surge, então, a ideia de Estado mínimo na busca da justiça social, deixada ao bel-prazer do mercado essa função. Lembrando: no âmbito repressivo (penal e processo penal), o Estado deve agir com mãos de ferro para nada atrapalhar a liberdade do mercado[6].
A manipulação do medo passa a ser o foco do discurso ideológico do mercado livre, eis que o foco dos ideais propulsores do controle e defesa social teria nas manifestações sociais a consideração do paternalismo estatal, logo, cria-se uma insegurança fomentada ideologicamente para associá-la à violência que, por consequência, requer uma ação repressiva contundente do estado para recompor a pseudosegurança abalada.
Um verdadeiro paradoxo, se levarmos em consideração a ideia de estado mínimo em âmbito social e, em contrapartida, um estado máximo, no quesito repressão[7].
Essa noção de Estado penal forte, modeladora de sujeitos ao padrão de mercado, remonta a ideia de inimigo, que seria aquele que rompe com as regras contraídas, considerado como um perigo à sociedade, podendo ser retirado todos seus direitos diante a perda do status de cidadão.
Retomando-se a antiga e ultrapassada ideia de inimigo social[8], cujas garantias penais e processuais seriam mínimas ou nenhuma por conta do risco que impõe à coletividade a ser defendida (atualmente essa ideia é reproduzida com o jargão “cidadão de bem”).
O avançar do radicalismo pós-preceitos liberais, além de sugerir um ataque ao bem-estar social promovido pelo Estado, foi adotado como estratégia de mudança na base estrutural, qual seja, a noção epistemológica de causa e efeito foi substituída pela ideia de ação eficiente[9].
Ocorre, então, uma glorificação do consumidor e adjetivação do não consumidor como verdadeiro excluído, tudo em nome do eficientismo aplicado a um contexto social, agora de competição[10].
Trabalhando a desconstrução das instituições consolidadas, opta-se por substitui-las por um mercado que, naturalmente (dentro da lógica econômica), não repetiria os erros cometidos anteriormente, mediante, a dita “ação eficiente” como fundamento epistêmico em um campo de atuação propício pelas insatisfações existentes, decorrentes da incapacidade de cumprimento das promessas do Estado de bem-estar[11]. Essa visão economicista traz à tona a máxima de: mais sociedade, menos Estado.
Por consequência, de forma estratégica, ocorre um profundo desprezo pelo direito, pois, ainda, único instrumento de manutenção do status quo ante referente a conquistas constitucionais, irrompe, então, a flexibilização, muito aplaudida, e pouco compreendida, por conta de seus obscuros objetivos eficientistas. Cria-se mais uma dicotomia, além das já conhecidas: ricos x pobres; opressores x oprimidos, agora, os incluídos e excluídos[12].
Talvez hoje, uma das principais consequências da lógica eficientista seja confundi-la com impunidade, para, em contrapartida, justificar a necessidade de uma resposta penal mais rápida e dura em face dos excluídos, que insistem em atacar os bens consumeristas, demonizando-os, pelo simples fato de ser quem são e estarem na posição que estão. Essa cruzada de combate a esse inimigo remonta ao que sucedeu na idade média quando reinava o discurso inútil e fracassado de combate à heresia, mesmo a igreja, àquela época, sendo maior e muita mais coesa que uma sociedade neoliberal[13].
Com isso, surge o direito da força, o direito penal máximo, o (mal) dito movimento lei e ordem, como verdadeiro terror legal onde os fins justificam os meios, lembrem: a ação deve ser eficiente e a eficiência retira o Estado de Direito que controla a Economia, que serve à coletividade, e coloca o Mercado e o Comércio, que servem ao Direito Privado em voga.
Nessa lógica, ninguém deve ser excluído, ou seja, todos são potenciais delinquentes, logo, essa (des) humanização, tende a se voltar contra o próprio criador, como se servissem a um Deus que pode os consumir, a partir do momento que não o sirvam mais, tudo isso alimentado por um imaginário alucinante que não consegue perceber a ameaça verdadeira. Típica fala retorica alienante.
Por consequência, no âmbito processual penal, o caminho a ser percorrido deve coadunar com o até aqui exposto, ou seja, para um processo penal máximo não há que se falar em democracia processual, pois, somente um sistema inquisitório pode dar conta de um direito penal da força[14].
Assim, menos burocracia em prol da rapidez pode acarretar em supressão de recursos ou até mesmo em dispensa de determinadas provas essenciais e obrigatórias. A assimilação de que justiça tardia equivale à injustiça não pode desaguar em decisões inseguras e superficiais como se estivéssemos diante de um Judiciário produtivo em razão da quantidade, desprezando-se a qualidade dos atos decisórios[15].
Esse deslocamento da avaliação social através de números, por óbvio, deixa de lado toda a questão social, pautando-se, agora, apenas em externalidades, por exemplo, a pobreza que passa a ser considerada como um custo do sistema, evidenciando-se um abandono às individualidades.
Portanto, é preciso ter presente que toda sociedade civilizada prestigia o direito de defesa, sendo inaceitável que o Advogado seja equiparado a um delinquente e tenha suas prerrogativas violadas pelas autoridades do Estado, simplesmente por estar exercendo o sacerdócio da sua profissão, em nome do direito de defesa, ou seja, em nome de um direito individual inerente a todos! Não só do defendido. Mesmo que o capital, assim queira adjetivar o advogado e advogada, não há que se admitir essa crescente criminalização do exercício da advocacia.
Assim, não haveria eficiência sem que se consumisse menor quantidade de recursos com uma produção maior, ou que se produzisse mais com recursos mais baratos que se encontrasse em maior abundância na natureza, por exemplo, ou seja, o objetivo é a maximização do lucro. Todo assalariado, que na ótica capitalista sempre foi recurso para a produção, se ineficiente fosse, era descartado de sua área de atuação, como um produto defeituoso e sem valor. Esse descarte se perfaz(ia) através da demissão, como uma medida necessária para que a empresa (detentora do capital) não fosse prejudicada em sua expansão econômica.
O desejo pelo exercício do poder de influência sobre os que “não possuem” criou o mito, onde, as ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares, que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante, (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, a desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação destas distinções[16].
A desmobilização das classes controladas torna-se ponto chave na dominação legitimada por todos aqueles que se dão por dominados pelo sistema social classicista. Esse sistema abarca em si o culturalismo adquirido, por meio de repetições que difere de recordações/hábitos, ou seja, a recordação está do lado da lembrança daquilo que pode ser lembrado, enquanto que a repetição está do lado da atuação movida por componentes psíquicos recalcados que não podem ser lembrados. O que se repete, é o próprio furo na linguagem, é a falta, que faz mover os significantes dentro de uma cadeia associativa. A repetição, assim entendida, nos diz sobre sua capacidade de fazer funcionar o simbólico, dar ao desejo seu mote original, de fazer do desejo motor da capacidade dos sujeitos de se conectarem e reconectarem a objetos.
A alienação do sujeito na linguagem é o que se repete. É da impossibilidade de significar o desejo, fazendo da coisa em si algo impossível de ser decodificado[17]. Ou seja, a repetição é a busca pelo desejo inalcançável oriundo da crença de que qualquer que seja o sistema econômico do Estado, este sistema visa o desenvolvimento social para todos igualitariamente (caso o trabalhador mereça por seu empenho pessoal), e pela crença de que os donos do capital querem realmente lucrar e dividir.
As crenças no mundo igualitário e humanitário sem dúvida distorcem a realidade, e depois de enraizadas nas massas, destroem pacificamente qualquer forma individual de repensar o todo, legitimando a desmobilização para qualquer questionamento (prenúncio dos ataques ao exercício da advocacia). A violência aparece-nos hoje, como sinal de desespero das massas ou de grupos, e, designada então como violência social, ela testemunha tão só a raiva (gêmea da impotência), ou seja, o impulso destrutivo dos sem esperança. Dir-se-ia que, progressivamente, a palavra se foi esvaziando da sua negatividade exemplar (fundante, por exemplo, da revolução francesa) para se colorir de um negativismo em que nenhum ideólogo se reconhece[18].
[1] Thaise Mattar Assad é advogada criminalista, especialista em direito penal e processual penal, mestranda em ciências criminais pela PUC/RS, mestranda em ciências jurídicas criminais pela Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), vice-presidente da ABRACRIM/PR – APACRIMI, vice-presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR e conselheira do IBDPE.
[2] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 75-84.
[3] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 44.
[4] HAYEK, Friederich. Direito, Legislação e Liberdade. Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Tradução: Ana Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1985.
[5] HAYEK, 1985, p. 33.
[6] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 44.
[7] DA ROSA; LINHARES, 2011, p. 53.
[8] FERRAJOLI, 2002, p. 218. “Consequentemente, tais doutrinas, em supondo uma concepção do poder punitivo como ‘bem’ metajurídico – o estado pedagogo, tutor ou terapeuta – e, simetricamente, do delito como ‘mal’ moral ou ‘doença’ natural ou social, são as menos liberais e antigarantistas, que historicamente tenham sido concebidas, e, deste modo, justificam modelos de direito penal máximo e tendencialmente sem limites”.
[9] HAYEK, 1985.
[10] MIRANDA COUTINHO, 2000, p.76.
[11] MIRANDA COUTINHO, 2000, p.77.
[12] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 78.
[13] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 80.
[14] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 81
[15] MIRANDA COUTINHO, 2000, p. 82.
[16] BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Ed. Bertrand. Rio de Janeiro. 1989, p. 10.
[17] ALMEIDA, Leonardo Pinto de Almeida; ATALLAH, Raul Marcel Filgueiras Atallah. O conceito de repetição e sua importância para a teoria psicanalítica. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982008000200003acessado em 22/07/2018.
[18] DIAS. Carlos Amaral. O Negativo ou o Retorno a Freud. Lisboa: Ed. Fim de Século, 1999, p. 111.
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