Por Pablo Domingues Ferreira de Castro[1]

 

Em 1978 John H. Langbeint escreveu um artigo intitulado “Torture and Plea Bargaining” publicado na  The University of Chicago Law Review[2], no qual explicou, dentre tantas outras diversas luzes que o ensaio lançou sobre a origem de fenômenos repugnantes que adentraram na maioria do sistemas jurídicos, sobretudo ocidental (e aí inclua-se o próprio Brasil), as razões pelas quais o Direito Penal passou a permitir mecanismos de tortura para se obter, em determinadas situações, as provas que interessavam à persecução criminal.

 

A origem? Idade medieval. Entre os Séculos XIII e Séculos XVIII a Europa e, notadamente, a Itália, viu-se envolvida em um sistema penal capaz de tolerar a tortura física como meio de obtenção de provas, verificação e confirmação de fatos indiciários de delitos.

 

Mas, o autor registra em seu artigo que “Os juristas europeus conceberam o que os advogados anglo-americanos hoje chamariam de regra de causa provável, concebida para assegurar que apenas pessoas com grande probabilidade de serem culpadas seriam examinadas sob tortura. Assim, a tortura era permitida apenas quando uma chamada “meia prova” tivesse sido estabelecida contra o suspeito.”[3]

 

Ou seja, existia um “critério” para se torturar (como se algum critério fosse legitimamente justificável).

 

Traçando-se um paralelo à origem da permissão, sob regras estatais, da tortura como meio de obtenção de prova, John H. Langbeint comparou os métodos utilizados, há séculos, com o que foi implementado no sistema americano, por meio do Plea Bargaining e a possibilidade do Ministério Público negociar uma pena diretamente com um suspeito, em troca de confissões e informações outras capazes de elucidar crimes.

 

A causa justificante que legitimou legalmente a tortura na Idade Medieval com aquilo que se realizou nos Estados Unidos era a mesma: Criou-se, cada um em sua época, um sistema penal com garantias ao investigado/acusado muito sólidas, de modo que o processo penal ficou, de certo modo, obsoleto, pois não se conseguia, com tantas garantias possíveis e aplicáveis, obter a condenação de um indivíduo que se acreditava ser culpado.

 

Portanto, em ambos os casos sobrevieram subterfúgios: lá (na idade medieval) optou-se pela tortura física e acolá (nos Estados Unidos) pelo Plea Bargaining. Irmãos gêmeos separados por um hiato histórico significante, porém, com métodos que conciliam da mesma dinâmica: retira-se o livre arbítrio no direito, se assim entender o investigado/acusado, de confessar, seja, um primeiro, através da coerção física, seja, um segundo, por meio de uma coerção psicológica. Abomináveis, ambas.

 

Especialmente no tocante aos Estados Unidos, a crítica do autor, cinge-se justamente no ponto em que não haveria voluntariedade nestas confissões, feitas, em boa parte das situações, pelo temor de se responder a um processo criminal e sofrer as consequências de uma futura pena de prisão. A barganha é feita num ambiente de medo e insegurança daqueles que, inclusive, estão assistidos por uma defesa técnica. Afinal, quem arriscaria pôr sua própria liberdade em risco apostando numa possibilidade incerta de absolvição?

 

É neste contexto que se enquadra as recentes revelações advindas com a operação Spoofing, dentre as quais e especialmente, um diálogo estabelecido no chat entre os Procuradores da autoproclamada entidade Lava Jato no qual, Deltan Dallagnol, reconhece que “Nunca uma transferência foi tão eficiente, rsrsrs” (Veja-se a matéria aqui).

 

A fala foi decotada num diálogo em que se abordava a possível transferência de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, para outra ala prisional mais precária, o que teria lhe motivado a aceitar uma colaboração premiada.

 

Eis, portanto, o problema que se impõe com este artigo: ao se confirmar o conteúdo das conversas encartas na operação Spoofing, estariam os procuradores da Lava Jato praticando métodos análogos àqueles de tortura na época medieval? A mesma comparação feita por John H. Langbeint com o direito americano seria aplicável ao direito brasileiro?

 

A resposta, irremediavelmente, é sim. Tortura da pós-modernidade, à lá século XXI. E as consequências disso precisam ser enfrentadas e a elas atribuídas as implicações jurídicas próprias: a ilegalidade das provas obtidas a partir de uma colaboração premiada feitas nesses moldes.

 

A voluntariedade é requisito de validade do acordo de colaboração premiada (art. 4º, §7º, inciso IV da lei 12.850/2013), sem a qual é dever do Poder Judiciário reconhecer a sua ilegalidade e nulidade do próprio pacto, conforme premissas estabelecidas no julgamento do HC 142205 PR.[4]

 

A tortura também pode ser compreendida como um tormento de espírito e não apenas uma dor física. Incutir em alguém, que já se encontra preso (e, portanto, já fragilizado com as agruras próprias de estar submetido a uma investigação ou processo penal) a possibilidade de um cenário ainda pior em termos de condições carcerárias, é autêntica e genuína interferência nefasta e cruel no processo de formação de vontade. Ou, em outros termos, pode-se falar (e por que não?) na própria exumação do direito de ter vontade?

 

Quem colabora porque teme ver ofendida sua própria integridade física não é um colaborador e, sim, um refém, diante do poder massacrante de um Estado Policialesco que, em pleno Século XXI, utiliza métodos aprimorados, modernos e sofisticados de obter uma versão de fatos que interessem à acusação, ainda que estes fatos não representem a verdade. Esta última, ao que parece, menos importante quando o que se precisa é uma coerência acusatória.

 

Sendo mais claro: o que se precisa é que versões de “colaboradores” distintos, ainda que irreais, sejam capazes de se confirmarem. Afinal, “Dizer a verdade”, em sociedade, nada mais é do que respeitar a mentira sancionada pelo todo[5]

 

Novamente: desde que a mentira seja orquestrada e confirmada por outros “colaborares”, será, aos olhos daqueles que querem se livrar do ônus probatório, válida. Para Schopenhauer a mentira até pode ser utilizada, desde que não acarrete injustiça. A contrário senso, se a mentira gera injustiça ela não poderia ser utilizada. [6]

 

Voltemos ao caso: há aviltante injustiça. “Colaboração” que tem como consequência uma autoincriminação e uma incriminação de terceiros obtidas por ameaça velada (ou até mesmo direta) é nula, falta-lhe, como bem pontuado no precedente citado do STF, o requisito básico (e óbvio) da voluntariedade, além de prejudicar terceiros, que resolveram não partilhar de uma trama falaciosa. E mais: se por um lado falta a vontade livre e consciente de quem confessou (sem verdadeiramente querer) um fato, por outro sobra má fé e maldade de quem lhe impôs a única alternativa de produzir provas contra si mesmo.

 

Os escritos de John H. Langbeint, de 43 (quarenta e três) anos atrás, são absolutamente atuais e descortinam uma realidade (se, e se apenas se, comprovados forem os conteúdos dos diálogos revelados – que nunca foram negados) de acordos de colaboração e delação premiados ilegais e todos os atos deles decorrentes igualmente devem ser nulificados.

 

A propósito, nos dizeres de Celso de Mello (RE 251.445-GO- STF) “A cláusula constitucional do due process of law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras, pois o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal

 

Veja-se que neste Julgado o STF impõe limites até mesmo éticos na obtenção da prova, cuja inobservância tem como corolário lógico a sua correlata ilicitude. Sob qualquer ângulo que se analise, o constrangimento psicológico para extrair-se uma “confissão” é ilegal.

 

Não se quer defender (e jamais será esta a pretensão) que estes fatos sejam utilizados criminalmente contra aqueles que engendraram as colaborações feitas em modos não democráticos (a rigor, a prova foi obtida por meio ilícito, por meio de ação ilegal).

 

Todavia, a prova, ainda que ilícita, deverá servir em benefício daqueles que foram acusados e até condenados, para comprovarem sua inocência. Este é um desdobramento que vem desde a interpretação dada a partir do precedente no Julgado RE 402.717 PR do STF[7]

 

Reconheça-se a ilegalidade dessas colaborações e a nulidade das provas que delas defluírem. É medida de rigor e de manutenção de um Estado Democrático de Direito. As bases são constitucionais.

 

Não se pode praticar um spoofing no processo ou, no bom português tupiniquim, intrujar as regras do jogo, com as garantias constitucionais e materiais próprias de quem está sujeito à jurisdição penal para se alcançar aquilo que se conseguiria pelas vias processuais próprias e legais. A eventual “dificuldade” de se obter eventuais provas não autoriza a vulneração de direitos constitucionais (inclusive de presunção de inocência; de ser submetido a uma acusação balizada por um devido processo legal, com ampla defesa e contraditório).

 

Também não há de se valer mão de um argumento de eficientismo, suprimindo as tão caras garantias penais, como se a condenação criminal de alguém fosse um fim em si mesmo. A propósito, a absolvição também deve ser um resultado a ser considerado na persecução penal. Nem todos são inocente, mas nem todos são culpados.

 

Que o devido processo legal e um sistema acusatório bem definidos prevaleçam, porque a mentira contada com coerência pode se tornar verdade. E já não se sabe mais quem é o criminoso e o inocente.


[1] Advogado criminalista, doutorando pelo IDP(DF), mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de graduação (Unifacs) pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito


[2] https://www.jstor.org/stable/1599287?seq=1

[3] The European jurists devised what Anglo- American lawyers would today call a rule of probable cause, de-signed to assure that only persons highly likely to be guilty would be examined under torture. Thus, torture was permitted only when a so-called “half proof’ had been established against the suspect (fls. 5). https://www.jstor.org/stable/1599287?seq=1

 

[4] Penal e Processual Penal. 2. Colaboração premiada, admissibilidade e impugnação por corréus delatados. Provas produzidas em razão do acordo e utilizadas no caso concreto. Abusos da acusação e fragilização da confiabilidade. Nulidade do acordo e inutilização de declarações dos delatores. 3. Possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada por terceiros delatados. Além de caracterizar negócio jurídico entre as partes, o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de provas, de investigação, visando à melhor persecução penal de coimputados e de organizações criminosas. Potencial impacto à esfera de direitos de corréus delatados, quando produzidas provas ao caso concreto. Necessidade de controle e limitação a eventuais cláusulas ilegais e benefícios abusivos. Precedente desta Segunda Turma: HC 151.605 (de minha relatoria, j. 20.3.2018). 4. Nulidade do acordo de colaboração premiada e ilicitude das declarações dos colaboradores. Necessidade de respeito à legalidade. Controle judicial sobre os mecanismos negociais no processo penal. Limites ao poder punitivo estatal. Precedente: “O acordo de colaboração homologado como regular, voluntário e legal deverá, em regra, produzir seus efeitos em face do cumprimento dos deveres assumidos pela colaboração, possibilitando ao órgão colegiado a análise do parágrafo 4º do artigo 966 do Código de Processo Civil” (STF, QO na PET 7.074, Tribunal Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 29.6.2017) 5. Como orientação prospectiva ou até um apelo ao legislador, deve-se assentar a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação. Interpretação do art. 4º, § 13, Lei 12.850/13. Nova redação dada pela Lei 13.964/19. 6. Situação do colaborador diante da nulidade do acordo. Tendo em vista que a anulação do acordo de colaboração aqui em análise foi ocasionada por atuação abusiva da acusação, penso que os benefícios assegurados aos colaboradores devem ser mantidos, em prol da segurança jurídica e da previsibilidade dos mecanismos negociais no processo penal brasileiro. Precedente: direito subjetivo ao benefício se cumpridos os termos do acordo (STF, HC 127.483/PR, Plenário, rel. Min. Dias Toffolli, j. 27.8.2015) e possibilidade de concessão do benefício de ofício pelo julgador, ainda que sem prévia homologação do acordo (RE-AgR 1.103.435, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17.5.2019). 7. Dispositivo. Ordem de habeas corpus concedida de ofício para declarar a nulidade do acordo de colaboração premiada e reconhecer a ilicitude das declarações incriminatórias prestadas pelos delatores, nos termos do voto. (STF – HC: 142205 PR 0003138-90.2017.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 25/08/2020, Segunda Turma, Data de Publicação: 01/10/2020)

 

[5] FONSECA, Thelma Lessa da. Impulso à verdade e impulso artístico: uma leitura de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Cadernos de Filosofia Alemã. nº 12 – p. 29-50 – jul.-dez. 2008. Acesso: file:///Users/pablocastro/Downloads/64796-Texto%20do%20artigo-85783-1-10-20131118%20(1).pdf

 

[6] FIGUEIREDO, Nara Miranda de. Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos. Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar Centro de Estudos Sobre Intolerância – Maurício Tragtenberg. Publicada em 03.12.04 – Última atualização: 19 agosto, 2005. Acesso em: http://www.urutagua.uem.br/007/07figueiredo.htm

 

[7] PROVA. Criminal. Conversa telefônica. Gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. Juntada da transcrição em inquérito policial, onde o interlocutor requerente era investigado ou tido por suspeito. Admissibilidade. Fonte lícita de prova. Inexistência de interceptação, objeto de vedação constitucional. Ausência de causa legal de sigilo ou de reserva da conversação. Meio, ademais, de prova da alegada inocência de quem a gravou. Improvimento ao recurso. Inexistência de ofensa ao art. 5º, incs. X, XII e LVI, da CF. Precedentes. Como gravação meramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou. (STF – RE: 402717 PR, Relator: CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 02/12/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-030 DIVULG 12-02-2009 PUBLIC 13-02-2009 EMENT VOL-02348-04 PP-00650)


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