Por Guilherme Brenner Lucchesi[i]

A temática da responsabilidade penal da pessoa jurídica não é exatamente nova no Brasil. A Constituição da República em 1988 já previu a possibilidade de pessoas jurídicas responderem criminalmente pelos danos causados ao meio ambiente — ou, ao menos, muitos dizem haver esta previsão constitucional.

Há um certo debate a respeito da interpretação do dispositivo constitucional, pois o §3.º do art. 225 da Constituição diz que haverá responsabilidade penal e administrativa das pessoas físicas e jurídicas pelas infrações ao meio ambiente. A interpretação dessa redação tende a se dar da maneira que melhor convenha ao interesse ou à posição defendida. Seria esta previsão ampla, respondendo tanto as pessoas físicas como as jurídicas nas searas administrativa e penal? Ou a interpretação correta seria “distributiva”, de modo que as pessoas físicas devem responder penalmente, enquanto as pessoas jurídicas estariam limitadas à responsabilidade administrativa? Essa interpretação serviu de base ao argumento de que a responsabilidade penal de pessoas jurídicas seria incompatível com a ordem constitucional.[ii]

A discussão constitucional é peculiar, pois a Constituição da República não precisaria prever ou autorizar a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, bastando a previsão legal e compatibilidade dogmática. Não é, portanto, a nossa Constituição que autoriza a responsabilidade penal de pessoas jurídicas no Brasil. Tampouco é a Constituição que limita essa responsabilidade penal aos crimes contra o meio ambiente. De todo modo, a legislação brasileira, até o momento, somente autoriza a responsabilidade penal de pessoas jurídicas com relação aos crimes contra o meio ambiente, previstos na Lei n.º 9.605, de 1998.[iii]

O modelo de responsabilidade penal de pessoas jurídicas estabelecido pela legislação brasileira é um modelo vicariante, sendo o qual a pessoa jurídica somente agiria pelas pessoas físicas que a constituem, devendo haver alguma decisão de dirigente ou conselho tomada em prol da pessoa jurídica para que ela pudesse ser atingida criminalmente.

Segundo o modelo penal brasileiro, as pessoas jurídicas não seriam dotadas de realidade institucional, autônoma em relação aos seus dirigentes e integrantes. A responsabilidade não seria baseada em seus próprios atos, mas sim nos atos de pessoas naturais.

Isso, evidentemente, não exclui a responsabilidade penal das pessoas físicas. Desse modo, a lei passou a prever, implicitamente, a existência de alguma espécie de coautoria entre pessoa jurídica e pessoa física. Contudo, a lei não fornece nenhum outro critério para se estabelecer a responsabilidade penal de pessoas jurídicas.

O art. 21 da Lei n.º 9.605, de 1998, estabelece quais as sanções a serem aplicadas a pessoa jurídica: pena de multa, penas restritivas de direitos e penas de prestação de serviços à comunidade. Tais penas não são aplicadas em substituição às penas privativas de liberdade, como determina o art. 44 do Código Penal, em relação às pessoas físicas. No regime instituído pela Lei n.º 9.650, de 1998, não há qualquer critério ou referencial de substituição, e também não há qualquer possibilidade de cominação de penas privativas de liberdade às pessoas jurídicas.

A previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica pela legislação penal ambiental não estabelece de nenhuma maneira como se daria a imputação de responsabilidade penal aos entes morais. Não há dispositivos que esclareçam quais são os limites à imputação de pessoas físicas e jurídicas. Também não há regras quanto ao processo a ser observado. A Lei n.º 9.605, de 1998, determina que, em havendo ato de administrador ou de dirigente que seja praticado no interesse da empresa e constitua ação nela tipificada, a pessoa jurídica poderá ser – de um modo que a lei não diz – responsabilizada criminalmente.

No início dos anos 2000, o entendimento prevalecente nos tribunais brasileiros era de que somente poderia haver responsabilidade penal da pessoa jurídica se houvesse também a imputação à pessoa física. Haveria, portanto, um concurso necessário entre as pessoas físicas e jurídicas. A já aludida responsabilidade vicariante ou “por ricochete”.

No ano de 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário n.º 548.181, interposto pelo Ministério Público Federal, contra um recurso ordinário em mandado de segurança julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em que se deliberava acerca da responsabilidade penal da Petróleo Brasileiro S.A – Petrobras, independentemente da responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas no caso. Nessa decisão, por maioria, o STF passou a entender que a Constituição não estabelecia a necessidade de concurso entre pessoas físicas e jurídicas.

Posto de outro modo, o STF entendeu que o cerne de toda discussão acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas estaria na previsão programática constitucional de que as pessoas físicas e jurídicas seriam responsabilizadas penal e administrativamente pelos atos lesivos ao meio ambiente. A partir disso, estabeleceu a possibilidade de responsabilidade penal de pessoas jurídicas independentemente da imputação criminal a algum dirigente empresarial ou a alguma pessoa física.

O entendimento firmado em 2013 pelo STF vai de encontro àquilo que está disposto na Lei n.º 9.605, de 1998, na parte que busca iniciar alguma tratativa a respeito da responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Isso, pois o próprio art. 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998, estabelece que somente poderá haver responsabilidade de pessoa jurídica quando houver alguma decisão de dirigente tomada em prol da pessoa jurídica.

Diante disso, a única forma de compatibilizar o entendimento do STF ao que determina a lei é: em havendo um ato de dirigente (porque a nossa lei estabelece um modelo vicariante de responsabilidade e não prevê nenhum outro modo de responsabilidade autônoma ou independente da pessoa jurídica), deve haver a identificação de alguma decisão tomada no interesse da pessoa jurídica. Porém, se por algum motivo (v.g., extinção da punibilidade), não se puder realizar a persecução penal da pessoa física, admitir-se-ia nesse caso a responsabilidade penal individual da pessoa jurídica.

Infelizmente, não é o que se vê na prática. Em meio a tantos sinais contraditórios emitidos pelo legislador e pelo Supremo Tribunal Federal, a situação no Brasil se revela um pouco caótica.

A tendência é que em breve se tenha ampliada no Brasil a responsabilidade penal da pessoa jurídica para outros crimes. Aliás, parece haver uma inclinação para a adoção de um modelo de responsabilidade penal irrestrita a qualquer delito cometido por pessoas jurídicas, mais semelhante ao estabelecido na França e na Suíça.

Há diversos casos na realidade brasileira em que essa discussão se poderia colocar presente. Relembre-se das inúmeras mortes no estado de Minas Gerais por conta do rompimento de barragens, em que poder-se-ia falar em responsabilidade penal de pessoa jurídica por homicídio cometido, por exemplo. O grande problema é que a legislação penal ambiental não oferece qualquer segurança para se prosseguir, pois nos faltam critérios, em absoluto.

Nesse cenário, convém apresentar alguns pontos preocupantes a respeito do nosso modelo atual de responsabilidade penal de pessoas jurídicas.

O Brasil convive com um modelo híbrido. Principalmente, em razão da previsão no ordenamento jurídico brasileiro de pessoas jurídicas unipessoais: a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Eireli e a Sociedade Limitada Unipessoal (introduzida recentemente pela Lei nº 13.874/2019). Nesses modelos, há uma teoria de identificação muito forte, a qual torna difícil distinguir o que seria ato de pessoa física e o que seria ato de pessoa jurídica.

O STF e a doutrina brasileira visam um modelo que reconheça a realidade institucional das pessoas jurídicas não sob um modelo de culpabilidade institucional, mas sob um modelo que trata as pessoas jurídicas como dotadas de periculosidade. Desse modo, estas se submeteriam a aplicação de medidas de segurança (e não penas), o que parece resolver o problema da culpabilidade das pessoas jurídicas.[iv]

Agora, se considerarmos que existe uma realidade institucional nas pessoas jurídicas que torne possível admiti-las como autorresponsáveis pelos seus atos, indaga-se de que modo poderia haver a coautoria entre pessoas jurídicas e pessoas físicas para se evitar bis in idem? Os dirigentes devem responder pelos mesmos atos que foram praticados em prol da pessoa jurídica? É possível que as pessoas jurídicas passem a responder pelos atos de seus funcionários? Em havendo uma realidade institucional, a pessoa jurídica passa a ser uma garantidora universal de todos os atos que acontecem no seu meio? Então, se há uma falha no cumprimento das medidas de compliance, toda vez que o agente agir em nome da pessoa jurídica — não necessariamente em seu interesse, mas no âmbito desta —, poderá haver a imputação de omissão imprópria à pessoa jurídica?

No caso das pessoas jurídicas unipessoais, cabe uma importante crítica apontada por Otávio Luiz Rodrigues Junior e Rodrigo Xavier Leonardo[v], segundo quem há um forte incentivo legal à formação dessas pessoas jurídicas que, na verdade, não têm nenhuma realidade institucional e suas atividades muito se confundem com a dos indivíduos que a compõe. Alguns dos grandes exemplos são profissionais liberais, artistas e desportistas, em que se constitui uma pessoa jurídica para fins tributários, apenas. E isso, apesar de ser incentivado pelo Estado, é muitas vezes tratado pelas autoridades públicas como se alguma espécie de fraude fosse. Essa realidade, invariavelmente, chegará no âmbito da responsabilidade penal de pessoa jurídica para se evitar um bis in idem, isto é, um duplo sancionamento para esses indivíduos.

No âmbito processual, por seu turno, a observância aos requisitos de uma adequada imputação criminal demanda a descrição de um fato naturalístico atribuído à pessoa jurídica. Não é difícil aceitar o fato de que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por condutas. Entretanto, é indispensável que isso seja bem compreendido pelas nossas autoridades, para que não existam acusações ineptas que gerem responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica por todos os atos que aconteçam no âmbito da sua atuação institucional.

Do mesmo modo, caso se entenda que há uma realidade institucional das pessoas jurídicas, os atos a estas imputados não podem ser os mesmos passíveis de imputação específica às pessoas físicas que as compõem. Essa dificuldade de algum modo precisará ser resolvida.

Em caso de concurso entre pessoas físicas e jurídicas é fundamental se reconhecer eventual conflito de interesses entre a pessoa jurídica e as pessoas naturais coacusadas. Como constituir um mesmo advogado para ambas se o interesse da pessoa física for evitar sua responsabilidade pessoal e transmitir a carga de responsabilidade à pessoa jurídica? Esse também é um problema concreto a ser enfrentado.

A própria distinção entre a pessoa física e natural não é feita pela lei ou pelo Judiciário. No âmbito da Justiça Federal, identificam-se diversos casos em que as pessoas jurídicas celebram acordos de suspensão condicional do processo e acordos de não persecução penal com o Ministério Público. Havendo ANPP, a confissão da pessoa jurídica é feita pelo representante legal que na maior parte das vezes é coacusado. Até mesmo no interrogatório não há uma adequada separação entre empresa e indivíduo: costumeiramente são interrogados conjuntamente em um único ato, em que há representação legal conjunta para ambos os acusados.

Mesmo no âmbito das penas não há o estabelecimento de algum critério seguro para a sua dosimetria. O modelo previsto no art. 59 do Código Penal analisa uma série de circunstâncias muito próprias às pessoas naturais: culpabilidade, personalidade, conduta social, motivos etc. A nossa legislação penal ambiental não estabelece nenhum critério de correspondência, o que nos gera até mesmo uma dificuldade para cálculo de prescrição.

Nas pessoas naturais, não há dificuldade em estabelecer a correlação entre as penas privativas de liberdade e as penas restritivas de direito, já que estas são aplicadas de modo substitutivo àquelas. A dosimetria é realizada, calcula-se a pena de privação de liberdade e há critérios legais para a conversão dessa pena em prestações alternativas.

Como dito acima, a legislação penal ambiental estabelece as penas restritivas de direito como sanções principais e não estabelece nenhuma relação de substitutividade. Portanto, em havendo a cominação de uma pena de multa à pessoa jurídica, fica a dúvida de como se calcula a sua prescrição em caso de demora no julgamento de um eventual recurso ou em caso de demora para início da execução da pena.

São problemas reais que simplesmente não foram tratados pelo legislador. Talvez porque se quis prever de algum modo a possibilidade de punir pessoas jurídicas criminalmente, mas, por falta de qualquer experiência ou modelo adequado a ser observado, não foi capaz de definir de que modo isso aconteceria.

Esse preocupante cenário reclama o estabelecimento de critérios que tragam segurança jurídica e que respeitem a garantia de legalidade. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas no Brasil parece ser uma realidade inarredável, mas para que possa ser operada é preciso que se estabeleçam padrões mínimos nos termos da lei, e não por meio de uma criação ad hoc pelo magistrado que decide processar e apenar pessoas jurídicas.


[i] Advogado sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor pela UFPR. Presidente do IBDPE.


[ii] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Florianópolis: Conceito, 2012. p. 666.

[iii] A eficácia contida do texto constitucional quanto a esse ponto resta evidenciada diante do lapso de uma década até que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas fosse prevista em lei ordinária.

[iv] BUSATO, Paulo César. Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no projeto do novo Código Penal brasileiro. Revista Liberdades. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=135.

[v] A “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/direito-civil-atual-pessoa-juridica-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira (parte 1) e https://www.conjur.com.br/2020-fev-10/direito-civil-atual-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira (parte 2).


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