Por: Luccas Chiamulera Böhler1

A possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica, embora controversa, é prevista na constituição federal, e, como tal, deve ser debatida. As discussões acerca do sujeito geralmente problematizam o método de punição aplicável a esses sujeitos de direito. Como bem articula o professor Paulo César Busato2, podem ser aplicadas analogicamente as previsões relativas à responsabilidade penal dos inimputáveis, como as medidas de segurança. Quanto à responsabilidade penal individual das pessoas jurídicas, sem concomitante imputação de pessoas naturais, salientam-se as conclusões de Heloisa Estellita sobre o assunto3.

Na lei nº 12.850/2013, preveem-se os crimes de associação criminosa – em sua feição atual – e de organização criminosa. Nesses crimes, não há distinção entre concurso de pessoas capazes e incapazes. Um vínculo estável de 4 ou mais indivíduos para a comissão de mais de uma espécie delitiva – com estruturação ordenada e divisão de tarefas – constitui o crime de organização criminosa, mesmo se só uma das pessoas for adulta. Entretanto, há dúvidas quanto à possibilidade de aplicação desse tipo penal para o conluio com pessoas jurídicas, algo que poderia ser compreendido como analogia in malam partem.

A questão do bem jurídico tutelado nos delitos de associação criminosa e organização criminosa é controversa, vez que não é reputada como suficiente para a criação de um tipo penal distinto e autônomo. Entende-se que o bem seria a “paz pública”. Roberto Bittencourt4 qualifica o bem como tal, mas entende que haveria uma divisão em duas feições, objetiva e subjetiva. Para o penalista, a noção subjetiva seria a “confiança da coletividade no ordenamento jurídico penal e na ‘paz pública’ ”. Assim, o bem seria balizado pela opinião pública, a percepção de segurança – a confiança nas instituições públicas e privadas, de acordo com Bittencourt. Dentro dessa noção, a mesma argumentação vale para o conluio dos particulares com a pessoa jurídica.

Os tipos penais de associação criminosa e organização criminosa estipulam, entre outros requisitos, o conluio de ao menos três pessoas, no caso de associação criminosa, ou ao menos quatro, no caso de organização criminosa. Nesses tipos penais, a existência ou não de dolo específico de estabelecer vínculo definitivo e estável para a prática de mais de uma espécie delitiva é essencial para a tipificação da conduta. Podem-se evitar debates ontológicos sobre a natureza da vontade, na sua acepção psicológica, ao se adotar a definição da doutrina alemã: a vontade, para Roxin, é o “esforço voltado para um fim”. O dolo, por sua vez, possui um componente de conhecimento (Wissen) e de querer (Wollen)5, sendo o segundo elemento objeto de críticas pela doutrina alemã6. O jurista explica, ainda, que a vontade não corresponde à finalidade da ação. Pouco importa, assim, se o autor visava o incremento patrimonial ou a derrocada do capitalismo com a prática de um furto, por exemplo.

Destarte, para a caracterização do dolo das pessoas jurídicas nos tipos penais em comento, basta verificar-se a existência de affectio societatis no agir do ente jurídico. O uso do termo, de forma análoga, para a análise dos delitos de associação criminosa e organização criminosa é defendido por penalistas como Lúcio Chamon Junior7, e é de serventia para a compreensão da adequação ao tipo penal. Há uma vontade de se associar e uma vontade de assumir riscos. Portanto, deve-se reconhecer a tipicidade da prática dos delitos de associação criminosa e organização criminosa por parte das pessoas jurídicas.

Tal entendimento decorre do fato de que, à luz da constituição brasileira, todos os capazes e imputáveis podem ser sujeitos ativos na prática de todos os crimes, algo previsto no próprio art. 5º da CF/88, que fixa a igualdade perante a lei. Mesmo os crimes que exigem qualidade especial do agente como o peculato (art. 312 do código penal) ou o infanticídio (art. 123) admitem comunicabilidade de circunstâncias a coautores, vez que se tratam de elementares do tipo penal. Os supostos obstáculos lógicos não obstam a imputação de tipos penais a terceiros. Embora possa-se entender, prima fascie, que o artigo 124 do Código Penal, referente ao “aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento” só pode ser aplicado à gestante em si, por exemplo, não existe impedimento legal para a coautoria no caso de provocação ou auxilío, desde que não haja intervenção cirúrgica material do agente, comportamento este previsto em tipo penal próprio. Tal foi o entendimento do TJ/SC no recurso criminal 470941, consoante trecho colacionado a seguir8:

“A doutrina assim tem se manifestado. Celso Delmanto , in Código Penal Comentado, edição de 1986, pág. 212, ensina:”Concurso de pessoas: Quem apenas auxilia a gestante, induzindo, indicando, instigando, acompanhando, pagando, etc., será co-partícipe do crime do art. 124 e não do art. 126, do Código Penal. A co-autoria do art. 126 deve ser reservada, apenas, a quem eventualmente auxilie o autor da execução material do aborto (ex: enfermeira, anestesista, etc.)”.

Como os crimes de associação criminosa e organização criminosa são de coautoria necessária, aplicar-se-á lógica semelhante. Não existem, no regime republicano e democrático de Direito atual, indivíduos, capazes e imputáveis, isentos de responsabilidade ou imunes a certas sanções criminais, ao contrário, por exemplo, da carta constitucional de 1824, que assegurava, em seu artigo 99, a inviolabilidade e do Imperador e sua completa isenção de qualquer tipo de responsabilidade. Para prestigiar o princípio da igualdade perante a lei e evitar a criação de um ordenamento jurídico penal paralelo através da hermenêutica, sem input legislativo ou popular, deve-se presumir que todos os dotados de capacidade jurídico-penal podem responder por todos os crimes passíveis de imputação a sereshumanos, ao menos para os que defendem a expansão da responsabilidade penal da pessoa jurídica para além dos parâmetros constitucionais.

Assim, contrariamente ao entendimento que o enquadramento das pessoas jurídicas seria uma analogia in malam partem, trata-se, de fato, de um reconhecimento de sua plena capacidade penal. Não pode o ordenamento admitir que determinados crimes se configurem como inexequíveis por determinadas entidades jurídicas, ao menos sob a égide da presente constituição e das presentes leis penais. Portanto, para se preservar o entendimento do termo “pessoa” dos tipos de associação criminosa e de organização criminosa como se referindo apenas a pessoas naturais, pode-se atribuir ao termo a qualidade de circunstância elementar do tipo penal. Dessa forma, o atributo de “pessoa” será transmitido para a pessoa jurídica.

Logo, a pessoa jurídica não poderá fazer parte do cálculo mínimo de integrantes necessários para a configuração do delito penal. Da mesma forma que dois cidadãos privados não podem cometer crime de peculato se estiverem desacompanhados de funcionário público que lhes transmita essa circunstância pessoal, não podem dois agentes – pessoas naturais – incorrer em crime de associação criminosa ou organização criminosa na companhia de apenas pessoas jurídicas. Somente a consolidação do tipo penal por três ou mais pessoas naturais possibilitará a imputação – no crime de associação criminosa – também a outros agentes com capacidade jurídico-penal, o mesmo valendo para o crime de organização criminosa, desde que preenchidos os requisitos específicos.

A conclusão é um desdobramento da personalidade jurídica efetiva e plena das pessoas jurídicas. É um entendimento para além da ficção jurídica. O contrato plurilateral, defendido por Túlio Ascarelli, cria um centro de imputação jurídica a partir da convergência de interesses que não pode ser compreendido como um mero instrumento de blindagem patrimonial de um grupo de interessados, mas como entidade jurídica autônoma.

 

Referências 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Participação em Organização Criminosa: uma Leitura Dogmática. Revista Caderno de Relações Internacionais, vol. 5, nº 8, jan-jun,                                   2014.                                        Disponível                      em: http://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/relacoesinternacionais/article/view File/204/192, acesso em 28 de abr. de 2021.

 

BRASIL, Tribunal de Justiça de Santa Catarina. RCCR 470941 SC 1988.047094-1. Recurso criminal. Aborto consentido. Quem colabora no delito da abortante, como mero auxiliar ou encorajador, sem participação direta no ato material ou cirúrgico, comete o crime do art. 124, e não o do art. 126, que é o da executante da operação física. Relatora: Thereza Tang, 09 de setembro de 1991. Disponível online em https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/3742052/recurso-criminal-rccr-470941-sc- 1988047094-1/inteiro-teor-10930697, acesso em 28 de abr. de 2021.

 

BUSATO, Paulo César. Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no projeto do novo código penal Brasileiro. Revista liberdades Especial – Reforma do Código Penal. Set. 2012, artigo 4.

 

ESTELLITA, Heloisa. Uma aproximação às formas de responsabilidade penal individual em empresas/an overview of the strategies to attribute criminal liability to individuals within corporations. FGV Direito SP Research Paper Series, n. CL001, 2019,                                                  disponível               em https://www.academia.edu/38430320/Uma_aproxima%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0 s_formas_de_responsabilidade_penal_individual_em_empresas_An_overview_of_th e_strategies_to_attribute_criminal_liability_to_individuals_within_corporations, acesso em 28 de abr. de 2021.

 

JÚNIOR, Lúcio Antônio Chamon. Princípios Normativos de persecução ao” crime organizado”: uma discussão acerca do devido processo penal no, arco de uma compreensão procedimental do estado de direito. Revista do curso de Direito, Nova      Lima,  v.3,  n.    5,    p.           71-91,             1º          sem.  2005.      Disponível      em https://www.metodista.br/revistas-izabela/index.php/dih/article/viewFile/103/87, acesso em 28 de abr. de 2021.

 

ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil Band 1. 4. ed. Munich: Verlag C.H. Beck, 2006.


1 Discente de graduação em Direito na Universidade Federal do Paraná.

2 BUSATO, Paulo César. Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no projeto do novo código penal Brasileiro. Revista liberdades Especial – Reforma do Código Penal. Set. 2012, artigo 4.

3 ESTELLITA, Heloisa. Uma aproximação às formas de responsabilidade penal individual em empresas/an overview of the strategies to attribute criminal liability to individuals within corporations. FGV Direito SP Research Paper Series, n. CL001, 2019, disponível em https://www.academia.edu/38430320/Uma_aproxima%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0s_formas_de_res ponsabilidade_penal_individual_em_empresas_An_overview_of_the_strategies_to_attribute_criminal

_liability_to_individuals_within_corporations, acesso em 28 de abr. de 2021.

4BITENCOURT, Cezar Roberto. Participação em Organização Criminosa: uma Leitura Dogmática. Revista Caderno de Relações Internacionais, vol. 5, nº 8, jan-jun, 2014. Disponível em: http://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/relacoesinternacionais/article/viewFile/204/192, acesso em 28 de abr. de 2021.

5 ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil Band 1. 4. ed. Munich: Verlag C.H. Beck, 2006.

6 IBIDEM.

7 JÚNIOR, Lúcio Antônio Chamon. Princípios Normativos de persecução ao” crime organizado”: uma discussão acerca do devido processo penal no, arco de uma compreensão procedimental do estado de direito. Revista do curso de Direito, Nova Lima, v.3, n. 5, p. 71-91, 1º sem. 2005. Disponível em https://www.metodista.br/revistas-izabela/index.php/dih/article/viewFile/103/87, acesso em 28 de abr. de 2021.

8 BRASIL, Tribunal de Justiça de Santa Catarina. RCCR 470941 SC 1988.047094-1. Recurso criminal. Aborto consentido. Quem colabora no delito da abortante, como mero auxiliar ou encorajador, sem participação direta no ato material ou cirúrgico, comete o crime do art. 124, e não o do art. 126, que é o da executante da operação física. Relatora: Thereza Tang, 09 de setembro de 1991.                                              Disponível                                      online em https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/3742052/recurso-criminal-rccr-470941-sc-1988047094-1/in teiro-teor-10930697, acesso em 05 de mar. de 2021.


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