Por Ronaldo dos Santos[1] Costa e Emily Teixeira Arcanjo[2]
Nas últimas décadas, a política criminal tem abalizado certa expansão do direito penal, como resposta às emergências surgidas, sobretudo após o 11 de setembro de 2001, de forma global. Comumente, vê-se a instituição de tipos penais afastados da orientação da efetiva ofensa a bens jurídicos, ao passo que se criminaliza o estado prévio da dita lesão, proporcionando um “direito penal da colocação em risco”.
A lógica expansionista do direito penal tem como uma de suas consequências, a mudança de foco do fato delituoso, causador de dano a um bem jurídico para orientação voltada ao autor, classificado como “outro”, com uma identidade social definida.
Ainda, a expansão do direito penal é influenciada por fatores sociopolíticos aliados ao risco globalizado, supranacional e independente de classe social. Contudo, não se pode perder de vista que a percepção dos riscos não compreende as dimensões reais das ameaças, uma vez que a própria conscientização do risco é que determina sua existência e extensão.
O risco, quando assume a consciência dos cidadãos, acarreta uma ampliação dos processos de modernização, gerando efeitos na economia, política, esfera pública, assim, sob o manto do perigo iminente, o cenário social toma um novo aspecto e exige uma resposta sistêmica.
Nessa toada, o terrorismo, seu financiamento e a lavagem de dinheiro se tornaram temas de grande relevância e atenção para a comunidade internacional.
A violência e o terror acompanham a humanidade desde tempos imemoráveis. Contudo, os historiadores atribuem o termo terror ao período da Revolução Francesa, em que pese o fenômeno tenha sido experimentado em eras anteriores. O terrorismo é uma técnica tão antiga quanto a própria guerra. Terrere, do latim, significa “fazer tremor”.
A incumbência de estabelecer uma data ou um momento histórico específico para o advento das ações terroristas está suscetível a equívocos, contudo, a principal característica do terror é que este está visceralmente atrelado ao exercício de ações violentas que causem grande temor e medo, atacando diretamente o estado anímico da população.
Por seu turno, a luta contra o terrorismo é marcada pelo embate e ponto de conflito mais severo entre a liberdade e a segurança dos cidadãos. Diante do terror, se experimentam argumentos de relativização de toda ordem de garantias individuais em prol do combate do odioso terrorista, mesmo em ambientes democráticos.
O impacto da globalização trouxe consigo a necessidade de reprimir o terror de forma também global, sobretudo após o atentado às Torres Gêmeas em 2001. Então, a comunidade internacional passou a adotar medidas preventivas e repressivas ao terrorismo, assim, foi estabelecida uma política severa de criminalização, sobretudo no mundo ocidental.
No Brasil, a Constituição de 1988 em seu artigo 5°, inciso XLIII instituiu verdadeiro mandado de criminalização em matéria de terrorismo, para qual a atividade legiferante ordinária deveria se voltar de forma atenta e obrigatória a fim de proteger bens ou interesses eleitos pelo Poder Constituinte originário.
Como norma de eficácia limitada, uma vez que não define o tipo penal primário e secundário, o artigo 5°, inciso XLIII carecia da atuação do legislador ordinário para enfim gerar efeitos no mundo jurídico-penal e adequar o Brasil aos tratados internacionais aos quais era signatário, dentre eles a Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Convenção de Barbados), firmada em 3 de junho de 2002 e promulgada pelo Decreto n.º 5.639 de 26 de dezembro de 2005 e a Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas firmada em 15 de novembro de 1997 e promulgada pelo Decreto n.º 4.394 de 26 de setembro de 2012.
A Convenção de Barbados, dispõe sobre a necessidade de adotar no Sistema Interamericano medidas eficazes para prevenir, punir e eliminar o terrorismo mediante a mais ampla cooperação dos países signatários em vista da necessidade de erradicação do terrorismo. Ainda, o documento frisa que o terrorismo constitui grave ameaça aos valores democráticos e para paz e segurança internacionais.[1]
Na Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas, se observava com profunda preocupação aos ataques terroristas que se intensificavam em escala mundial, em todas as suas formas e manifestações, colocando em perigo as relações entre os Estados e povos, ameaçando a integridade territorial e a segurança. Por tais razões, esta Declaração visava encorajar os Estados a examinarem com urgência o alcance das disposições jurídicas internacionais vigentes sobre a prevenção, repressão e eliminação do terrorismo.
Ainda, no artigo terceiro da Convenção, se encontra que cada Estado Parte deveria tipificar como crime, de acordo com a sua legislação interna e punir com penas adequadas de acordo com a gravidade da natureza dos delitos indicados no artigo segundo, in verbis:
1. Comete um delito no sentido desta Convenção qualquer pessoa que ilícita e intencionalmente entrega, coloca, lança ou detona um artefato explosivo ou outro artefato mortífero em, dentro ou contra um logradouro público, uma instalação estatal ou governamental, um sistema de transporte público ou uma instalação de infra-estrutura:
a) Com a intenção de causar morte ou grave lesão corporal; ou
b) Com a intenção de causar destruição significativa desse lugar, instalação ou rede que ocasione ou possa ocasionar um grande prejuízo econômico.
2. Também constitui delito a tentativa de cometer qualquer dos delitos enumerados no parágrafo 1.
3. Também constitui delito:
a) Participar como cúmplice nos delitos enunciados nos parágrafos 1 ou 2; ou
b) Organizar e dirigir outros na perpetração dos delitos enunciados nos parágrafos 1 e 2; ou
c) Contribuir de qualquer outra forma na perpetração de um ou mais dos delitos enunciados nos parágrafos 1 ou 2 por um grupo de pessoas que atue com um propósito comum; essa contribuição deverá ser intencional e ocorrer seja com a finalidade de colaborar com a atividade ou o propósito delitiva genérico do grupo, seja com o conhecimento da intenção do grupo de cometer o delito ou delitos de que se trate.
Todavia, em que pese parte da doutrina – v.g. Nucci e Fernando Capez [2] – entendesse que o tema terrorismo já era tratado na Lei de Segurança Nacional n.º 7.170 de 1983 no seu artigo 20, uma vez que menciona o termo “atos de terrorismo”, e, assim, a imprecisão do tipo não poderia deixar de proteger bens jurídicos tuteláveis. [3]O aludido dispositivo não se prestava a isso, na medida em que apenas veiculava menção a atos de terrorismo, sem efetivamente defini-los para fins criminais, tal como exigido pela imposição de taxatividade penal (art. 5°, XXXIX, CRBF/88).
Essa questão foi apreciada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal na análise de um pedido da República do Peru de prisão preventiva de Segundo Panduro Sandoval pela prática de “crime de terrorismo” (Questão de Ordem na Prisão Preventiva Para Extradição 730 Distrito Federal). [4]
Submetida a questão de ordem ao exame colegiado, o relator Ministro Celso de Mello destacou que até então, a legislação penal brasileira não havia definido o crime de terrorismo, não obstante o esforço significativo da comunidade internacional na busca de um conceito de terrorismo e da constante preocupação com o tema, inexistia um tipo penal de terrorismo no Brasil.
Dada a exigência do requisito da tipicidade ou da dupla incriminação para o deferimento do pedido de extradição, o relator entendeu que a conduta atribuída ao estrangeiro reclamado não encontrava correspondência típica na legislação penal brasileira, questão reafirmada pela jurisprudência da Suprema Corte. Portanto, por unanimidade de votos, a questão de ordem foi resolvida para declarar extinto aquele procedimento preparatório de ulterior ação de extradição passiva.
Por fim, neste voto foi enfatizado que eventual variação terminológica ou diferença no “nomen juris” não obstaria o preenchimento do requisito da dupla incriminação.
Em momento ulterior, o Brasil, ante a pressão de entidades internacionais e às vésperas de um evento internacional – Jogos Olímpicos Rio 2016 –, somente regulamentou e disciplinou o crime de terrorismo na Lei 13.260 de 16 de março de 2016, sancionada pela Presidente Dilma Rousseff.
Com o advento da lei antiterror, findou-se controvérsias acerca da tipificação do delito no Brasil, contudo, outros questionamentos vieram à tona, entre eles, se indaga se as penas previstas são proporcionais e se houve uma definição adequada, clara e suficiente do que vem a ser atos terroristas. Também, se observa a adoção da criminalização de atos preparatórios, que, via de regra, não são puníveis. Em seus vinte artigos, a lei antiterrorismo prevê quatro tipos penais, com penas que variam de cinco a trinta anos de reclusão.
A dificuldade em estabelecer uma conceituação adequada de terrorismo nas leis penais e tratados internacionais não é matéria recente. Conforme enfatizado pelo Decano Celso de Mello no voto supramencionado:
Mostra-se evidente a importância dessa constatação, pois, como se sabe, até hoje, a comunidade internacional foi incapaz de chegar a uma conclusão acerca da definição jurídica do crime de terrorismo, sendo relevante observar que, até o presente momento, já foram elaborados, no âmbito da Organização das Nações Unidas, pelo menos, 13 (treze) instrumentos internacionais sobre a matéria, sem que se chegasse, contudo, a um consenso universal sobre quais elementos essenciais deveriam compor a definição típica do crime de terrorismo ou, então, sobre quais requisitos deveriam considerar-se necessários à configuração dogmática da prática delituosa de atos terroristas.
(…)
A despeito desse significativo compromisso, os Estados Americanos não definiram os elementos configuradores do crime de terrorismo, o que constitui – segundo penso – motivo de inquietante preocupação no âmbito do sistema interamericano de proteção regional, a evidenciar a já referida ausência de consenso na formulação da própria noção conceitual de terrorismo.[5]
Para além da problemática que circunda os dispositivos da lei que tipificou o terrorismo no Brasil, exsurge a preocupação com o financiamento do terrorismo, prática visceralmente atrelada a lavagem de dinheiro e, portanto, ao direito penal econômico.
O terrorismo capta recursos espúrios – ou não – para utilização que é aplicada para além dos atentados propriamente ditos: na promoção de suas ideologias e convicções de extermínio; recrutamento de membros; deslocamento/viagens; manutenção de membros e suas famílias; etc.
Os recursos podem derivar da prática de outros delitos como tráfico, extorsão mediante sequestro, bem como de instituições religiosas fundamentalistas sem fins lucrativos e até de Estados.
A partir do 11 de setembro de 2001, o GAFI/FAFT elaborou recomendações para combater o financiamento do terrorismo, dentre elas, a criação de tipos penais atinentes ao financiamento do terrorismo. Também, prevenir o uso indevido de organizações sem fins lucrativos; evitar a proliferação de armas de destruição em massa; além de rigorosas medidas de cunho econômico.
Os países deveriam assegurar que as leis atinentes a instituições financeiras não inibissem a implementação das Recomendações do GAFI e tenham atuação rigorosa quanto a seus clientes: proibindo a criação de contas anônimas ou fictícias; fiscalizando transações suspeitas e ocasionais; e reportando aos órgãos responsáveis sobre operações suspeitas de lavagem de dinheiro ou financiamento terrorista.
Ou seja, o tema terrorismo toca na questão da criminalidade econômica. Nesse ponto, a baixa incidência de práticas terroristas no Brasil pode revelar um terreno atraente para a prática de ocultação de bens e valores para financiamento de atos de terrorismo.
Não obstante, ainda que tardiamente, o Brasil editou a Lei n.° 13.260/2016, que tipificou o financiamento ao terrorismo. Veja-se:
Art. 6º Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei:
Pena – reclusão, de quinze a trinta anos.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber, obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, associação, entidade, organização criminosa que tenha como atividade principal ou secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei.
Do dispositivo legal, se observa a criação do financiamento direto ao terrorismo no seu caput e financiamento indireto, previsto no parágrafo único. Insta salientar, que ainda as condutas previstas no tipo sejam praticadas por meio de ações lícitas, a finalidade deve sempre se voltar ao financiamento de atos terroristas.
A Lei Antiterrorismo segue na perspectiva da relativização de garantias fundamentais, na medida em que visa a proteção de bens jurídicos cada vez mais abstratos, supraindividuais ou coletivos, na tendência de um direito penal (pré)ventivo.
Outro ponto da Lei Antiterrorismo Brasileira que merece atenção é o seu artigo 12, o qual prevê a possibilidade da atuação ex oficio do Juiz no curso da investigação, em que poderá ser decretada medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou de interpostas pessoas.
A atuação do magistrado em fase preliminar é outra medida rigorosa e incompatível com um direito penal democrático justamente porque proporciona a figura de um julgador-acusador, incompatível com o princípio dispositivo fundante do sistema acusatório. A atuação do juiz como atividades primordialmente reservadas as partes afronta a imparcialidade e confunde o papel da identidade de cada sujeito no âmbito do processo penal.
Vê-se, portanto, que as facilidades da globalização econômica e do fluxo de capitais podem produzir a ascensão de células terroristas. No entanto, os desafios contemporâneos não devem servir a um direito penal de emergência, que em nome da paz e segurança internacional, relativiza toda ordem de garantias fundamentais, inclusive no que toca ao sigilo a dados fiscais, manipulação de dados, e excesso na tomada de medidas assecuratórias no curso da investigação. No afã de controlar a criminalidade econômica, ambiental e organizada se observa a crescente tomada de decisões de cunho legislativo-penal, incapazes de proporcionar a utópica segurança e reduzir índices de criminalidade.
[1] Advogado Sócio do escritório Gilson Bonato Advocacia Criminal. Conselheiro do IBDPE.
[2] Bacharela em Direito – Unicuritiba. Pós-graduanda em Direito e Processo Penal – Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogada Associada – Gilson Bonato Advocacia Criminal.
[1] < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5639.htm>
[2] “Curso de Direito Penal”, vol. 4/640-650, 2006, Saraiva
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. V. 1. 8. Ed. rev. Atual. E ampl. Rio de Janeiro. Forense. p.392
[4] < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7866348>
[5] < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7866348> fls. 09/10.
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