Bibiana Fontella.[i]

O artigo 7º da Lei nº 8137/1990 prevê os crimes contras as relações de consumo. No referido dispositivo há nove incisos, sendo que todos eles descrevem condutas de perigo abstrato[ii]. Isto é, de forma simplista, a mera realização da ação descrita no tipo consumaria o crime.

No artigo em questão há, além da questão da estrutura do delito, outros problemas envolvendo dogmática penal. Destacam-se: a) ao final do artigo há um paragrafo único com determinação no sentido de que os crimes previstos no incisos, II, III e IX também podem ser punidos na modalidade culposa; b) o artigo faz referências, em determinados momentos, sobre o produto ou serviço estar de acordo com as previsões legais ou, na maioria dos casos, os tipos são abertos. Isto gera um problema, bastante discutido na dogmática penal, no que toca às leis penais em branco.

Contudo, em que pese todos os problemas levantados, a questão fundamental deste artigo será, exclusivamente, a legitimidade dos crimes de perigo abstrato, em especial dentro da tutela do consumidor.

Sobre o crime de perigo abstrato há discussões sobre a inconstitucionalidade da estrutura típica por falta de ofensa – dano ou perigo de dano – ao bem jurídico obejto de proteção.[iii] Contudo, ressalta-se desde já que a questão da inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato já foi objeto de discussão pela Corte Constitucional Brasileira e esta entendeu pela constitucionalidade desta estrutura típica.[iv] Chama-se atenção, ainda, que esse entendimento não é só do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Em Portugal o Tribunal Constitucional entendeu da mesma maneira, quando julgou uma arguição de inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato.[v]

Assim, pelo que se verifica no primeiro grupo de críticas à legitimidade do crime de perigo abstrato a questão também  fundamental é aquela  que se refere ao bem jurídico, tomando-se como referência concretizada o fato de o bem jurídicoser fundamental a todo o Direito Penal, haja vista que é ele que lhe dá legitimidade desde as ideias iluministas.[vi] Por este motivo, em todo momento que se falar em legitimidade do poder punitivo é necessário pensar e analisar a Teoria do Bem Jurídico.

Com o desenvolvimento do princípio da ofensividade diretamente relacionado às questões de legitimidade do poder punitivo, a Teoria do Bem Jurídico se tornou o núcleo fundamental para uma pretensão de limitação do Direito Penal. Isso porque, com a necessidade de ofensa a bens jurídicos criam-se limites mais concretos à criminalização de condutas. Contudo, na história recente a preocupação de restrição de criação de novos tipos penais teria sido invertido, tendo, agora, como ponto de maior relevância a criminalização de novas condutas, estas consideradas apenas perigosas. Para confirmar isso, basta dar uma rápida passada de olhos nas legislações das últimas três décadas. Em tal período tem sido produzidas muitas leis criminalizando condutas antes permitidas. Contudo, a  questão mais relevante atinente a estes tipos penais atuais é a sua estrutura delitiva. Grande parte deles é crime de perigo abstrato, o que propicia diversas críticas, essencialmente no que toca à Teoria do Bem Jurídico. Por isso, é importante analisar os discursos atuais da legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos.

Os atuais discursos sobre a legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos se dividem em quatro posturas díspares:a)limitadoras[vii] – a proteção de bens jurídico serviria como critério de ação do Direito Penal, ou seja, só seria permitida a criminalização de condutas lesivas a bens jurídicos.Quaisquer outrasações, distintas destas, seriam consideradas ilegítimas; b) legitimadoras[viii] – a proteção de bens jurídicos  traria a legitimidade ao Direito Penal, contudo, seria possível haver criminalizações de condutas não lesivas a bens jurídicos. Isso dentro de um rol taxativo; c) relativa[ix] – a proteção de bens jurídicos não poderia dar respostas a todas as questões do Direito Penal atual. Por esse motivo, a restrição da atuação penal pela proteção de bens jurídicos só poderia ser aplicada ao Direito Penal de tutelas individuais. No Direito Penal de tutela coletiva a resposta deveria ser outra, não haveria necessidade de restrição do poder punitivo pela proteção de bens jurídicos;d) vigência da norma[x] – há, todavia, um entendimento mais expansionista, no sentido que a legitimidade do Direito Penal não estaria vinculada à proteção de bens jurídicos, mas expressa no texto constitucional e a sua função seria manutenção das expectativas normativas.

Por conseguinte, verifica-se que aqui a questão é a legitimidade do Direito Penal pela proteção de bens jurídicos. Diante disso, cabe indagar qual seria o bem jurídico protegido pelo art. 7º da Lei nº 8.137/1990. Na doutrina encontra-se a seguinte relação de bens: interesses econômicos e sociais do consumidor – diretamente – e a vida, saúde e patrimônio – indiretamente.[xi]

Conquanto, toda essa questão de ausência de ofensa a bens jurídicos há, ainda, a problemática acerca da estrutura delitiva do crime de perigo abstrato.

A interpretação geralmente feita do crime de perigo abstrato diz que para a sua consumação basta a realização da conduta proibida. Em comparação com o crime de perigo concreto, a presunção feita naquele é absoluta, isto é, no tipo de perigo abstrato seria desnecessária a demonstração do perigo ao bem jurídico tutelado, haja vista que a conduta proíbida seria considerada, em si, perigosa.[xii] Todavia, qual seria o resultado?No entendimento de D’Avila, aquela ideia de que a previsão de tiposde perigo abstrato seria no sentido de criar uma prevenção do dano deve ser deixada para trás.[xiii]Dentre as várias hipóteses aquela com maior destaque é a criação do risco ao bem jurídico, utilizando-se a Teoria da Imputação Objetiva.[xiv] Esta traz dois referenciais fundamentais: a necessidade de criação de um risco não permitido e a efetivação deste risco no resultado. Assim, faz-se necessário que com a conduta haja a criação de um risco não permitido (perspectiva ex ante) e que este esteja realizado no resultado (perspectiva ex post), apoiando-se nos conceitos do princípio da confiança e na violação de dever.

Desta forma, é necessário que com a conduta descrita nos tipos penais do art. 7º da Lei nº 8137/1990 haja a criação de um risco ao bem tutelado, ou seja, interesses econômicos e sociais do consumidor, e que este risco possa ser materializado em um perspectiva ex post. Isto é, que após a realização da conduta possa ser visualizada a situação de perigo ao bem jurídico, ainda que com certa distância na sua concretude. Diferentemente do que ocorre com os crimes de perigo concreto, nos quais é possível demonstrar a concreta colocação do bem jurídico em perigo, de tal forma, que a lesão só não  teria ocorrido por circunstâncias alheias à vontade do autor. Logo, ao contrário do que é visto, com frequência, nos Tribunais, o crime de perigo abstrato não pode ser interpretado como a mera realização da conduta, mas deve ser analisada dentro da potencialidade de eventual dano ao bem jurídico tutelado.[xv]


[i] Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogada Criminal. Professora de Direito Penal.


[ii] STJ, REsp 1163095/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 09/11/2010, DJe 22/11/2010.

[iii] GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (Lei 11.705/2008): exigência de perigo concreto indeterminado. Disponível em: <http://www.lfg.com.br> Acessado em 13 de setembro de 2012. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed., rev. e ampl. Curitiba: ICPC – Lumen Juris, 2007. p. 110 – 111.

[iv]Habeas Corpus 109.269.

[v]Acórdão nº 95/2011 e Acórdão nº 144/04.

[vi]MATA y MARTÍN, Ricardo M. Bienes jurídicos intermedios y delitos de peligro. Estudios de Derecho Penal dirigidos por Carlos Maria Romeo Casabona. Granada: Comares, 1997. p. 1 e 2.

[vii] ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito penal brasileiro. v. 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 38 – 40, 133 – 135.  HASSEMER, Winfried. Lineamientos de una teoria personaldelbien jurídico. Trad. Patricia S. Ziffer. In: Doctrina penal – teoría y prácticaenlascienciaspenales. N. 46/47, AÑO 12, abril-setiembre. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3ª ed., rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 197 – 202.

[viii] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 11 – 36. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal – parte geral – tomo I – questões a doutrina geral do crime. 2ª ed. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. p.  114 – 117.FRANCO, Alberto Silva. Do princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (director). Revista Portuguesa de ciência criminal. Ano 6, Fasc. 1º, janeiro – março 1996. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 175 – 187.

[ix] STRATENWERTH, Günter. Sobre o conceito de “bem jurídico”. Trad. Luís Greco. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (Coord). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 101 -115.  STRATENWETH, Günter. Derecho Penal – Parte especial I – El hechopunible. Trad. Manuel CancioMeliá y Marcelo A. Sancinetti. 4ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. p. 64 a 69.

[x] JAKOBS, Günther. Derecho penal – parte general – fundamentos y teoría de laimputación. Trad. Joaquim CuelloContreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. 2ª ed., cor. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 47 -58.

[xi]Nestesentido: PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.182.

[xii]DIAS, Op. Cit., p. 309.

[xiii]D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios – contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 94 e ss.

[xiv]ROXIN, Op. Cit., p . 342 a 411. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

[xv]BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 251 – 255.


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